MESSIANISMOS
TERRESTRES
Texto de Rondinelly Gomes Medeiros
Tapuya Potiguar e a força encantada, da série de colagens Kadu Xukuru
Quilombolas, povos indígenas, ex-escravos libertos, famílias camponesas, indivíduos desgarrados e sem rumo, mulheres sexualmente exploradas, órfãos e viúvas… Dentro de um mundo sem-mundo, comunidades terrestremente comprometidas florescem.
Da segunda metade do século XIX à primeira metade do século XX, os sertões do Brasil testemunharam a irrupção e o extermínio de insurgências populares de um tipo muito específico, que combinavam a convergência de diferentes grupos sociais, expressões religiosas exaltadas e (re)ocupações territoriais. Esses eventos, comumente incluídos nos chamados movimentos messiânicos ou messianismos, têm sido estudados há décadas, embora pareça sempre haver algo ainda não dito sobre eles.
Quero recortar, porém, um tipo específico de movimento messiânico, como os que se condensaram expressivamente no arraial de Belo Monte, no sertão nordeste da Bahia, e na comunidade de Caldeirão dos Jesuítas, no sul do Ceará (e, um pouco mais tardiamente, na comunidade de Pau de Colher, região limítrofe entre Bahia, Pernambuco e Piauí). A inclusão indiferenciante desses eventos no conjunto geral de movimentos messiânicos escamoteia principalmente o elemento diferenciante que é a sua relação umbilical com a terra, a modalidade de territorialização efetuada ali, e seus efeitos em relação ao exterior (à ‘sociedade circundante’, à herança histórica que carregam…). Isso porque o termo “messianismo” responde primeiramente à dimensão do “religioso”, da qual se diz haver ressonâncias políticas, mas não ser propriamente política.
O privilégio dado ao caráter religioso encadeia aqueles movimentos a eventos anteriores ou posteriores que lhes são em quase tudo estranhos, exceto, justamente, no caráter privilegiado, fazendo-os convenientemente parecerem-se mais com os episódios sebastianistas do Rodeador e da Pedra Bonita, entre 1820 e 1840, ou com os chamados Borboletas Azuis, em Campina Grande (PB), na década de 1970, do que com a Confederação dos Bárbaros e o Quilombo dos Palmares, no final do século XVII, ou as ocupações e retomadas de terra assistidas pela Comissão Pastoral da Terra e pelo Conselho Indigenista Missionário nas últimas décadas.
Sob a abordagem “messianista”, em vez de encarar experiências divergentes como “algo que uma sociedade pode ser”, continua a soar o mesmo refrão obsessivo: “isso é algo que nossa sociedade não deve ser” – às vezes com a recusa de se enxergar nos reincidentes massacres com que a sociedade abrangente as abrange “aquilo que certa sociedade realmente é”. Para além de meras “expressões religiosas de um anseio sociopolítico”, entretanto, fenômenos de criação, recriação, cocriação e adaptação de realidades abrangentes (o que tem se chamado de “modos de vida”) compõem positivamente territórios com novos arranjos socioambientais.
Precisamos, portanto, de um ajuste de lentes para observar esse subconjunto de movimentos messiânicos, como evocado pelo tradutor de pensamentos Antônio Bispo dos Santos, quando aponta que o encerramento desses movimentos dentro do conceito de messianismo evidencia apenas o ponto de vista dos que os massacraram, escondendo sob o entulho da história todas as positividades cósmico-políticas engendradas em seu seio e que foram o motivo de seu extermínio.
O caso desses movimentos ditos messiânicos que conjugam mutirão, ocupação de terra e expectativa escatológica, por sua natureza inescapavelmente terrestre, solicita uma suspensão da categoria do “religioso” e uma re-visão de sua ocorrência no plano da co-constituição de mundos, daquilo que Donna Haraway chama de mundificação (worlding), a constituição interseccional e tentacular de territórios e modos de vida, através de interações de agências humanas e outras-que-humanas. Pois bem, diremos, assim, que os mutirões escatológicos da terra são não apenas “propriamente” políticos como também, e mais ainda, evocam ou tangenciam a inauguração de outra política, política-com-a-terra, cosmificante.
Durante cerca de quatro anos, famílias, comunidades e povos completamente alquebrados pelo resultado ecopolítico de 300 anos de mal-assombro colonial no semiárido brasileiro foram magneticamente atraídos para o experimento de transfiguração territorial que estava ocorrendo na região do rio Vaza-Barris, no interior da Bahia: o arraial de Belo Monte nasceu por volta de 1894, em um pequeno povoado no sertão de Canudos, ao redor da pregação de um, já à época, famoso peregrino dos sertões do nordeste da Bahia, Antônio Conselheiro, de origem obscura e figura enigmática.
O movimento em torno de Antônio Conselheiro surgiu em um contexto de extrema desagregação das comunidades do semiárido. Além da luta sanguinária entre os bandos armados dos coronéis, o sertão trazia o peso do genocídio ocorrido durante a chamada Grande Seca (1877-1879), da desolação de ex-escravos libertos e sem recursos, da secular situação de assédio a comunidades indígenas e quilombos e das novas legislações republicanas. A República recém-instaurada, por um lado, não mudava em nada o poder colossal dos coronéis, e, por outro, impunha remodelações administrativas com prejuízo econômico e simbólico imediato para as comunidades pobres do sertão.
Fora as lendas sobre o Conselheiro, é certo que as medidas governamentais e o recrudescimento da opressão coronelista no início da República provocaram uma mudança acentuada na sua outrora pacífica e ascética pregação. Antônio, empenhado desde meados da década de 1870, quando apareceu no nordeste da Bahia, em liderar mutirões para a reforma de igrejas e capelas e a construção de casas de caridade e cemitérios, passara a abordar em seus sermões as violências inaceitáveis que atingiam as camadas mais pobres da população e a participar, com seu crescente séquito de devotos, de atos simbólico-práticos de rebeldia.
O mais famoso desses atos ocorreu na feira popular de Soure, onde, em 1893, uma multidão quebrou as placas nas quais se anunciavam novos impostos. A participação do grupo de Antônio nesses atos acendeu o alerta no governo que pôs a polícia em seu encalço, sob acusações de “fanatismo” e “sedição”. Após uma batalha breve, mas mortífera, Antônio partiu em busca de um sertão profundo onde ele e seu povo de peregrinos não fossem alcançados pela República e se pudesse construir uma vida comum fora da exploração coronelista.
Olhando por cima, segundo a história convencional, não se enxerga quase nada de potência mundificante nas situações geradas no seio de um movimento popular como o de Canudos, ou até mesmo há certa repulsa ao fanatismo pressuposto e ao reacionarismo nelas aparentes. Em primeiro lugar, porém, cumpre observar que a extrema fragilização dos laços sociais daquelas comunidades fez com que, naturalmente, os cuidados com os aspectos mais básicos da vida ganhassem relevância simbólica.
Assim, a construção coletiva de casas de caridade onde havia muitos doentes e de lugares de encontro ritual (capelas) , bem como o zelo pelos cemitérios comunitários, eram sinais concretos de cuidado vital por fora das malhas do sistema clientelista, lugares onde a recuperação da saúde, o rito comunitário e o luto não dependiam da semiescravização a um coronel. Dentro de um mundo sem-mundo, completamente asfixiado pelo poder intangível de capangas e coronéis, os mínimos sinais de uma vida comunitária eram de grande importância.
De toda forma, parece haver uma passagem de fase nesse movimento ao redor do beato Antônio quando, para além desses valiosos reparos em comunidades deprimidas, o Conselheiro vislumbrou a formação de uma comunidade de sem-mundos em preparação ao iminente fim do mundo.
O coletivo conselheirista foi em busca de uma espécie de terra-sem-mal na qual se instalassem as novas conexões sociais em vias de surgimento – novas em relação ao sufocamento cosmológico por que passavam os que se juntavam ao bando esquisito do Conselheiro. Estava surgindo um tipo de coletivo sertanejo cujo laço social passava ao largo do clientelismo coronelista, dos laços de parentesco que sustentavam esse sistema e da mera submissão homogeneizante à “população nacional”, mas que também diferia da confederação de etnias minoritárias (como as confederações da resistência indígena nos séculos anteriores), assemelhando-se mais a uma combinação da experiência secular dos quilombos com os atuais assentamentos camponeses.
A ocupação territorial em Canudos, a fundação e o crescimento do arraial de Belo Monte, efetuam uma estranha aliança entre a expectativa escatológica semeada pelo Conselheiro e a realização de uma comunidade terrestremente comprometida, em que os laços com as potências e vicissitudes do ecossistema e com seu caráter aberto e dinâmico e o consequente projeto de uma vida comunitária animada por esses laços são fartamente atestados pelas fontes e pelas interpretações do acontecimento.
Em seu auge, por volta de 1896, no arraial de Belo Monte se abrigavam comunidades quilombolas, povos indígenas, ex-escravos libertos e sem destino, famílias camponesas expulsas ou fugidas das fazendas, indivíduos desgarrados e sem rumo, como a “pequena bandidagem” (pois a “grande bandidagem” estava a serviço dos coronéis), mulheres sexualmente exploradas, órfãos e viúvas… O historiador Dawid D. Bartelt diz se tratar de uma “normalidade anômala”. Em seu levantamento de fontes e interpretações, o autor reconstrói um povoado aparentemente normal, em relação ao padrão de povoados do sertão de então, nos aspectos da composição étnica da população, da economia de subsistência e da conexão com outros povoados da região circundante, porém anômalo nos aspectos da densidade demográfica, da boa convivência ecológico-econômica com o ambiente e da organização social interna.
Era muita gente diferente junta, organizada e conseguindo o que nenhuma fazenda ou arraial conseguira até então: convivência suficientemente sustentável com o bioma da caatinga, alimentação para todos, vida livre do coronelismo, posse coletiva da terra. A comunidade de Belo Monte foi, talvez, a mais completa realização do dispositivo indígena sertanejo do mutirão e esta talvez seja a melhor descrição da forma social do arraial. Tudo isso foi incendiado furiosamente pelo Exército Brasileiro e seu canhão colonizador / imperial / eclesiástico / republicano – e isto significa muito.
Antônio Bispo dos Santos, no quilombo Saco do Curtume, no semiárido brasileiro, propôs o termo cosmofobia para designar o regime de terror aplicado em larga escala pelos monoteísmos oficiais contra populações dominadas, impondo-lhes práticas corporais, imaginárias, morais e políticas que asfixiam sua relação com o cosmos. Este termo de Bispo parece dar conta daquilo que se manifesta como uma espécie de missão autoatribuída das porções dominantes da população do chamado Ocidente de liderar “a humanidade” para o seu destino presumido, a saber, o desacoplamento da Terra. Esse regime é materializado da forma mais completa na história das colonizações modernas.
Bispo identifica na cosmofobia do colonizador uma característica central do tipo de imaginário que motiva a colonização: a fé monoteísta, que ele opõe às práticas politeístas dos povos violentados, e que se caracteriza pela negação de todas as entidades invisíveis que, segundo os povos não monoteístas, habitam ao lado, por trás e dentro da realidade visível e com as quais se deve negociar a vida em comum nesta terra. Avessa a qualquer contingência terrestre, a fé monoteísta parecer querer despovoar o mundo, extinguindo os deuses da terra e elegendo apenas um deus que, no entanto, reside fora deste mundo. Podemos estender essa característica para todas as máquinas de dominação, exploração e expropriação de povos, territórios e ecossistemas: em sua sanha colonizadora alimentada por uma espécie de aversão à terra, os impérios, os Estados, os mercados são fenômenos semelhantes aos monoteísmos oficiais; controlam populações, semeiam desertos e se dizem cumpridores de uma missão que transcende a realidade, esta terra. A ideia de que há um progresso inexorável da História é um exemplo dessa transcendência herdada dos monoteísmos. Teríamos, assim, uma história de longa duração da expectativa de desacoplamento da Terra. Ora, temos por certo que epistemologia também é política, ou seja, que o despovoamento epistêmico do mundo corresponde em alguma medida à retirada de qualquer sistema de freios e contrapesos que poderia balancear as relações das sociedades com os seus territórios – um projeto que sabemos muito tangivelmente no que deu e está dando agora mesmo. Essa película asfixiante de transcendência antiterrestre está sendo constantemente perfurada por irrupções estelares por onde se foge de volta à terra.
Bispo elenca uma série de mundificações rebeldes no Nordeste brasileiro durante o processo de dominação colonial na qualidade de movimentos de contracolonização, isto é, resistências inventivas na direção contrária à colonização, animadas por alianças territoriais tentaculares entre povos acossados, tradições minoritárias e ecossistemas. Ao vincular a cosmofobia à máquina colonizadora, Bispo não está falando apenas de eventos históricos do passado, mas de processos muito atuais e vigentes – a contente integração do agronegócio, controlado por holdings e investidores poderosos, ao neofascismo brasileiro, no empenho de aniquilar povos e comunidades tradicionais por quaisquer meios, em vista da exploração sem limite dos “recursos naturais”, deve ser uma prova suficiente.
Se, do ponto de vista dos protagonistas da dominação, o progresso inexorável da humanidade pressupõe que os fatos consumados, de triste lembrança, tenham sido necessários para se aproximarem da sua transcendência normativa (o “fim da história”) e devam ser assim recordados, da perspectiva dos povos violentados a história é outra: ela não é passado, mas questão imediata e urgente; não diz respeito à coleção de lembranças, mas à confecção de resistências; não é o retrato em sépia do trágico momento em que tudo se perdeu, mas a constante busca pela rota de fuga.
Cerca de quarenta anos após o extermínio do arraial de Canudos, outro beato peculiar apareceu no sertão sul do Ceará, nas terras do padre latifundiário Cícero Romão: José Lourenço, negro sertanejo filho de escravos alforriados, que migrara da Paraíba para o Ceará em busca de sua família perdida nas comuns diásporas internas das comunidades hiperexploradas no semiárido. Encontrou-a em Juazeiro do Norte, entre a multidão que o padre Cícero abrigava em suas terras durante os episódios ecopolíticos das secas.
Lourenço e Padre Cícero parecem dois lados da mesma lâmina que atravessa as forças sócio-eco-políticas nos sertões secos do Nordeste. Padre Cícero era uma espécie de “bom coronel” a utilizar suas propriedades e o clássico sistema clientelista para abrigar, durante as secas, multidões de migrantes empobrecidos, aumentando também, assim, sua grande força política regional. Do outro lado dessa lâmina está o Beato Lourenço, que se tornou liderança popular de grande atração ao realizar, utilizando seu vínculo protetivo com o Padre Cícero, reconexões comunitárias e territoriais com efeitos sócio-eco-políticos significativos o bastante para despertar a fúria do sistema coronelista.
Tendo, ainda jovem, ganhado a confiança do vigário, Lourenço arrendou um trecho de terra onde se assentou com sua comunidade de migrantes da seca devotos do padrinho. Ali, na Baixa Dantas, durante mais de trinta anos, floresceu uma comunidade voltada para a constituição de redes territoriais baseadas, de um lado, na autonomia comunitária e na igualdade social e, de outro, na capacidade admirável de garantir a subsistência da comunidade em aliança com o ecossistema.
Essas são duas características notáveis da experiência, porque respondem efetivamente a três axiomas perversos conjugados pelo sistema coronelista, a saber, que a própria terra sertaneja (o bioma da caatinga e o clima semiárido) seria hostil e produtora de miséria, que a larga camada da população hiperexplorada seria, como a terra a que pertencia, ignorante e estéril, e, como corolário, que a submissão aos poderes do latifúndio seria uma necessidade vital para se proteger contra esse “mal da terra”. O mutirão empreendido pelo Beato Lourenço na localidade da Baixa Dantas demonstrou a falsidade e a perversidade desses axiomas, revivescendo a característica secular dos povos tradicionais do semiárido de formação de comunidades em íntima associação com seu ecossistema e de reconhecimento da suficiência como horizonte ecológico-econômico. Assim como o arraial de Canudos, a comunidade em torno do Beato Lourenço também tomava a forma de um mutirão multiétnico e supraclânico, animado por uma escatologia popular, ao mesmo tempo fincada no imaginário ultratranscendentista do catolicismo do século XIX, mas com os galhos abertos em formas muito terrestres de projeção de sentido.
O gatilho da crescente ira dos coronéis da região com essa espécie de quilombo paracatólico foi a veneração dedicada a uma rês doada pelo Padre Cícero para consumo e que teria sido revertida em símbolo da devoção e da alegre suficiência da comunidade – o boi Mansinho. Escandalizados com a alegria pagã das histórias graciosas que circulavam, de que o boi era adulado e adornado pelos fiéis do Beato Lourenço, coronéis e bispos ordenaram a dissolução da comunidade, culminando com a abominável cena, protagonizada pelo deputado e supercoronel Floro Bartolomeu, do martírio do Boi Mansinho em praça pública e da coação de pessoas da comunidade a comerem de sua carne. Em 1926, o sítio foi cambiado entre coronéis e a comunidade, expulsa.
Tendo sido preso pelo episódio do Boi Mansinho e solto pela intercessão do Padre Cícero, o Beato Lourenço refundou a comunidade numa gleba sob tutela do padre, denominada de Caldeirão dos Jesuítas (devido a um poço que se mantinha com água mesmo nos períodos de estiagem). Ali, entre 1926 e 1937, refloresceu o experimento de igualdade e aliança com a terra atravessado por motivos escatológicos. Após a morte do Padre Cícero, em 1934, era ao Caldeirão que migrantes e refugiados da seca recorriam, incrementando aquela estranha sociedade da suficiência.
Em 1937, sem a proteção do padre, o quilombo-mutirão do Beato José Lourenço foi acusado de comunismo (era a época das fake news abjetas do Plano Cohen, cujo anticomunismo delirante levou à instalação do regime autoritário varguista), vigiado, assediado, atacado pela polícia (ao que revidou, naturalmente) e, por fim, teve sua última resistência bombardeada por um avião militar. Seus remanescentes tentaram se reorganizar na região de Casa Nova, na Bahia, na comunidade Pau de Colher, que foi igualmente assediada, encurralada e massacrada pela polícia, em 1938.
Canudos e Caldeirão são exemplos de movimentos de contracolonização que ocorrem por dentro e debaixo dos escombros de uma ordem cosmofóbica. Tais movimentos messiânicos terrestres ou mutirões escatológicos da terra constituem um conjunto de eventos de saudade do povoamento do cosmos. Não são coletivos amalgamados por caracteres etnológicos, nem por um programa homogêneo de um estrato social organicamente constituído: não são uma etnia, nem são um partido.
Trata-se de coletivos que se formam dos restos da operação de despovoamento do mundo, um povo-que-está-vindo de diversos antigos povos quebrados, um semblante de povo novo, ajuntando-se depois de mutilados cosmologicamente, portando pedaços da cosmologia perdida e marcas daquele poderoso deus que os seduziu, sequestrou e abandonou
As experiências comunitárias em torno dos beatos Antônio Conselheiro e José Lourenço são precipuamente sertanejas. Elas se desenrolam no sertão e mobilizam esta sua peculiar forma-de-vida chamada de mutirão. O mutirão não é uma herança indígena, como se diz – como se fosse um elemento arcaico que sobrevive, anômalo, ao tempo. Se o sertão é esse ente ambivalente que subsiste em sua relação com a colonização, mas subsiste necessariamente na forma da resistência à colonização, o mutirão é a forma indígena da socialidade sertaneja, virtualidade irresistivelmente resistente depois de todas as ondas exterminadoras. A busca por territórios onde assentar esses novos experimentos sertanejos é uma atualização dessa virtualidade, ao lado da prática indígena que hoje chamamos de retomada de territórios.
Cumpre observar esse aspecto assombroso do arraial de Canudos e do quilombo do Caldeirão, que é a tessitura de um estilo comunitário ao mesmo tempo coeso e livre, resultado da tentativa de confeccionar um território habitado por diferentes coletivos desmundificados, que congrega muita gente e não se coaduna ao modelo civilizatório de cidade. É impressionante que o ajuntamento de tanta gente de diferentes origens e tipos, não só sem o “auxílio” de um poder estatal, como em franca oposição ao Estado vigente, não tenha decaído no modelo urbano de ocupação territorial.
Apesar dos chistes pejorativos de Euclides da Cunha, que o chamou de “Troia sertaneja” e “Jerusalém de taipa”, no arraial de Belo Monte, em Canudos, todas as atividades econômicas, isto é, toda a circulação de bens materiais e simbólicos, estava diretamente ligada (para aquém da posse, para nem falar em propriedade) à ocupação coletiva da terra, à ligação umbilical com seus ciclos e à permanente expectativa de sua transformação. A capacidade de dinamizar esse tipo novo/ancestral de sociedade sertaneja, baseada no estreitamento dos laços entre comunidade e ecossistema, é um dos elementos que explicam a atração que essas experiências exerceram sobre as populações sertanejas hiperexploradas do entorno. E isso, me parece, tem tudo a ver com os aspectos escatológicos da pregação que as amalgamou.
No caso de entender o uso da teologia antirrepublicana do Conselheiro, por exemplo, basta relembrarmos essa espécie de “estudo de campo” que o beato realizou durante vinte anos de atuação pública no sertão do nordeste da Bahia e em Sergipe antes da fundação de Belo Monte, em Canudos. Antônio não só os viu de fora, como também se tornou causa de conflitos entre as forças coronelistas da região, incluindo as administrações eclesiásticas, devido à denúncia que fazia do progressivo depauperamento da população, de sua hiperexploração e da falta de recursos e perspectivas para as maiorias empobrecidas. Esse progressivo fim de mundo coincidiu com a mudança de regime de governo.
A pregação escatológica dos beatos fascinou a população esmagada do sertão porque, sem deixar de se remeter ao arcabouço básico da teologia tradicional, desviava sua imagem de mundo em prol da causa do sofrimento desta população, assoprando, assim, a pequena brasa da possibilidade de um modo de vida liberto do poder indistintamente opressivo que circunda e sufoca o povo desmundificado. A formação progressiva das experiências de Canudos e Caldeirão, em vez de uma ascese desmundificante, que fizesse desleixar dos laços atuais com o socius e com o cosmos, tornou-se uma preparação para um fim do mundo que exigia o cuidado com a formação da comunidade, o esmero com a ocupação da terra e o cultivo de antigas/novas relações de “mutualidade intensiva” com o ecossistema e com a esperança espectral pela transfiguração desta terra.
Nesse panorama, a natureza eminentemente mundificante (ou seja, a oferta imediata de um modo de vida que “salva”, que dá saúde em meio à desmundificação) de certos movimentos messiânicos apegados à terra permite-nos considerá-los como irrupção de grupos minoritários que se utilizam da “língua” dominante (aquela que inoculou a expectativa de desacoplamento da Terra) para oferecer uma saída, um respiro cosmológico – como sobreviventes de uma guerra de extermínio escorando a reconstrução de suas vidas nos escombros restantes.
Além disso, a terra desses messianismos terrestres parece ser antes o seu destino que seu ponto de partida; a direção escatológica, por assim dizer, desses movimentos seria contrária à direção normativa desmundificante, que, por sua vez, tem resultado em teocracia ou fascismo. Obtendo a visagem assombrosa de para onde caminha o projeto de desacoplamento, os profetas da Terra têm conjurado a contracorrente, pegado a direção e o sentido inversos e clamado erraticamente por uma fuga da transcendência para a terra.
Nessas pegadas, os mutirões escatológicos da terra seriam uma espécie de encarnação impaciente do ideário romântico da esquerda. E, para mencionar a manifestação contemporânea do regime cosmofóbico, o complexo neopentecostal/neoliberal seria a guarda pretoriana da ordem vigente. Asfixiados dentro da deserta esfera cujo destino presumido é o desacoplamento da Terra, os mutirões messiânicos empreendem a tarefa de transgredir esse destino, de aguardar a transformação radical desta Terra enquanto tentam reanimar seus sinais vitais, de reocupar esta Terra na saudade expectante do que virá na forma de não se sabe o que, talvez um índio em uma estrela colorida brilhante ou uma floresta de cristal…
Rondinelly Medeiros
É mestre em Estudos Literários e doutorando no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFPR. Atuou em programas de Articulação do Semiárido Brasileiro, na rede Cáritas Brasileira NE2 e no Consea-PB.
Kadu Xukuru
Designer e fotógrafo pertencente ao Povo Xukuru do Ororubá (PE). Atualmente cursa história na UCP e integra o movimento de retomada indígena da Zona da Mata Sul (PE).
Como citar
MEDEIROS, Rondinelly. Messianismos Terrestres. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 15, p. 120-127, dez. 2021.
Este número da revista teve como editores Felipe Carnevalli, Fernanda Regaldo, Paula Lobato, Renata Marquez e Wellington Cançado.