MINHA AGÊNCIA,
SUA CASA
Texto de Rosana Eduardo da Silva Leal
Idas e Vindas, desenhos em vetor de Diogo de Moraes
José Carlos começou com viagens pedagógicas. Laerte oferece fretes para shows. Celeste prima pelos piqueniques. Marluce, Maria Cristina e Mariete dividem lucros e prejuízos. Edilma se diverte, sempre. Irma e Rinaldo atendem em domicílio.
Aqueles que fretam os ônibus e planejam as viagens são chamados de fretantes. A singularidade desse ofício – que gera formas diferenciadas de se promover e realizar viagens – está na contínua adequação às necessidades, gostos e estilos de vida dos usuários.
Os fretantes servem como mediadores entre os viajantes e as localidades, devido, sobretudo, ao conhecimento que detêm sobre lugares, eventos, empresas e serviços. Por isso, desempenham um importante papel social em seus bairros. Em todas as etapas das viagens é possível identificar o controle pessoal de quem está à frente da empreitada, pois são os fretantes que decidem as modalidades de viagem, os destinos ofertados, os lugares a serem visitados, os meios de hospedagem utilizados, os preços e formas de pagamento, bem como a orientação e condução dos viajantes antes do trajeto e no seu decorrer.
Organizar viagens é um ofício que pode significar um meio de complementação de renda para uns ou principal fonte financeira para outros. Para muitas mulheres, trabalhar com viagens é uma atividade econômica capaz de garantir a manutenção de suas responsabilidades domésticas, que serve ainda como forma de diversão fora do cotidiano. “É um trabalho misturado com lazer e muita responsabilidade”, diz Dona Celeste.
Grande parte do planejamento das viagens é feita no ambiente doméstico. Em casa, onde os primeiros contatos começam a ser feitos com os participantes, são confeccionadas as programações. A casa é também o lugar onde boa parte das trocas financeiras costuma acontecer. Ela serve ainda como ponto de partida e chegada dos ônibus e como local de apoio aos viajantes na saída e no retorno da viagem.
Os fretantes contam com a colaboração dos familiares, que dão suporte ao planejamento, divulgação, trocas financeiras, atendimento telefônico, contabilidade e recebimento de parcelas na residência ou no trabalho dos participantes. Em muitos casos, os filhos começam a participar das viagens desde a infância, e, assim, tornam-se paulatinamente parte do negócio.
Os fretantes têm a seu favor algo cada vez mais difícil no mundo moderno dos negócios: a fidelidade dos participantes. Alguns viajam há mais de dez anos com o mesmo organizador, por nutrirem o sentimento de que se trata de uma grande família. “É um grande encontro, pois todos se conhecem. É um momento de confraternização. É o Turismo de Amigos”, como definiu um viajante em conversa informal.
Fiz assim um jeito de manter minha vida nas viagens
Casado, 47 anos e uma filha, Laerte Batista trabalha organizando viagem há 25 anos. Antes de ingressar no ofício, foi cobrador de ônibus em Recife, mas, depois de ficar desempregado, resolveu trabalhar por conta própria. Começou vendendo joias, depois passou a comercializar roupas e, em seguida, passou a organizar piqueniques.
Laerte conta que veio da Bahia para o Recife passar uma temporada, mas acabou ficando. Ele não reclama da vida de autônomo: além de deixar de se preocupar com o desemprego, tem um retorno financeiro maior que o salário mínimo. Toda semana costuma levar comerciantes e consumidores para centros de compras como Toritama e Caruaru, atuando também no segmento das viagens de compras. Serviços prestados a colégios incluem passeios e visitas técnicas a centros históricos, científicos, ambientes naturais e parques de diversões.
Na casa de Laerte, toda a família se envolve nas tarefas cotidianas ligadas ao ofício. “Quando eu estou na rua, minha esposa está em casa anotando os telefonemas. Eu tenho uma menina com nove anos que sai anotando todos os recados. Quando eu chego, ela já tem tudo anotadinho”.
Laerte atua também em bairros vizinhos, onde já tem uma clientela fixa, conquistada com um serviço diferenciado em relação aos demais fretantes entrevistados. Quando há shows no Recife ou em cidades interioranas do estado, costuma fazer o transfer, para usar a linguagem técnica – ou seja, levar e buscar os participantes. Tal serviço ajuda, sobretudo, as pessoas que não têm veículo próprio, já que nem sempre é possível pegar ônibus de linha para chegar e sair de certos lugares em muitos horários.
Minha agência é a sua casa!
Casados e com dois filhos, o casal Irma e Rinaldo trabalha com viagens há dezenove anos. Irma era vendedora de roupa e Rinaldo trabalhava numa empresa de ônibus, onde fazia a conferência das mercadorias que seguiam para outros estados. Tudo começou quando resolveram fazer um passeio para os amigos, levando-os a uma famosa cachoeira pernambucana. A iniciativa deu tão certo que começaram a atuar profissionalmente e, assim, deixaram para trás os antigos ofícios. Passaram a organizar passeios, viagens de compras e turismo – principal modalidade empreendida.
Desde então, o casal trabalha junto, antes, durante e depois de cada trajeto, mas cada um tem atribuições próprias. Rinaldo cuida da relação com os hotéis e dos veículos, enquanto Irma toma conta da contabilidade. O distintivo da dupla está na venda e recebimento das parcelas na casa dos próprios clientes, que são visitados mensalmente. Trata-se de uma tática que não se resume às trocas monetárias, já que também garante maior proximidade com fregueses, antigos e novos.
No primeiro caso, as visitas domiciliares são para receber o pagamento de parcelas e também divulgar futuras programações. No segundo caso, permitem observar a postura e o comportamento dos novatos, ajudando a definir se os futuros clientes podem ou não fazer parte das viagens. As visitas domiciliares também permitem que eles conheçam pessoalmente a forma de trabalho dos fretantes.
Como explica Irma: “Não existe um escritório. Existem nossas pernas e nossa própria vontade para buscar novas pessoas. Nosso escritório é dentro da nossa casa e dentro da sua casa. Porque o que eu tenho dentro da minha casa eu levo pra você”. Nesse sentido, trata-se de uma empresa simbólica e móvel, que se concretiza no momento em que a visita é feita. Conforme salienta Irma: “A minha agência é a sua casa. Apenas utilizo uma agenda de contatos e bato de porta em porta, na casa das pessoas. Não existe agência própria, fixada, e sim a residência de cada cliente meu”.
Irma considera a estratégia importante para o negócio: “Quando a pessoa vai para a agência, ela se comporta de uma forma particular, se resguardando. Não dizem que, na casa da gente, a gente pode ficar sem camisa e chamar quantos nomes quiser? Então, eu vou saber se aquela pessoa tem aquele nível que a gente está procurando. Porque não é só o cliente ter dinheiro pra viajar. É saber quem eu vou levar para a minha viagem”.
Além das viagens rodoviárias, o casal promove excursões de maior duração com a utilização de transporte aéreo, que possibilita oferecer percursos não só para o Nordeste, mas também para as regiões Sudeste e Sul do país.
O turismo de amigos
Casado, 54 anos, pai de três filhos e professor de geografia, Seu José Carlos chama suas viagens de “Turismo de Amigos”. Segundo ele, “as empresas na verdade têm aquele interesse econômico. E, como eu faço e outras pessoas fazem, não é só o econômico. É a questão do lazer, da família, de pessoas que são menos favoráveis no sentido econômico”.
Deficiente físico, nunca se intimidou em levar seus alunos para conhecer na prática aspectos do solo, vegetação, agricultura, pecuária, clima e relevo nas cidades do interior pernambucano. E, a partir das excursões pedagógicas, começou a organizar viagens para amigos, vizinhos e colegas de trabalho.
Foi o caso de Elomar, 61 anos, que viaja há 22 anos com Seu José Carlos. Ela trabalhava com o fretante e conta que, quando soube da primeira excursão que ele organizava para Paulo Afonso – local que tinha muita vontade de conhecer –, logo tratou de perguntar se haveria possibilidade de participar. Isso aconteceu em 1989, quando Seu José Carlos abriu suas viagens pedagógicas para o público de fora da escola. Segundo ela: “É uma coisa impressionante, que eu nunca me canso de ver. Já fomos para Paulo Afonso umas quatro vezes. De lá pra cá, Fortaleza, Juazeiro do Norte e, vem descendo, Natal, João Pessoa, Aracaju, Maceió, Salvador, já fomos a Petrolina, fomos ver também a usina de Salgadinho”.
Perguntado sobre como costuma arquivar as informações dos passageiros, Seu José Carlos explica: “Deveria já estar guardando num computador. Eu não tenho computador. Mas eu guardo numa pasta. […] Você foi uma primeira vez e, se foi uma segunda, não precisa mais me dar seus dados pessoais. Eu guardo numa pasta que é o que eu chamo de pasta de viagem”.
Desde que ficou desempregado, Seu José Carlos tem nas viagens um importante suporte para as finanças familiares, complementadas também com a ajuda dos filhos mais velhos. Atualmente o fretante faz em média um trajeto por mês envolvendo passeios, turismo e viagens de compras.
Eu fui aprendendo por conta própria
Dona Celeste, 55 anos, começou a promover viagens depois de comentar em casa, em tom de brincadeira, que pretendia organizar um piquenique para a cidade de Natal. No dia seguinte, a sua filha contou para as amigas do bairro e a notícia logo se espalhou pela vizinhança, motivando pedidos para que o passeio fosse feito. A sua primeira viagem foi para Ponta Negra, no Rio Grande do Norte, para onde conseguiu levar dois ônibus lotados.
Dona Celeste largou seu antigo ofício – de lavadeira de roupa – para se dedicar ao ramo das viagens, que se tornou sua principal fonte de renda. “Meu ganha-pão é essa viagem que eu faço”, ela diz.
Moradora de uma comunidade de pescadores da Zona Sul recifense, ela é hoje conhecida pelos passeios, piqueniques, romarias e excursões turísticas que organiza durante todo o ano. A sua rede de viajantes é formada não só por moradores da comunidade, mas também por pessoas de outros bairros e municípios do estado. Como ela mesma relembra: “Ninguém me ensinou. Eu fui aprendendo por conta própria. Fui assim cega. Fui levando, porque eu sei ler, pouco mas sei. Fui vendo as coisas, fui aprendendo, aprendendo…” Hoje ela tem 25 anos de experiência.
A principal ferramenta de trabalho de Dona Celeste é um caderno em que anota todas as informações que envolvem o planejamento da viagem, tais como a organização dos assentos, a divisão dos quartos de hotel e os valores pagos.
As passagens são produzidas pela própria organizadora e distribuídas aos clientes após a confirmação da presença e de parte do pagamento. São confeccionadas com cartolinas coloridas e identificam a viagem, o passageiro e o assento correspondente. Quando é utilizado mais de um ônibus, as cores são modificadas para diferenciar os transportes.
Eu nunca ganhei tanto dinheiro em minha vida
Marluce, 54 anos, casada e mãe de um filho, tinha uma loja de roupas no Centro do Recife e atuou por muitos anos como sacoleira. Para repor as mercadorias, precisava viajar semanalmente para diferentes polos de confecções no Nordeste. Durante os trajetos, gostava de ajudar a responsável pela viagem a cuidar do grupo e a resolver questões burocráticas que surgiam no percurso. Foi assim que uma companheira de viagem percebeu sua aptidão para o ofício e começou a insistir que passasse a trabalhar nesse segmento.
No início, Marluce optou por organizar apenas viagens de compras. Como não tinha muitos clientes, trabalhava em conjunto com a mesma pessoa com quem costumava viajar. A sua atribuição era levar os clientes para as respectivas localidades. Marluce ficava assim com boa parte das responsabilidades, enquanto a sócia vendia a maior parte das passagens – e ficava com a maior parte do dinheiro.
Foi então que decidiu abrir uma agência com a filha de uma amiga. Quando o negócio ia bem, sofreram um assalto na estrada que fez sua nova sócia desistir da empreitada. Naquele momento, Marluce decidiu fechar a empresa e continuar trabalhando sozinha. Pegou uma viagem de turismo com quatro ônibus, 180 passageiros, vinte crianças e oito motoristas. Conta que sofreu muito com as imensas dificuldades para serem recebidos em hotéis e restaurantes, mas que também “nunca viu tanto dinheiro em toda sua vida”. Hoje, Marluce trabalha em parceria com duas sócias, Maria Cristina e Mariete, com quem divide lucros, prejuízos e responsabilidades. Fez o curso de guia de turismo pelo SENAC e passou a ser responsável por conduzir os grupos no estado de Pernambuco.
A gente dá prazer ao passageiro que não conhece nada
Maria Cristina, 65 anos, é separada e mora com uma filha e dois netos. Antes da separação, era dona de casa e nunca havia trabalhado. Entrou no ramo de viagens há 26 anos, segundo conta, por causa de um casamento que naufragou. “Eu pedia muito a Deus que mostrasse, abrisse meus caminhos, me mostrasse uma luz. Aí, quando foi um dia, um senhor, que morava perto da minha casa, me chamou pra fazer uma viagem [para] Fortaleza. […] E não parei de lá pra cá”.
As viagens tornaram-se sua principal fonte de renda. Até então, só recebia uma pensão do tio falecido correspondente a um salário mínimo. Para ela, a vantagem de trabalhar com viagem é a diversão que dá aos clientes. “A gente dá prazer ao passageiro que não conhece nada. Numa viagem minha, mesmo, uma viúva ia chorando, aperreada… porque se sentia num vazio, triste. Depois dessa viagem, ela viaja direto. Arranjou um casamento… quer dizer, o objetivo da gente é que o passageiro se divirta, se distraia, o objetivo é esse”.
Maria Cristina trabalha em parceria com Marluce e Mariete fazendo viagens tanto para o Nordeste quanto para outras regiões do país. Muito centrada, exigente e responsável, é, segundo as companheiras, o “cérebro” da equipe. Marluce conta: “Uma hora ela é minha mãe, outra hora ela é minha filha, uma hora ela é minha irmã e uma hora ela é minha inimiga. É muito engraçado”.
Maria Cristina costuma viajar com suas companheiras quase semanalmente para acompanhar os grupos em excursões turísticas e viagens de compras. A sua filha é formada em guia de turismo e trabalha com outros fretantes e agências de turismo no Recife. Mas, segundo Marluce, mesmo não tendo curso, Maria Cristina “[…] tem muita vivência, muita inteligência assim pro turismo. Ela não tem o curso de guia, mas pra mim ela é uma professora, mais do que a do SENAC”.
Além de me divertir, vou ganhar meu dinheirinho
Mariete, 60 anos, é professora do ensino fundamental e pós-graduada com formação em Biologia. Viúva, é funcionária pública e recebe pensão do marido falecido. Começou a levar grupos da escola em que trabalha para cidades nordestinas quando recebeu um convite da diretora para ser responsável por uma viagem a Fortaleza.
“Não se preocupe com isso”, disse para a diretora, e cuidou da viagem toda. No ano seguinte, o convite se repetiu. Mariete não pôde ir, mas cuidou de tudo antecipadamente: preparou comida junto com familiares, agenciou a pessoa da faxina, reservou ônibus, etc. “Naquela época nós podíamos viajar à noite e a viagem rendia bem mais. Hoje não se pode mais, por causa dos assaltos”.
Há cerca de oito anos, Mariete trabalha em parceria com Marluce e Maria Cristina, acompanhando grupos somente nos finais de semana e feriados, devido ao trabalho na escola. Conheceu primeiro Marluce, que a convidou para trabalhar em parceria, e depois Maria Cristina. Hoje acredita que é muito melhor trabalhar com as sócias.
Para Mariete, trabalhar com viagem é uma mistura de trabalho e diversão. Ela esclarece: “Sou viúva e é um lazer. Além de me divertir, vou ganhar meu dinheirinho”. Sempre que dá, os filhos, o genro e a nora também viajam com ela para ajudar nos afazeres no decorrer do percurso.
Esquece de casa, esquece aperreio, esquece tudo
Dona Edilma é viúva, tem 62 anos e trabalha com viagens há cerca de 20 anos. É mãe de dois filhos e mora com o mais novo. Tem o 1º grau completo, trabalhou 18 anos no comércio e aposentou-se após pagar o INSS por conta própria. Hoje tem sua aposentadoria, a pensão do marido, a ajuda dos filhos e ainda complementa a renda com as excursões.
Tudo começou quando seu filho, ainda pequenino, começou a dançar quadrilha e precisava arrecadar recursos para fazer as roupas. Foi então que foi chamada pelos integrantes do grupo para organizar um piquenique como forma de gerar verba para a quadrilha. Primeiro, Dona Edilma negou, com receio da responsabilidade que deveria ter, mas acabou aceitando a empreitada em seguida. Ela conta: “Eu fiz a viagem. Aí gostei, ganhei meu trocado e só fiz essa pra quadrilha. Passei a fazer pra mim, até hoje”.
Começou fazendo piqueniques, mas hoje organiza passeios, viagens turísticas e de compras. Deixou de fazer piquenique porque, segundo ela, dá muito trabalho, vai muita gente jovem e é mais difícil de controlar. Já nas demais viagens vão pessoas maduras, calmas, que dão menos trabalho.
Para Dona Edilma, as viagens também são fonte de lazer e diversão, uma forma de distanciamento do cotidiano de dona de casa. “Vou passear, a gente esquece de casa, esquece aperreio, esquece tudo”.
Rosana Eduardo da Silva Leal
Doutora em antropologia, é professora do curso de turismo da Universidade Federal de Sergipe.
Diogo de Moraes
Artista e mediador cultural, coordena o Núcleo da Imagem e da Palavra do Sesc Vila Mariana.
Como citar
LEAL, Rosana Eduardo da Silva. Minha agência, sua casa. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 7, p. 98-103, jan. 2015.