MUDA
TUDO
Graziela Kunsch
O vídeo Abertura de portas é uma das ações que tive a alegria de registrar, durante a histórica luta contra o aumento da tarifa de ônibus em São Paulo, em 24 de novembro de 2006. Naquele dia vários ônibus do Terminal Parque Dom Pedro tiveram suas portas traseiras abertas, para a população poder voltar para casa sem ter que pagar. Ainda assim, muita gente preferiu entrar pela porta da frente do ônibus e passar pela catraca. A polícia entrou no terminal e atirou bombas e balas de borracha nos manifestantes, deixando alguns gravemente feridos.
Quando a gente fala sobre transporte coletivo gratuito (ou “passe livre” ou “tarifa zero”), precisa ter em mente que essa luta implica a quebra de uma série de paradigmas. As pessoas estão tão acostumadas com a existência de uma catraca dentro do ônibus e na entrada do metrô que acham normal pagar por um serviço supostamente público. Achamos normal que mais de 37 milhões de brasileiros sejam excluídos do direito ao transporte porque não podem pagar pelas tarifas. Consequentemente, é normal que essas pessoas sejam excluídas de outros serviços “públicos”, porque muitas vezes não é possível chegar até uma escola ou até um hospital a pé. A prefeitura acha normal ceder o controle sobre as linhas de ônibus para os empresários donos dos ônibus.
E se vem alguém dizer que nada disso é normal, que as catracas precisam ser retiradas, que ônibus e metrô precisam ser gratuitos, que a distribuição de renda – uma reforma na cobrança de impostos – é necessária, que o controle sobre as linhas de ônibus deve ser municipalizado e gerido com participação popular, essa pessoa será tida como louca. Como disse certa vez o Lúcio Gregori: “a tarifa zero muda tudo, muda tudo”.
Você já pensou em entrar num ônibus urbano sem ter que pagar a tarifa, sem ter que passar pela catraca, ou mesmo debaixo dela? Já pensou em um ônibus sem catraca? Tente imaginar! Atualmente a maioria das linhas seguem trajetos lineares; será que seria mais interessante haver mais linhas circulares, passando por dentro dos bairros? Você gostaria de não ter destino certo, como alguém que anda a pé ou de bicicleta e pode sempre variar seu percurso, se perder um pouco, encontrar coisas interessantes pelo caminho? E os próprios ônibus, podem ser diferentes? E se tivermos ônibus menores, porém em grande quantidade, diminuindo o tempo de espera? E como você gostaria que fossem os pontos de ônibus?
Cada um de nós, sem exceção, tem algo a pensar, a dizer e a fazer a este respeito. A maneira como nossa imaginação individual e coletiva funciona é muito importante para definir a cidade onde queremos viver. Podemos imaginar situações as mais diferentes para as áreas públicas das cidades e essa utopia precisa ser considerada experimentalmente. Ocupando as ruas, abrindo as portas dos ônibus, pulando catracas, desenhando ciclofaixas no asfalto e o que mais pudermos inventar para espacializar a ideia de uma rede de transporte diferente e, junto com ela, uma cidade renovada.
Graziela Kunsch
Artista, idealizadora da revista Urbânia e do projeto Arte e Esfera Pública, abriu sua casa e sua biblioteca em São Paulo para uso público.
Como citar
KUNSCH, Graziela. Muda tudo. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 1, p. 49, jan. 2010.