O CAMPINHO
Texto de Ettore Bottini
Campos, de Joachim Schmid
Dizem os especialistas em marketing, esses modernos depositários da filosofia ocidental, que o homem comum vê, o homem de visão antevê. Tal pérola de sabedoria pode muito bem aplicar-se ao garoto que teve a ideia de construir o Campinho. O que durante muitos anos era apenas um terreno baldio, coberto de mato espesso e lixo dos vizinhos, foi em dado momento contemplado com os olhos sonhadores daquele que anteviu todas as suas possibilidades. O sujeito seria merecedor, sem dúvida, do título Moleque de Visão do Ano, se alguém lembrasse quem foi. Ao incorporar-me à frente de trabalho, voltando da derradeira prova de matemática, a ideia tornara-se propriedade de quatro ou cinco, e a turma toda estava em polvorosa.
Traçamos um cronograma preliminar, com o término das obras marcado para antes do Natal, e fizemos um levantamento de infraestrutura nas garagens paternas: velhas ferramentas de jardinagem, pás, enxadas, tesouras de podar, uma picareta pequena e um machado cego. Como mouros, literalmente mourejamos de sol a sol, porque dezembro começava e fazia um calor africano. A capina era intensa, mas a pior parte era levar de bicicleta o lixo produzido até outro terreno baldio distante: colocávamos feixes de mato rasteiro em dois grandes sacos laterais, que atrapalhavam os pedais; os arbustos maiores precisavam ser rebocados, o que exigia um batedor à frente e um atrás, para controlar o trânsito. A decisão inicial de queimar o entulho no próprio terreno fora abandonada após discussões e vetos familiares. Acabamos concordando porque descobrimos que era possível preservar um capinzinho baixo na maior parte das laterais do campo; tivemos de fazer exaustivos movimentos de terra para nivelar o centro, mas o simulacro de gramado que restara era bonito demais para ser queimado. A proteção das matas ciliares, uma demonstração de consciência ecológica inusitada para a época, estendeu-se até um grande pé de mamona nos fundos do terreno, que lá ficou, atrapalhando os escanteios pela direita. Inconveniente menor compensado pela provisão abundante de munição e pelo prazer de ver explodir as sementes mosqueadas de marrom, no começo do outono.
O trabalho avançou lentamente nas duas primeiras semanas, enquanto ainda não podíamos contar com os caras que ficaram de exame, ou pior, de segunda época. Depois, mesmo com braços a mais, parecia claro que não concluiríamos a obra no prazo, se não fosse por alguns adultos que resolveram nos dar uma mão, incrédulos no começo, mas depois convertidos à causa. É sempre assim: as vanguardas devem perseverar pois, mais cedo ou mais tarde, as massas ignaras acabarão entendendo o seu destino. Um desses adultos, pai do Morcego, fez o transporte final de entulho em sua Vemaguete e, na volta, trouxe orgulhosamente caibros de peroba novinhos para as traves. Se ninguém ainda o fez, aqui fica nossa homenagem.
Dois dias antes da véspera de Natal, estava quase tudo pronto. O campo limpo e razoavelmente nivelado tinha topografia parecida a uma mesa de pebolim, um pouco mais elevada junto às laterais e aos cantos. As traves, de precária ortogonalidade, foram caiadas de branco e as linhas demarcatórias pintadas com a cal que sobrara, mas faltavam as redes. Fomos cobrar do Léo, que se comprometera a fazê-las dizendo que sabia tecer, e usando isso como pretexto para se escamar do trabalho pesado; ouvimos a desculpa esfarrapada de que o pai o fizera estudar todos os dias para a segunda época e não tivera tempo, mas prometia entregá-las antes do ano novo. Depois de xingá-lo por algum tempo, convocamos uma reunião para decidir o que fazer, como fazem Diretorias em pânico. O Natal era importante, pois todos nós, sem exceção, ganhávamos bolas de capotão, junto com quinquilharia menos desejada. Era uma noite de folia, a chuva de verão caindo lá pelas nove, todo mundo passando na casa de todo mundo para beliscar a ceia e, depois da meia-noite, saíamos para o asfalto morno que ainda cheirava a vapor e estreávamos nossos presentes. As meninas também saíam, com bolas de vôlei e cordas de pular, e a rua virava uma grande praça esportiva durante a madrugada. Naquele ano, planejávamos convidar todos para o Campinho, mas seria impossível. Não passava pela nossa cabeça a ideia de inaugurar urna obra inacabada, como fazem os políticos, e assim resignamo-nos com a data do ano novo. Na tarde do 31, estávamos inspecionando o gramado, meio macambúzios e pensando em quanto jornal velho e garrafas teríamos de vender para comprar redes de salão, quando o Léo apareceu com uma sacola de feira abarrotada. As redes! Não, a rede, pois ele só fizera uma, de corda de sisal barata, parecendo o trabalho de uma enorme aranha drogada, mas os nós eram firmes, e quando contamos quantos tinham, resolvemos perdoar o Léo. Buscamos martelo e pregos e fixamos o véu da noiva no gol que dava para a rua, já que o outro tinha um muro alto atrás, que separava os fundos de duas casas da rua de cima. Enrolamos por ali até o anoitecer, chutando bolas mansas contra o gol vazio, só pelo gosto de balançar a grinalda, e depois fomos para casa tomar banho e acompanhar a São Silvestre.
No dia seguinte, o jogo inaugural não foi muito memorável, mas serviu para tomarmos contato com o campo, descobrirmos suas particularidades e estabelecermos algumas regras. A primeira era que apoiar-se nos muros ao lado das laterais seria considerado falta de dois toques. Definimos também as distâncias ideais para a barreira e para a cobrança de pênalti, e concordamos, depois de uma cacetada do Tiguêis, ser de bom alvitre comunicar aos adultos que, na falta de alambrado na entrada do campo, era arriscado deixar carros estacionados por ali.
Confirmando que obras urbanas transformam as relações sociais, nesse dia anexamos ao grupo mais um elemento: o Guto. Escalávamos os times através de um sofisticado jan ken po combinatório, quando um desconhecido mostrou a cara por cima do muro, junto ao pé de mamona, e perguntou se podia jogar. E, a partir da entrada dele na turma, as bolas que caíam na sua casa eram alegremente jogadas de volta pela empregada, depois de alguns berros nossos. A casa ao lado, porém, era habitada por uma gorda xarope (segundo descrição do Guto, porque nunca a vimos). Ao perceber o muro defendido por cacos de vidro na primeira bola que lá caiu, sentimos que a guerra era iminente. Fizemos escadinha, um dos nossos subiu com um tijolo na mão, quebrou os vidros e pulou, caindo numa pequena área de serviço ladrilhada. A volta era mais fácil, pois a altura do outro lado era menor, mas a partir daí começou uma luta surda que se estendeu durante meses, as defesas sendo irritantemente refeitas à medida que as destruíamos. Até que, num belo dia, a gorda desistiu dos cacos e colocou – pasmem – um enorme e vermelho caranguejo na área. Foi a primeira e única vez que vi alguém usar um caranguejo como animal de guarda, mas funcionou: aquele bicho sinistro e silencioso nos assustava mais do que qualquer cachorro. Melhor assim, porque, com o tempo, perdemos o respeito por ele, mas a mulher se sentia protegida e não voltou aos vidros.
E esta é a história do Campinho; resta dizer que o piso já estava completamente careca no final das férias, e já admitia a prática de várias outras modalidades, como finca e bola de gude, mas o futebol continuou soberano, atraindo garotos de toda a redondeza para os desafios de fim de semana. Às vezes até um otimista vendedor de refresco aparecia, com a caixa de isopor a tiracolo.
Ettore Bottini
Artista gráfico e vencedor de um Prêmio Jabuti. Este texto integra seu livro Mãe da Rua, lançado em 2007 pela editora Cosac Naify.
Joachim Schmid
Artista, vive e trabalha em Berlim.
Como citar
BOTTINI, Ettore. O campinho. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 3, p. 21-22, jul. 2011.