O FERRO E
AS FLAUTAS
Texto de Ana Paula Rodgers
Histórias de ver, desenhos de Joseca Yanomami
Se vocês acabarem com os rios, os peixes, as árvores, os iyakayriti vão se vingar e matar todos os Enawene Nawe. Os iñoti devastarão tudo, então não haverá mais nenhum peixe, nenhum ritual e nem ancestrais, e assim morreremos. Todos morreremos, inclusive os iñoti, a diferença é que nós sabemos, vocês não.
Para que possamos compreender o que se passa no encontro relativamente recente entre os Enawene Nawe e as forças não indígenas de espoliação e destruição direta e indireta de seu território, promotoras de um contínuo assédio e interpelação oriundos do Estado e de empreendedores, devemos introduzir um personagem de parco repertório narrativo, mas protagonista de impactantes decisões na era mítica. Trata-se de Daleokoto, o chefe dos iñoti, os não índios.
Os iñoti, ou não índios, fazem parte das populações que estavam dentro da pedra primordial e eram liderados por seu chefe, Daleokoto. No mundo lítico havia diversos povos e chefes, embora haja povos originados de outras situações. Não obstante essa origem dos iñoti ser considerada mais nobre que a de outras populações adventícias, há pouca narrativa para os feitos desta população. Mesmo assim, a distintividade de Daleokoto com relação a Wadare, chefe dos Enawene Nawe, é grande e se deve a uma única e categórica decisão tomada pelo chefe dos iñoti: a de levar consigo o metal (kamatera).
Na ocasião da expulsão das populações do mundo lítico, os diversos chefes se depararam com a difícil escolha entre ficar com o machado de pedra ou com o machado de metal. Daleokoto não ouviu as recomendações de Wadare quanto ao poder incomensuravelmente deletério do metal, e assim escolheu levá-lo iniciando sua jornada radicalmente divergente, enquanto todos os outros mantiveram-se sob a égide de Wadare, que escolheu ficar com o machado de pedra. Isso nos indica a intensidade da oposição entre Wadare e Daleokoto. Enquanto Wadare está intimamente ligado à perecibilidade corporal dos materiais utilizados no mundo indígena, Daleokoto tomou o rumo de um desgarramento radical – indiferente a toda essa continência, se esvaiu pelo mundo encabeçando a férrea diáspora dos iñoti.
Como certa vez discursou consternado o chefe Ataina, xamã e mestre dos cantos, a respeito da iminência das hidrelétricas em suas terras tradicionais, Daleokoto afastou-se inexoravelmente do ethos indígena porque decidiu portar um instrumento que causa grande devastação na floresta, abatendo rapidamente uma considerável quantidade de árvores e demonstrando total indiferença à habitação cosmo-geográfica dos iyakayriti (espíritos subterrâneos).
Dentre os diversos exemplos na literatura etnológica da região tratando da associação entre os não índios e o metal, mineral imputado de uma potência descomunal de doença e morte, fruto de uma avaliação experimentada da capacidade de extermínio por parte daqueles que o detêm, esse motivo foi tratado com mais precisão pelos yanomami.“A fumaça do metal” é o índice dessa potência conforme formulado por eles ao buscarem lidar histórico-interpretativamente com o espantoso ímpeto de desterritorialização ostentado pelos não índios.
Voltemos ao mundo Enawene Nawe, com base no que sabemos sobre alguns eventos marcantes do processo de “contato” com os não índios. Em primeiro lugar, ao analisarmos a palavra empregada para designar o índice de potência dos não índios, chegamos a algo muito semelhante ao caso yanomami: kamatera é a versão contraída do paresi kamatihera, em que kamati é “morte” para ambas as línguas, e o sufixo -hera corresponde ao -hwera enawene nawe, que contém as noções de arrebatamento, arremetida, turbilhão, fúria, rapidez ou pressa (ahwerare), “como uma onda no mar” ou “a iminência de um ataque”, segundo as explicações – kamatihwera, “a arremetida da morte”, é uma possível tradução da palavra para “metal”, congruente com as exegeses yanomami.
Mas há mais: dos objetos de metal, os Enawene Nawe dizem frequentemente que não morrem, algo de que se ressentem como estranho e inadequado, como diversas vezes exprimiram com desconfiança acerca de nossos gravadores de pesquisa: kamatera alita mahiã maini (“o metal fica, não morre”). A imperecibilidade do metal significa que esse elemento sobrevive à morte, e por isto condensa em suas propriedades mais fundamentais o próprio ímpeto letal. É uma espécie de mestre do princípio da morte, em sua fúria de dureza sobre os corpos bem mais perecíveis da floresta.
Se a relativa imperecibilidade dos instrumentos metálicos exacerba o princípio de letalidade mesmo dos materiais mais duros manejados pela ecologia indígena (as pedras), aportando uma contínua sensação de incomensurabilidade de sua potência, isto significa que certos limites importantes foram de fato ultrapassados, mesmo aqueles que já preveem seres tão indomáveis quanto os que habitam os confins inóspitos da cosmogeografia yanomami – algo trabalhado no repertório das populações subandinas a propósito de seus vizinhos das Terras Altas, manipuladores de minérios, escavadores contumazes de buracos.
Os Enawene Nawe, ao contrário dos Yanomami, localizam os iñoti no interior da própria origem (a pedra primordial), conferindo-lhes um estatuto de aõre (chefes/donos) em relação a outras etnias tidas como de origem adventícia pós-pedra, que são pouco ou nada aõre. Essa relativa estabilidade com que a posição dos não índios foi absorvida na cosmologia enawene nawe reflete uma característica da sua filosofia e organização social, mas nem por isso se deixa de reconhecer renovadamente a radicalidade indesejável e avassaladora do manejo social e ecológico empreendido por essas populações que no passado decidiram por um instrumento que torna o trabalho “mais fácil”, indiferentes à contrapartida de seus altíssimos poderes deletérios. A morte de todos os seres, a começar pelos próprios Enawene Nawe, é o fator apocalíptico inerente a essa nova fase da equação Wadare-Daleokoto, conforme alertaram todos os chefes a respeito da iminência das hidrelétricas: “Se vocês acabarem com os rios, os peixes, as árvores, os iyakayriti vão se vingar e matar todos os Enawene Nawe. […] Os iñoti devastarão tudo, então não haverá mais nenhum peixe, nenhum ritual e nem ancestrais, e assim morreremos. Todos morreremos, inclusive os iñoti, a diferença é que nós sabemos, vocês não”.
Sabemos, de relatos dos próprios Enawene Nawe e das poucas fontes historiográficas disponíveis nos acervos brasileiros sobre a região, que esse povo indígena foi o último do seu entorno territorial a travar contato com não índios. Enquanto as frentes seringueiras – já por volta de sua terceira investida na região na década de 1960 – e missionárias – sobretudo capitaneadas pelas Missões Anchieta e Luterana – tinham travado contato com Cinta-Larga, Rikbaktsa, Irantxe, Myky, Nambiquara e Paresi, com os Enawene Nawe havia contato muito esporádico, belicoso ou furtivo apenas. Muitas décadas antes disso, Rondon já havia chegado com sua linha telegráfica em território de perambulação dos Enawene Nawe, e não se tem notícias diretas de um encontro com eles. Mas sabemos que erigiram aldeias a partir do final da década de 1940 no Rio Camararé, praticamente colado ao extremo norte das linhas metálicas (também as chamam kamatera), que os Enawene relatam como limite do qual fugiram deliberadamente.
Durante muitas décadas tiveram acesso a alguns utensílios de metal (como facões, machados e anzóis) através dos vizinhos Nambiquara, com quem vimos que cultivam relações complexas e seculares de guerra, troca e participação em sua estrutura social. Ou seja, se sabiam há muito da existência e prolificidade tecnológica dos iñoti, jamais quiseram acolhê-los em sua razoavelmente aberta segmentaridade social, como aconteceu com outras populações. Foi apenas após uma investida maciça de projetos de colonização promovidos pelo governo federal entre o final da década de 1960 e início de 1970, no auge do período militar, que sobrevoos constantes à região, somados a tentativas direcionadas de contato com essa etnia que remanescia no entorno das vastas ocupações nambiquara, cinta-larga e rikbaktsa, conseguiram de fato chegar aos Enawene Nawe e fazer-lhes decidir pelo acolhimento, ainda que extremamente relativo e cauteloso, da presença iñoti. Para avaliar o que se passa entre os Enawene Nawe a partir daí é preciso levar em conta essa longa e significativa recusa, um pano de fundo operante informando decisões e reações futuras, bem como os solavancos sofridos.
Após o contato oficial com os iñoti em 1974, um episódio em particular é considerado unanimemente como aquele que inaugurou um grande impacto direto sobre a vida socioeconômica dos Enawene Nawe: a substituição da frota de canoas de casca de jatobá por barcos de alumínio e motores de popa, em 1998. Os motores foram oferecidos como moeda de troca pelo sojicultor André Maggi, que também era prefeito de Sapezal, na tentativa de construção de uma estrada que pretendia facilitar o escoamento de sua produção agrícola.
Segundo depoimentos colhidos em 2006 para uma perícia sobre a construção dessa estrada, consta que Camilo Obici, o principal empreiteiro do prefeito Maggi, teria dito: “Eu sou muito bom. Além dos motores, eu vou construir um posto de gasolina para vocês”. Consta que na reunião estava presente também André Maggi. “Um velhinho andou de braço dado com Laloalohiene e comigo. Foi prometido o posto de gasolina. Camilo, André Maggi e Blairo, filho dele, estavam juntos. Disseram que iam trazer médico, fazer uma ponte sobre o Rio Juruena: ‘Não vai acabar, as coisas não vão acabar. Vou trazer camisas… Por que a OPAN não dá Toyota? Vou trazer Toyota para vocês. Por que a OPAN não dá motor? Vou trazer motor. Vou fazer uma estrada até a aldeia de vocês. De asfalto. Na estrada, vocês vão poder colocar uma corrente para cobrar pedágio dos caminhões’, ele disse”. (Processo 1998.36.00.005807-4, 1a. Vara da Justiça Federal, Seção de Mato Grosso)
Considerando a lógica fluvial enawene nawe (os rios são os caminhos preferenciais), essa mudança promoveu não apenas uma aceleração vertiginosa no padrão de deslocamento dos Enawene Nawe, mas suscitou um novo foco emblemático em sua economia: a necessidade perene de combustível para sustentar a locomoção, um bem altamente volátil e custoso para ser utilizado na escala necessária para alimentar uma frota de barcos percorrendo grandes distâncias. A aquisição súbita dos motores representou de imediato uma situação de risco interno, com o preenchimento por bens materiais de uma hierarquia nativa baseada mais no prestígio que no acúmulo diferenciado de recursos (grupos “com motores” versus grupos “sem motores”), conforme narrativas dos indigenistas presentes à época:
“De início foram sete motores. A transição levou anos. Nem todos os clãs tinham motores. Os clãs mais fracos tiveram que se virar. A primeira mudança deve-se a esse mal-estar, porque nem todos os clãs tinham motor. […] Sotairiti, por exemplo, o primeiro a comprar um motor, parou tudo que estava fazendo e juntou-se ao filho para fazer artesanato, largaram todas as suas atividades para fazer artesanato para vender. Quem não ganhou motor teve que mudar sua rotina, para acompanhar quem tinha motor…”.
Pouco tempo depois, o risco do desvio radical de seus limites sociológicos, proporcionado pela aquisição maciça e desigual do metal – hoje os motores ultrapassam a casa de 70 unidades –, foi afastado e o equilíbrio entre os clãs e pessoas, novamente restabelecido. Isso se deu por ocasião da introdução pelo governo federal do sistema de aposentadoria e outros benefícios sociais extensivos aos povos indígenas: com essa nova fonte de renda, ampliou-se a possibilidade de aquisição de novos motores e combustível. Nesse ponto, em vez de acentuarem as hierarquias recentemente preenchidas por bens materiais de fora, realizou-se um complexo sistema de aglutinação e redistribuição dos recursos, de modo a prover de motores aqueles que ainda não tinham acesso – e assim temos um primeiro indício de como a economia nativa se comporta diante de situações de injeção maciça de bens, observando-se que o sistema de manejo das carteiras de aposentadoria permanece até hoje.
A experimentação concreta das relações assimétricas e imensuráveis que marcam as trocas e os conflitos de interesses entre indígenas e não indígenas, especialmente em contextos de expropriação pelas elites agrárias em conjugação com o Estado, retornou de maneira exponencial no processo de licenciamento do Complexo Hidrelétrico Juruena, empreendimento de um consórcio envolvendo novamente o grupo Maggi, como parte das previsões de exploração hídrica inventariada pelas agências estatais de pesquisa energética. Esse conturbado processo, deflagrado em 2003, envolveu estudos, consultas e negociações obscuras, mediadas por agentes do Estado, consultorias privadas para avaliação de impacto ambiental e demais representantes dos empreendedores. Afora todos os recorrentes mecanismos de aliciamento e intimidação encontrados nas “negociações” da esmagadora maioria dos processos de licenciamento ambiental de hidrelétricas, o processo trouxe, particularmente do ponto de vista dos Enawene Nawe, um cenário de desolação diante dos indícios de afetação direta do ambiente hídrico e dos recursos pesqueiros, agressão evidente às moradas dos iyakayriti nawe.
A empreitada foi tomada como prenúncio apocalíptico. Primeiro, sobretudo as mulheres, tinham medo de que fossem literalmente afogar-se por conta do barramento do eixo principal da malha de cursos d’água. Uma vez mais bem compreendida a situação, o temor voltou-se para um problema não menos apocalíptico, o qual já estava no cerne das preocupações de todos os chefes e mestres rituais: o fato de os inõti estarem mexendo de forma predatória e irreversível sobre o território iyakayriti, especificamente atingindo suas moradas.
“Por que estão fazendo isso? O que querem exatamente os iñoti com essas barragens? O que pensam que estão fazendo conosco?”. Buscava-se apreender alguma consistência que moldasse o comportamento dos iñoti: de que eram feitos, afinal, esses não índios? Como poderiam agir guiados por tamanha indiferença às moradas dos espíritos? Essas questões, ininterruptamente colocadas a nós e a si mesmos, tiveram (e têm) na praça da aldeia seu lugar preferencial de exposição e experimentação sonora: reuniões diárias, muita veemência discursiva, revolta, possibilidades de reversão da situação, indagações sobre as pessoas ligadas aos empreendedores, ao governo, à FUNAI, etc.
O fato é que a irrupção dessa situação apresentou como efeito colateral uma dinâmica que detinha o empenho das forças dos Enawene Nawe, primordialmente voltadas ao cumprimento das ações rituais, revertendo-as para atender também à infinidade de súbitas reuniões e tentativas de barganhas, num processo contínuo de assédio, intimidação e pressão por parte dos empreendedores. Essa pressão tinha por intuito levar adiante as “negociações” em torno do programa de compensação e mitigação às obras. Na prática, sabemos que, sejam quais forem as ações planejadas, o montante acordado, sejam eles mais ou menos custosos, o que se busca acima de tudo é a aquiescência, mesmo que temporária na prática, dos povos indígenas, suficiente para que o empreendimento seja de fato construído.
Nessa tentativa de barganha, três anos se passaram tendo a negativa peremptória dos Enawene Nawe como única decisão coletiva. Mas paralelamente à iminência de assalto ao território, ressentiam-se enormemente do assédio que lhes perturbava o bom andamento do ciclo anual de rituais que envolvem todas as suas atividades de subsistência, dentre eles o mais longo deles, chamado iyaõkwa. Abria-se assim a possibilidade de uma grande chaga interna, considerando-se que os rituais lidam com grupos de espíritos entre si, em seu ritmo de espera segundo o rodízio, e o recebimento adequado de bebida, comida e a performance de cantos, flautas sagradas e danças. Tudo isso é muito complexo para ser tratado em segundo plano. Esta sempre foi uma fala categórica dos Enawene Nawe: “Vocês, iñoti, não sabem nada sobre o iyaõkwa, talvez apenas um pouquinho, mas nada sabem das consequências de não se fazer bem o iyaõkwa”.
Os Enawene Nawe não têm a maloca clássica, mas têm a casa de flautas, cujo mastro central é tão arbóreo que por vezes torna a brotar como uma árvore viva, seus galhos novos vicejam para fora no cume da estrutura cônica. Na exploração da imperecibilidade máxima alcançável pelos materiais orgânicos no âmbito da estética ameríndia, é primordialmente através das flautas secas que se ausculta o espaço sociocósmico. Nesse cenário, a casa de flautas aparece como um momumento-limite da arquitetura indígena, eixo espiralar integrador entre as camadas do cosmos. A casa de flautas projeta nos conjuntos de instrumentos musicais todos os conjuntos de iyakayriti espalhados pelo território.
Iniciou-se um périplo de mais três anos no qual estava em jogo a decisão por “assinar [ou não] a compensação”, conforme “idiomática imposta”, pronunciada diariamente por agenciadores dos empreendedores. E mesmo que o inchaço de recursos decorrente de uma possibilidade de concordância fosse ainda potencial, mesmo sem se ter acertado, em definitivo, acordos ou quantias, esse excedente virtual passou a provocar debates infindáveis, gerando euforia, dúvidas, desavenças, incertezas e temor. O que fariam, afinal, ao aceitar uma determinada quantia de dinheiro em “troca” da espoliação de seus rios? Qual seria a reação dos iyakayriti nawe? Como a máquina ritual absorveria e distribuiria esse excedente injetado de maneira súbita e sem escala na veia do socius?
“Nossas cabeças estão doendo!”, reclamavam repetidamente os Enawene Nawe em diversas ocasiões. Essa passou a ser a sua maior preocupação ecoando, em nova escala, aquilo que ocorreu no passado recente. As reuniões pareciam ter o objetivo menos de propriamente negociar do que dissolver essa perspectiva duplamente monstruosa e radicalmente perturbadora – a destruição do hábitat dos espíritos e o acolhimento de um montante de dinheiro ou utensílios e bens que necessitavam redistribuir muito cautelosamente para não estilhaçar o seu complexo equilíbrio frente aos inúmeros grupos transversais de pertenças.
Não surpreendentemente, tal dissolução parece ter-se feito primordialmente através da experimentação sonora da linguagem nos debates intermináveis que se concebiam como de necessidade premente. “Aceitar a compensação” passou a ser o nome de uma espécie de protagonismo ao reverso, repetido por eles como um mantra, conforme costumam fazer com conceitos que lhes são absolutamente desconhecidos, como se para extrair de sua sonoridade alguma intuição semântica que lhes faça sair da obscuridade conceitual, alguma intuição sobre a sua continência corporal, sua capacidade de afecção.
O mecanismo de tentativa de apreensão dos propósitos de pessoas oriundas dos iñoti pela repetição oral da palavra-chave, a palavra-emblema de uma nova relação que vem de fora, ocorreu frequentemente no começo de minha pesquisa, que foi o primeiro projeto a trazer uma agenda a princípio integral e exclusivamente voltada à pesquisa entre os Enawene Nawe – ou seja, um projeto inicialmente desvinculado de quaisquer outras instâncias de apoio ou assessoria a eles, atrelado apenas à universidade, instituição praticamente desconhecida por eles até então.
Sobretudo nos primeiros anos, entre 2000 e 2002, repetiam incessantemente a palavra: “pesquisa, pesquisa, pesquisa…”, de diversos modos e entonações, como que (des)cantando a palavra, experimentando todas as suas possibilidades rítmicas, fazendo música com ela. Assim como fazem com tudo o que é importante ou digno de sua vigilância conceitual, experimentam primordialmente através da sonoridade e da música.
Pois bem, após o efetivo início das obras, já em 2007, os Enawene Nawe começaram a entender que as suas decisões em torno do processo não teriam arbítrio direto sobre o andamento do empreendimento – mesmo assim, a recusa plena foi uma opção que jamais deixou de permear as reuniões sobre o assunto. Isso fez com que o ano de 2008 tenha sido extremamente conturbado, culminando com uma ação drástica e muito arriscada dos Enawene Nawe: a queima, por parte de homens, mulheres e crianças de um canteiro de obras de uma das PCHs – nomeada, como se por destino, “Telegráfica”, o mesmo nome das linhas das quais já haviam fugido uma vez, recusando o encontro iminente com os iñoti e seu maquinário.
Isso se deu em meio a diversas reuniões particularmente polêmicas, dentre as quais destacamos duas. A primeira, em julho, com representantes da EPE (Empresa de Pesquisas Energéticas), FUNAI e Casa Civil visando à autorização para entrada na Terra Indígena, em que foi apresentado um mapa contendo o inventário preliminar da bacia do Juruena, e onde constavam nada menos que 83 unidades hidrelétricas – a despeito de a FUNAI ter garantido o cancelamento de mais de três dezenas delas, cujo licenciamento já se encontrava em curso. Isso chocou sobremaneira os Enawene, que estavam a essas alturas negociando um complexo de oito unidades. A segunda deu-se em outubro, após uma aceitação inicial dos índios, em setembro, em relação à compensação desse complexo de oito hidrelétricas (número já inflacionado frente às cinco inicialmente mencionadas nas negociações), também por conta da pressão das etnias vizinhas – nessa última reunião antes da queima do canteiro, os empreendedores apresentaram o quadro real de nove unidades, o que os deixou furiosos.
“Por que queimamos?” – perguntou Kolariene. “Não estava bom para nós, não estava bom para nós! Os peixes das barragens do Iyaõkwa, os peixes do Salomã, do Lerohi… vão ficar impedidos de movimentar-se com liberdade pelas PCHs, impedidos de subir e descer o rio como antes, não vão se alimentar como antes. Por esse motivo nós queimamos. Fomos nós mesmos, nós mesmos que queimamos. Estávamos enfezados. Não estava certo de jeito nenhum para nós. Já não conseguíamos fazer bem o iyaõkwa. Não tinha peixes, acabaram os peixes, com a água do rio suja, os peixes morrem. Muitos peixes no fundo morreram, matrinxã, piau, os peixes que vivem ali nas pedras, ali perto na casa de iyakayriti, lá onde estão construindo a Telegráfica. Há muito tempo, primeiro de tudo, nas pedras, exatamente no lugar onde está a PCH Telegráfica, é o mesmíssimo lugar da casa de Doliro, uma mulher iyakayriti. Este é o canto da Doliro: Hanawina maõlo aõlikiwana, Hanawina maõlo aõlikiwana…[“Na cachoeira do Juruena, dançamos”]. Não é de agora não, é de há muito, muito tempo atrás, muito antigo!”.
Dentre idas e vindas, e visto que os embargos impostos pelo Ministério Público Federal encontraram sempre decisões favoráveis aos empreendimentos por outras instâncias da justiça (as quais costumavam utilizar justamente o princípio do “fato consumado”, ou seja, construção em curso), em março de 2009 os Enawene Nawe firmaram em detalhes o acordo compensatório. Nesse novo quadro, flanqueado pela assinatura de uma concordância que não eliminou em quase nada o seu aspecto deliberadamente obscuro (por exemplo, “assinaram”, afinal, por “quantas” PCHs?), deu-se nova injeção maciça de bens monetários, em escala aumentada ao episódio anterior.
Nesse momento ocorreu um evento sui generis: decidiram instalar uma caixa de som e um microfone no pátio da aldeia para debater, agora definitivamente, o que seria feito com os recursos. Foram quatro dias de vigília cerrada em que todos estiveram voltados para essa decisão e para a transmissão de recados dos diversos grupos de iyakayriti, relatados pelos xamãs por intermédio de suas incursões com os habitantes celestes, seus ancestrais e auxiliares (enore nawe).
O conteúdo desses agouros referia-se, sobretudo, à rememoração do cumprimento incorreto ou descumprimento de prestações e evitações, especialmente relacionadas aos estados restritivos (kadena), aplicáveis em inúmeras circunstâncias limítrofes como nascimento de filhos, puberdade, período menstrual, etc. No evento, a amplificação do elemento sonoro surgiu de forma excepcional na dinâmica aldeã, em uma marcante distensão da etiqueta social, já balizada pelo controle dos fluxos rituais através da sonoridade. A amplificação sonora foi acompanhada da intensificação da frequência dos fluxos xamânicos e de certos ritos incidentais correlatos, cuja resultante inusitada foi a exposição pública e estereofônica, e não mais através de conversas íntimas entre as casas, de assuntos polêmicos e delicados.
Agora a irreversibilidade do manejo iñoti de captura alcança novos níveis de devastação e permanência, com novas tecnologias apuradas para tal, e por isso o cenário de espoliação do território é desde logo percebido como um claro limite à positividade eventual de negociações e compensações, conflagrado de forma cada vez mais contundente no fracasso das pescarias após a construção do conjunto de hidrelétricas. A escassez pesqueira é um limite à sua economia da fartura. A contrapartida da devastação do território aporta uma irreversibilidade e indiferença (excesso e incontinência) há muito vislumbrada com Daleokoto, contra a qual têm sabido resistir da melhor forma que podem. Trata-se de alterações que não são passíveis de reversão a não ser em uma temporalidade muito estendida, como, por exemplo, a falência da reprodutibilidade dos ecossistemas por conta da devastação de amplo espectro.
Nesse caso, é preciso registrar que essas alterações podem ser drásticas demais para o que pode suportar em médio prazo o modo de vida, os modos específicos de captura enawene nawe. Não é que não haverá mais “cultura” enawene nawe, mas eles terão de viver com um mínimo daquilo que confere a vitalidade e a vivacidade rituais tão características desse povo. Talvez não haja flautas e decibéis suficientes para expressar tal magnitude de escassez e desolação pela perda tão súbita das outras formas de vida animais e vegetais que habitam seu território e entorno e fazem parte indelével de sua perspectiva sobre o mundo.
Ana Paula Rodgers
Cientista Social, mestre e doutora em Antropologia Social. É pesquisadora da UNESCO/Museu do Índio (RJ), com enfoque atual na análise acústico-musical de instrumentos indígenas sul-americanos.
Joseca Yanomami
Artista visual, integrante da comunidade Watoriki, na Terra Indígena Yanomami, Roraima. Participou de exposições na Fundação Cartier, Paris, e no Instituto Tomie Ohtake, São Paulo.
Como citar
RODGERS, Ana Paula. O ferro e as flautas. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 10, p. 34-41, mai. 2017.