O FUTURO SERÁ
NEGRO OU NÃO SERÁ
Texto de Kênia Freitas e José Messias
Diante de nosso presente distópico, em que o racismo socialmente estruturado dá continuidade a um passado de escravidão, o Afropessimismo nos leva a repensar a própria ideia de futuro contida no Afrofuturismo.
As primeiras imagens do curta-metragem Chico, de Eduardo e Marcos Carvalho de 2016, são de uma mulher negra em trabalho de parto. Ouvem-se os ruídos de uma grade que se abre. A mulher está deitada em um pedaço de papelão sobre um chão imundo; ela grita desesperada e estende as mãos pedindo ajuda a um homem branco que entra na cela. Indiferente aos pedidos, ele logo se retira. Corte seco. Uma outra mulher negra (mais velha) carrega o bebê recém-nascido. O bebê é Chico, e as mulheres negras, respectivamente, sua mãe e sua avó. A narrativa se desloca então para 2029.
Nesse futuro próximo, logo descobrimos pelo noticiário do rádio que o Estado brasileiro acaba de aprovar uma lei para prender jovens negros e pobres preventivamente pelos crimes que supostamente irão cometer. Chico é um desses jovens, carregando nos tornozelos uma barra metalizada que marca o seu destino.
Mais do que uma distopia futurística distante, o filme trabalha especulativamente a distopia do nosso presente, relacionando-se diretamente com as representações e as discussões sociais e raciais do Brasil contemporâneo — como a redução da maioridade penal, o encarceramento em massa da população pobre e negra e o regime de exceção policial nas periferias urbanas. Assim, o imaginário especulativo ficcional de Chico não se constrói com base em um futurismo tecnológico: as ruas da comunidade, o barraco, a oficina mecânica… nada na cenografia se diferencia das imagens atuais desses espaços. A especulatividade e o deslocamento do filme não vêm da construção imaginária de um futuro high-tech, mas de sua resolução poética, cruel e também mágica. Nessa resolução, para evitar o iminente encarceramento de seu filho pela nova lei, a mãe de Chico o crucifica e empina como uma pipa, utilizando pesadas correntes de ferro.
A partir do plano e contraplano desta imagem ambígua de um jovem negro flutuando como uma pipa no céu, mas preso por pesadas correntes, podemos explorar o universo das ficções especulativas negras na criação de narrativas distópicas calcadas no nosso presente racial pós-apocalíptico e vislumbrar futuros negros — ou, se não, o fim do mundo.
A expressão afrofuturismo foi cunhada no início da década de 1990, por Mark Dery, para caracterizar as criações artísticas que exploram futuros possíveis para as populações negras por meio da ficção especulativa. Dery estava preocupado em investigar, a partir de discussões sobre cibercultura e tecnologias computacionais do final dos anos 1980 e início dos anos 1990, o impacto de novos dispositivos de conectividade e interação no universo da cultura pop dos EUA. Num período marcado por obras literárias importantes de ficção científica, onde estariam os escritores e as escritoras negras do gênero? Dery se perguntava sobretudo por que no universo literário estadunidense a literatura negra histórica e social era consideravelmente mais numerosa e representativa do que a literatura negra de ficção especulativa.
A partir de entrevistas com três artistas e intelectuais negros, Tricia Rose, Samuel R. Delany e Greg Tate, no icônico ensaio Black to the Future Dery encontraria parte da resposta a seu questionamento, deslocando-se da cultura literária escrita para outras plataformas de narrativa e expressão negra, como a música, as artes plásticas e o cinema. As entrevistas dão início a uma genealogia das narrativas especulativas negras em variados campos.
Em seus pouco mais de 20 anos de existência, o termo afrofuturismo passou por uma série de redefinições, sobretudo no sentido de ampliar o pensamento do universo cultural restrito aos negros dos EUA para um pensamento negro africano e diaspórico mundial. Uma primeira reelaboração importante para o conceito está não em um texto, mas no documentário ensaístico Last Angel of History, de John Akomfrah (1996). O filme segue um ladrão de dados que vem de um futuro indeterminado e inicia uma escavação arqueológica na cultura negra do século XX, em busca de respostas para sua própria existência. Coletadas pelo ladrão de dados estão diversas imagens de arquivo das tecnologias negras (africanas e diaspóricas) e entrevistas com teóricos e artistas negros construtores do movimento afrofuturista.
O título, inspirado em Walter Benjamin, aponta para um anjo que olha fixamente o passado em ruínas, ao mesmo tempo em que o progresso o empurra ininterruptamente para frente. Essa apropriação benjaminiana feita por Akomfrah resume imageticamente uma das questões centrais que perpassam, desde o texto inaugural de Mark Dery, o debate afrofuturista: como a comunidade negra diaspórica, que teve seu passado deliberadamente roubado e apagado pela escravidão, consegue, sem esse acervo de imagens, vislumbrar futuros? A questão não tem uma resposta única. A partir dela podemos nos perguntar também como (ou se) as ficções especulativas distópicas do presente podem vislumbrar a existência de futuros negros para além do fim do mundo.
Samuel R. Delany, entrevistado por Dery em texto e por Akomfrah em filme, autor negro de ficção especulativa, também reflete sobre essa ligação direta entre a negação da construção de um passado para as populações negras pós-escravidão e a escassa produção de imagens de futuro dessas populações. “A razão histórica para termos sido tão empobrecidos em termos de imagens futuras é que, até muito recentemente, como população, nós fomos sistematicamente proibidos de acessar qualquer imagem do nosso passado. Eu não tenho ideia de onde, na África, meus antepassados negros vieram, porque, quando eles chegavam ao mercado de escravos de Nova Orleans, os registros eram sistematicamente destruídos. Se eles falassem sua própria língua, eles apanhavam ou eram mortos. […] Quando, de fato, nós dizemos que esse país foi fundado na escravidão, nós devemos lembrar que queremos dizer, especificamente, que ele foi fundado na destruição sistemática, consciente e massiva das reminiscências culturais africanas.”
Para Ytasha Womack, outra autora referencial no que diz respeito à retomada e redefinição do afrofuturismo, a ausência de imagens do passado é um ponto importante para a livre criação. Segundo a autora, o afrofuturismo é “uma reelaboração total do passado e uma especulação do futuro repleta de críticas culturais […], uma interseção entre a imaginação, a tecnologia, o futuro e a liberação”. Outra reelaboração do conceito que nos parece importante é a da pesquisadora Lisa Yaszek, para quem os artistas afrofuturistas têm três objetivos principais na realização de suas obras: em primeiro lugar, desejam narrar boas histórias de ficção científica; em segundo, estão interessados em recuperar histórias negras perdidas (pensando o impacto dessas histórias no presente); e, em terceiro, querem pensar sobre como essas histórias e culturas recuperadas podem inspirar “novas visões do amanhã”.
Assim como para Womack, a relação entre passado e futuro negros para Yaszek dá-se em uma chave de positividade, e seria um objetivo afrofuturista “não apenas relembrar um passado ruim, mas usar histórias sobre o passado e o presente para reivindicar a história do futuro”. Essa relação contínua de regimes temporais é uma constante nas definições do afrofuturismo, assim como a perspectiva de construção de um futuro negro utópico – ou ao menos, positivo.
Historiador de formação, o camaronês Achille Mbembe surge como uma das principais vozes dos chamados estudos pós-coloniais nos últimos 20 anos. Defensor do que define como afropolitanismo, a integração do continente rompendo as fronteiras nacionais impostas pelo colonialismo, é a partir dessa premissa que ele faz sua entrada (de maneira um tanto peculiar) na questão do afrofuturismo.
O que a perspectiva de Mbembe traz é que o futuro, seja como for, já está localizado na África, uma vez que, nos próximos 30 a 50 anos, uma em cada três pessoas será africana ou descendente de africanos. O afrofuturismo, dessa forma, deixará de ser uma questão étnica ou continental, tornando-se planetária. É preciso entender que o futuro negro é o futuro da Terra. Por isso, a grande questão seria como transformar essa suposta “vantagem” demográfica – tendo como contraponto também o envelhecimento geracional da população europeia – em “riqueza” ou produção de riqueza, em oposição à geração de mais precarização.
Para Mbembe, a resposta estaria justamente no afropolitanismo, que deve deixar de ser uma corrente expressa na literatura e nas artes para se tornar política pública, com investimento em educação e infraestrutura e na formação de “corredores metropolitanos”. Seria preciso também abraçar heranças culturais diversas dentro dessa concepção de afropolitanismo. Dos três milhões de chineses que o governo do país asiático estima que devem migrar para países da África nos próximos 25 anos às línguas do passado colonial (francês, inglês e português), que já se tornaram línguas africanas por seu uso. “O francês sem os africanos seria uma língua étnica”, ele argumenta. “A África universalizou o francês. É o que dá a ele seus atributos de universalidade.”
Aqui residiria sua visão de um futuro negro, um devir-negro do mundo. “Numa inversão espetacular, [a negritude] se torna o símbolo de um desejo consciente de vida, uma força emergente, alegre e plástica, completamente engajada no ato de criação e capaz de viver em meio a diferentes temporalidades e histórias de uma vez.”
Se o futuro planetário é negro, ao menos populacionalmente, como argumenta Mbembe, é preciso lembrar também outra importante perspectiva afrofuturista que se volta para o futuro do passado. Trata-se do entendimento de que a população negra contemporânea é sobrevivente de um apocalipse – do nosso próprio processo de abdução. Nesse sentido, podemos dizer que as populações negras em diáspora pós-escravidão são as descendentes diretas de alienígenas sequestrados, levadas de uma cultura para outra – da África para a Europa e sobretudo para a América, pelas rotas do Atlântico Negro. Ao longo dos séculos, nós, negros, os descendentes dos aliens, já despossuídos de uma narrativa própria, fomos incorporados como o órgão estranho de novas sociedades: contidos e rechaçados pelo corpo social — caçados e assassinados pela polícia e cerceados pelas grades de novas prisões.
O encarceramento também se dá em liberdade pela estrutura e formas de organização da cidade e pela vigilância contínua das populações negras e pobres. A crítica ao encarceramento e aos mecanismos cruéis de controle é o ponto de partida da narrativa de Chico, bem como de boa parte das narrativas negras contemporâneas, sejam elas especulativas ou não. A diáspora negra, extraterrestre dentro de nossos próprios mundos, induziu o surgimento de um duplo trauma: o da escravidão (no passado) e o da perseguição, especialmente da violência estatal (no presente). Nesse sentido, acessar o universo narrativo das obras afrofuturistas é lidar concomitantemente com a sua dupla natureza: a de criação artística que une a discussão racial ao universo do sci-fi e a da própria experiência da população negra como uma ficção absurda do cotidiano – uma distopia do presente.
A escritora de ficção especulativa de origem jamaicana Nalo Hopkinson é uma das defensoras da premissa de que, para as populações negras que sobreviveram à escravidão, ao colonialismo europeu e ao processo de globalização, o apocalipse já aconteceu – e segue sendo experienciado há séculos. Para ela, “nós pensamos em distopia e catástrofe como aquela coisa que acontece em outro lugar, ou que pode ser adiada, quando está acontecendo diariamente em todo o mundo”. E prossegue defendendo que uma mudança na construção dessa lógica passa por uma alteração de perspectiva do “eles” para “nós”; do entendimento da distopia como todos os lugares, e da utopia como lugar nenhum. De uma perspectiva negra, a distopia seria o comum, e não a exceção.
Partindo dessa premissa, da distopia como elemento intrínseco da experiência negra contemporânea, o otimismo de um futuro utópico que atravessa parte do pensamento afrofuturista parece não dar conta de pensar uma considerável parte das narrativas de ficção especulativa negra, que abordam a vivência negra diaspórica pós-escravidão como uma distopia pós-apocalíptica no passado, no presente e no futuro. A perspectiva positiva é tensionada por um pensamento crítico afropessimista.
Podemos invocar, aqui, mais uma imagem de um corpo negro acorrentado. O filme Welcome II the Terrordome, de Ngozi Onwurah (1995) é uma espécie de pesadelo distópico, no qual os bairros negros e pobres dos centros urbanos foram cercados e isolados. Esses territórios estão ao mesmo tempo sob constante cerco policial para que os seus habitantes não saiam dos bairros-prisão, e internamente entregues a conflitos violentos entre gangues rivais.
No início e no final do filme, a narrativa desloca-se temporalmente para o período escravocrata e apresenta a lenda do povo Ibo. Capturados e acorrentados, ao serem entregues a seus futuros senhores; os Ibos teriam recusado o encontro com os mestres brancos e caminhado conscientemente em direção à submersão no mar. Ao final da narrativa, após a prisão e a execução pelo Estado da protagonista – Angela Mcbride, mulher negra moradora de um dos bairros-prisão –, a revolta negra explode a cidade, tomando estações de TV e destruindo os bairros brancos. É então que, finalmente, os Ibos emergem do fundo do mar, voltando à praia do início do filme, agora sem os senhores brancos à sua espera. A montagem mostra paralelamente passado e presente: os Ibos quebram as correntes que prendiam seus braços e suas pernas na praia e nas ruas da cidade em revolta.
Se a revolta urbana negra é o estopim da ação narrativa, é na volta ao passado que Welcome II the Terrordome projeta uma possibilidade ancestral e futura de libertação negra. O deslocamento temporal no filme ressignifica o presente distópico da história. Com esse paralelismo temporal, reconecta-se a violência da escravidão à violência urbana contemporânea – ambas marcadas por sociedades racistas de supremacia branca e pela resistência negra. A conexão social direta é um ponto crucial na imaginação de futuros negros (ou da sua impossibilidade). E o afropessimismo se mostra uma importante ferramenta conceitual nessa relação entre passado de escravidão e presente de racismo socialmente estruturado.
Segundo o pesquisador norte americano Jared Sexton, o afropessimismo seria ao mesmo tempo uma corrente teórica, uma intervenção conceitual, uma leitura de mundo e um metacomentário feito por pensadores e pensadoras negros e negras sobre a negritude – ou, mais precisamente, sobre a experiência da negritude em um mundo organizado em torno da supremacia branca e da antinegritude.
Na genealogia do pensamento afropessimista, podemos apontar as influências diretas dos discursos e ações dos movimentos negros radicais de guerrilha dos EUA dos anos 1970, como o Black Liberation Army. Em termos teóricos, o primeiro marco é o trabalho do historiador Orlando Patterson em relação à definição da escravidão. O historiador desloca-se do entendimento comum de que o elemento central definidor da experiência do escravo seria a prática do trabalho forçado, e parte para uma definição baseada em três elementos: a desonra generalizada (ausência de qualquer reconhecimento social e moral do escravizado), a alienação natal (separação sistemática dos laços de parentesco e familiaridade dos escravizados) e a violência gratuita ou ilimitada (a violência sobre o corpo escravizado não condicionada a uma punição pelo desobedecimento de regras ou revoltas, mas como uma prerrogativa permanente dos senhores).
A estes três fatores, a pesquisadora Saidiya Hartman adicionará uma dimensão ontológica: o escravo “é aquele que se encontra posicionado em sua própria existência, em seu ser-como-tal, como um não-Humano – um objeto capturado, possuído e negociado para outro”. Nesse sentido, a existência do escravo seria primordialmente definida não pela alienação e pela exploração (que marcam o sofrimento de um sujeito social), mas por sua qualidade de ser acumulável e por sua fungibilidade (que marcam as características de um objeto social). Em outras palavras, não por uma relação de trabalho, mas por uma relação de propriedade.
A definição do escravo pelo coletivo editorial Racked & Dispatched reafirma a ideia de que ele está de início e sempre socialmente morto. “O escravo é objetificado de tal forma que ele se torna legalmente um objeto (uma mercadoria) para ser usado e trocado. Não é apenas o seu poder de trabalho que é mercantilizado — como no caso do trabalhador — mas o seu próprio ser. Como tal, ele não é reconhecido como um sujeito social e, portanto, é excluído da categoria ‘humana’ – a inclusão na humanidade baseando-se no reconhecimento social, volição, subjetividade e valorização da vida.”
Para os afropessimistas, a abolição da escravidão teria apenas levado a uma reorganização da dominação. O ex-escravo tornou-se o sujeito racializado negro e a mesma relação de violência estrutural se manteve socialmente para o negro. Assim, ainda nas palavras do coletivo Racked & Dispatched, “dado o contínuo acúmulo de morte negra nas mãos da polícia — apesar da maior visibilidade nos últimos anos — torna-se evidente que uma pessoa negra na rua hoje enfrenta uma vulnerabilidade aberta à violência, assim como o escravo enfrentava nas plantações”. Essa visibilidade dos últimos anos, com a cobertura midiática e das redes sociais, demonstrou que na organização social atual “quando se é negro, não é preciso fazer nada para ser alvo, pois a própria negritude é criminalizada”.
Nesse sentido, a condição da negritude diaspórica contemporânea é ainda a condição do escravo. A violência gratuita e ilimitada do Estado continua a marcar de forma primordial a experiência negra — pelo encarceramento em massa, pela brutalidade policial e pelo genocídio institucionalizado da juventude negra. Essa posição do negro/escravo como um não humano é fundamental para que, nas palavras do escritor e crítico Wilderson III, a humanidade “estabeleça, mantenha e renove a sua coerência, a sua integridade corpórea”. Os afropessimistas seriam, assim, “teóricos da posicionalidade negra que compartilham a insistência de Frantz Fanon de que, embora os negros sejam, de fato, seres sensíveis, a estrutura do campo semântico do mundo inteiro […] é suturada pela solidariedade antinegra”.
A liberdade para o negro e para o escravo não diz respeito apenas à sua existência como propriedade/objeto, mas torna-se necessidade. Ainda nas palavras de Wilderson III: “Liberdade da raça humana, liberdade do mundo. O escravo exige liberdade gratuita”. Trata-se de uma liberdade gratuita e ilimitada na extensão da violência gratuita e ilimitada que a sociedade de supremacia branca gera com a sua antinegritude. Uma discussão ética na luta por essa liberdade, através da resistência e da agência negra, só será minimamente possível depois que verdadeira e extensivamente se reflita sobre “a ontologia assassina da violência gratuita da escravidão – 700 anos atrás, 15 anos atrás, 200 anos atrás, no ano passado e hoje”. Nesse momento, o que virá à tona é a “questão através da qual os mortos se perguntam como tirar os vivos de cena”. Um confronto que só será possível pela desorganização social generalizada e/ou pelo fim do mundo como um programa.
Mbembe não nega a existência da antinegritude como colocada pelos postulados afropessimistas. Navegando portanto pelo espectro das duas correntes, ele narra os processos pelos quais a exploração negra na forma da escravidão é também a instância criadora da modernidade e do capitalismo. Humano tornado objeto, “mercadoria”, “um minério vivo”.
Este ethos desumanizador está presente no preceito/prerrogativa da violência institucionalizada/estatal que aflige o negro na forma do aparato repressor do Estado, mas também dos justiçamentos praticados, sancionados ou ao menos consentidos por parte significativa da população. Está também no apagamento da humanidade dos sujeitos diaspóricos na figura dos migrantes residindo principalmente em partes da Europa e na América do Norte, que encontram hostilidade, menosprezo e mesmo políticas públicas que visam marginalizá-los ou inferiorizá-los. Uma continuação, portanto, da situação de precarização dos sujeitos escravizados, cujo destino não lhes pertencia.
“O que caracterizava a relação entre senhor e escravo acima de tudo era o monopólio que o mestre acreditava ter sobre o futuro”, nos diz Mbembe. “Ser negro e, portanto, um escravo significava não ter um futuro próprio. O futuro do negro era sempre um futuro delegado, recebido do mestre como um presente, como emancipação. Por isso, o futuro como questão sempre habitou o centro da luta dos escravos, um horizonte futuro a ser alcançado por conta própria, e graças ao qual seria possível constituir a si mesmos como sujeitos livres, responsáveis por si mesmos e perante o mundo.”
Mesmo intelectualmente, na academia e na mídia, Mbembe ainda faz questão de denunciar certos esforços revisionistas que, à luz do manifesto “fracasso” de regimes africanos pós-revolução anticolonial, tentam justificar o colonialismo e o controle e uso da força como domesticação e cuidado. Essas críticas também seriam formas contemporâneas de negar o poder de autodefinição e gestão das populações africanas, outra forma de manutenção dessa violência sistêmica e dessa morte física, simbólica e atualmente política. Assim, notamos que a imaginação de futuro dos socialmente mortos passa pelo intensivo enfrentamento dessa morte social contínua e pelo confronto com os vivos. Isso também é o que as cenas finais de Welcome II the Terrordome nos lembram: a quebra das correntes só tornou-se possível com a morte e o renascimento conjunto dos Ibos (escravizados) e de Angela (assassinada pelo Estado).
A narrativa do filme Born in Flames, de Lizzie Borden (1983), situa-se num futuro distópico pós-revolução, atravessado por uma contra-revolução feminista de mulheres queers e negras. Se é possível localizar o filme de Borden nas definições de afrofuturismo, ou seja, a partir de seu caráter de ficção especulativa futurística afrocentrada, o futuro que o filme apresenta só pode ser pensado a partir da sua impossibilidade. A pesquisadora Romy Opperman assinala que “a política do tempo que o filme abre através da lente da mulher negra queer indica o ponto em que o afrofuturismo se encontra com o afropessimismo”. Esse encontro nos levaria, segundo a autora, a repensar a própria ideia de “futuro” contida no afrofuturismo. O filme sublinha a impossibilidade de assimilação das mulheres negras e queers em uma sociedade pós-revolucionária que não rompeu verdadeiramente com os parâmetros de estruturação social atuais, com a sua linearidade histórica.
A contra-revolução feminista das mulheres queers e negras encerra a narrativa partindo para a ação direta e explodindo uma bomba sobre o World Trade Center (já nos anos 1980, quase 20 anos antes dos atentados de 11 de setembro, alvo óbvio e simbólico da dominação capitalista, racista e patriarcal dos EUA). A imagem da explosão é simbólica da ideia do fim do mundo como programa.
Para Opperman, o futuro imaginado pelo afrofuturismo de Born in Flames “desafia o registro do tempo linear: é um futuro impensável, não apenas uma repetição do presente. […] É uma espécie de momento impensável que requer a reorientação do nosso desejo para longe do futuro como é apresentado atualmente para nós.” O futuro como “apresentado atualmente para nós” é compreendido pela afropessimista Hortense Spillers a partir do entendimento do tempo não como progressivo, mas acumulativo. Nesse tempo acumulativo, “o futuro não é liberado das restrições de ontem, mas sim é o lugar onde o naufrágio do ontem e do agora continua”.
“As formas passadas de terror racial são uma lição sobre o presente, mas também uma visão do que está por vir. Se o tempo não passa, mas se acumula, então o passado é onde o futuro é antecipado, recolhido e demonstrado”, diz o pesquisador Stephen Dillon. No sentido acumulativo, restaria ao futuro ser apenas o que já foi. Nesse sentido, a violência estrutural da sociedade e do Estado contemporâneos seria justamente o que limitaria “as possibilidades do presente e do futuro, vinculando ambos em um circuito fechado de reverberação e ampliação”.
As imagens das narrativas de ficção especulativa negra que abordam distopias do presente – dos filmes Chico, Welcome II Terrordome e Born in flames – parecem gravitar em torno de dois regimes de futuro. Por um lado, o futuro cumulativo, capaz apenas de repetir passado e presente, em um ciclo interminável de violência gratuita e ilimitada aos corpos negros. Por outro, o futuro não linear, impensável, traçado pela indagação dos mortos (socialmente) aos vivos, planejando uma radical desorganização social e fins do mundo.
Se há um programa possível para o fim do mundo que sintetize (e também exploda) esses dois regimes de futuro negros, talvez ele esteja vinculado ao “pessimismo vivo” de que nos fala Jota Mombaça. O pessimismo vivo não aceita “uma imagem fixa do apocalipse universal como destino último de toda forma de vida” e é capaz de “refazer indefinidamente as próprias cartografias da catástrofe, com atenção aos deslocamentos de forças, aos reposicionamentos e coreografias do poder”.
Nesse programa sem cartilha, é preciso “aprender a desesperar” na construção de esperança e “esgotar o que existe é a condição de abertura dos portões do impossível”. Abertura dos portões do impossível para um futuro negro ou que não será.
Kênia Freitas
Curadora e crítica de cinema, faz pós-doutorado na Unesp, é doutora em Comunicação e Cultura pela UFRJ e mestre em Multimeios pela Unicamp. Escreve no site Multiplot! e integra o coletivo Elviras.
José Messias
Pós-doutorando em Comunicação na UFF e doutor em Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicação da UFRJ, integra os grupos de pesquisa LabCult/UFF e Cibercog/Uerj.
Como citar
FREITAS, Kênia; MESSIAS, José. O futuro será negro ou não será. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 14, p. 48-53, jul. 2020.