O GESTO
EXTRAVAGANTE
William McDonough e Michael Braungart
A natureza é, sobretudo, extravagante. Quatro bilhões de anos de design natural, forjado no berço da evolução, produziram uma profusão de formas pelas quais mal podemos compreender o vigor e a diversidade da vida na Terra. As formigas evoluíram em cerca de 10.000 espécies, centenas das quais podem ser encontradas na copa de uma única árvore da Amazônia. As árvores frutíferas produzem milhares de flores para que outra árvore possa existir. As aves, também, parecem ter um gosto pelo extravagante: quem diria que a plumagem do pato carolino não é extravagante?
Na maior parte da nossa história, a resposta humana à vida na Terra expressou a mesma diversidade. Com a capacidade única de imaginar e criar, desenvolvemos nossos próprios gestos extravagantes. Construímos não meros abrigos, mas respostas singulares e belas ao problema, tais como a tenda beduína ou o templo japonês; não meras proteções contra as intempéries, mas roupas especiais para rituais e celebrações. Comunicamo-nos e somos movidos não apenas por fins utilitários: buscamos drama e poesia, dança balinesa e verso de Shakespeare, criações humanas atiçando o fogo.
Uma era de limites?
Nossa época é percebida como a era dos limites. Sabemos que a taxa de consumo dos recursos naturais pelos países desenvolvidos está prejudicando os ecossistemas da Terra e empobrecendo o Terceiro Mundo. Entretanto, enquanto alguns empresários ainda usam a força bruta para obter lucros em curto prazo, outros têm percebido que um sistema que usa e desperdiça não é sustentável em longo prazo. Planejam a redução do consumo de recursos e o uso de energia. Esforçam-se por “produzir mais com menos”, “minimizar o desperdício” e liberar menos tóxicos no ar, na água e no solo. Essas reformas, conhecidas como ecoeficiência, são uma tentativa admirável para encarar o conflito da indústria com a natureza – e podem ajudar a resolvê-lo, mas não tocam na raiz do problema. Trabalhando no mesmo sistema, sem examinar as suas falhas manifestas, as reformas ecoeficientes desaceleram a indústria sem, contudo, remodelar a forma como os produtos são feitos e usados. Com efeito, a indústria está simplesmente usando a força bruta de forma mais eficiente para superar as regras impostas pelo mundo natural.
A perseguida eficiência está aquém dos objetivos. Um relatório do World Resources Institute anunciou que a poluição e o lixo na Áustria, Alemanha, Japão, Holanda e Estados Unidos aumentaram em até 28% nos últimos 25 anos, apesar do uso cada vez mais eficiente dos recursos. Embora a Europa nos últimos 10 anos tenha conseguido reduções significativas nos resíduos, não transformou o modelo produtivo.
Enquanto isso, tentamos limitar o nosso impacto. “Reduzimos, reutilizamos e reciclamos” em casa e no trabalho. Utilizando menos recursos, podemos nos sentir um pouco melhores, mas ninguém consegue escapar da armadilha de ser apenas um consumidor em um mundo de produtos tóxicos e mal projetados. Todas as escolhas parecem contribuir para a erosão da saúde humana e ambiental: o carpete adoece nossos filhos, o carro queima combustíveis fósseis, a TV é feita de materiais tóxicos. Quando qualquer coisa que você compra é nociva ao mundo, o consumo permanece distante de qualquer noção sustentável que celebra a abundância e o deleite.
Apesar de perseguir uma visão saudável, o comércio sustentável não existe. A ideia de que o mundo natural está sendo inevitavelmente destruído pela indústria ou de que a demanda excessiva por bens e serviços causa malefícios ambientais é uma simplificação. A natureza – altamente laboriosa, surpreendentemente produtiva, extravagante mesmo – não é eficiente, e sim eficaz. Um design baseado na eficácia da natureza, um design ecoeficiente, pode resolver em vez de aliviar os problemas que a indústria cria, permitindo que ambos, negócio e natureza, sejam fecundos e produtivos.
A abundância da natureza
Será possível a coexistência fecunda da indústria e da natureza? Pense na cerejeira. Toda primavera ela produz milhares de flores, mas apenas poucas delas germinam, enraízam e crescem. Quem olharia para as flores que se acumulam no chão e pensaria: “Que ineficiência, que desperdício!”? A abundância da árvore é útil e esperta. Depois de cair no chão, as flores retornam ao solo e tornam-se nutrientes para o meio. Cada partícula contribui de alguma forma para a saúde de um ecossistema próspero. Resíduo permanente não existe: o resíduo nutre e alimenta.
Enquanto cresce, a cerejeira, através da fotossíntese, produz alimento, nutrindo animais e micro-organismos. Absorve carbono, produz oxigênio e filtra água. Os seus galhos e folhas abrigam micro-organismos e insetos que também desempenham papéis no sistema local dos ciclos naturais. Até morrer, a árvore fornece alimento pela decomposição, liberando minerais para novas vidas. Da flor à árvore adulta, vemos que o crescimento da cerejeira é regenerativo. O seu ciclo de vida é berço a berço (cradle to cradle) – depois de cada vida útil, ela fornece alimento para algo novo. No mundo berço a berço, com ciclos naturais movidos a energia solar, o crescimento é positivo, o resíduo é nutritivo e a diversidade de respostas da natureza ao meio é a fonte do design inteligente.
Paralelamente, os ciclos industriais tendem a ser berço ao túmulo (cradle to grave). Normalmente, a produção e o consumo de bens seguem um caminho de mão única, uma rota linear da fábrica até a casa e ao aterro sanitário. Materiais residuais e emissões nocivas norteiam os produtos desde o seu berço industrial ao túmulo do aterro local. Reciclagem e regulações são frequentemente utilizadas para minimizar os impactos negativos da indústria, mas por que não partir, desde o início, da criação de produtos e sistemas que tenham apenas impactos positivos e regenerativos? Por que nos ajustar a um sistema prejudicial quando podemos criar um modelo a ser comemorado e aplaudido por todos?
Um comércio que vale a pena aplaudir aplica os ciclos da natureza na produção das coisas. Gera produtos seguros e ecologicamente inteligentes que, como a cerejeira, fornecem alimento para algo novo depois de cada vida útil. Da perspectiva do design, significa criar produtos que funcionam dentro dos ciclos de vida berço a berço em vez de berço ao túmulo. Significa que, no lugar de projetar produtos para serem usados e jogados fora, começamos a imitar os sistemas eficientes da natureza e projetar cada produto como um nutriente.
Mas o que é um produto nutritivo? Não é simplesmente um produto totalmente natural ou reciclado. É um produto concebido para fornecer nutrientes para os dois metabolismos discretos da Terra: a biosfera – os ciclos da Natureza – e a tecnosfera – os ciclos da indústria. Embalagens de alimentos leves, por exemplo, podem ser concebidas para ser parte nutritiva do metabolismo biológico, se feitas de compostos orgânicos a serem devolvidos com segurança ao solo e consumidos por micro-organismos. Materiais sintéticos, produtos químicos, metais e bens duráveis são parte do metabolismo técnico; eles podem ser concebidos para circular dentro do círculo fechado dos ciclos industriais fornecendo “alimento” para a tecnosfera.
Carros, gabinetes de computador, máquinas de lavar, televisores, etc. podem ser projetados para agregar valor na medida em que circulam do produtor ao consumidor. Em vez de serem reciclados ou “deciclados” em materiais de menor qualidade, podem ser utilizados em ciclos técnicos fechados – o que chamamos de produtos de serviço – continuamente, circulando como produtos de alta qualidade. Em breve consumidores poderão comprar o serviço de tais bens e os fabricantes vão levá-los de volta a pedido dos consumidores, usando-os na próxima versão do produto.
Quando os produtos tanto da biosfera como da tecnosfera fazem viagem só de ida para o aterro, uma grande riqueza de nutrientes é desperdiçada. Envolto em plástico, o lixo orgânico não pode renovar o solo e valiosos materiais técnicos ficam perdidos para sempre. Pior ainda, os dois metabolismos são misturados, contaminando-se: a biosfera não está preparada para absorver os materiais da indústria e a tecnosfera usa pouco ou nada dos nutrientes orgânicos. Mas, se as coisas produzidas forem canalizadas para um ou outro desses metabolismos, os produtos poderão ser fabricados e consumidos com segurança, considerados nutrientes, ao mesmo tempo biológicos ou técnicos, que fornecem alimento a suas respectivas esferas da natureza e da indústria.
Tal estratégia é bem diferente da estratégia de desmaterialização. Os proponentes da desmaterialização pretendem reduzir a quantidade de recursos utilizados para criar um produto. Querem fazer um papel mais fino, embalagens mais leves, latas de alumínio melhores. Embora essas inovações possam conduzir à utilização mais eficiente dos materiais, elas não examinam a química dos materiais, os impactos dos processos industriais, nem as circunstâncias locais da sua utilização. Em vez disso, propomos algo diferente. Gostaríamos de ver uma transformação real do comércio, o design ultrapassando o uso eficiente da natureza e criando produtos que nutrem sem esgotar o mundo. Não se trata de negar a eficiência: gostaríamos simplesmente de fazer a eficiência trabalhar a serviço de uma visão centrada na vida.
Uma nova perspectiva global
Entendemos que toda sustentabilidade é local. É muito importante que uma empresa global alcance efeitos locais positivos. Em princípio, isso sugere um compromisso com o lugar e um design que trabalha a partir do ambiente circundante. Mas também sugere que se pense nos efeitos distantes de ações locais e nos efeitos locais de ações distantes. É possível praticar uma globalização virtuosa.
As empresas podem começar planejando produtos, sistemas de produção e locais de trabalho que se encaixam em cada lugar de sua atuação. Imagine uma empresa global agregando valor nos seus produtos através da aplicação de um elevado padrão internacional de investigação científica – ferramenta comum de pesquisa corporativa – a nível local, abordando necessidades básicas como nutrição, química do solo ou água limpa. Um produto prototípico de consumo como o sabão permite imaginar essa situação.
Atualmente, o sabão é produzido em massa e vendido para o mundo em uma única solução, independente de necessidades específicas. Detergentes são projetados para remover a sujeira e matar germes em qualquer lugar, do Brooklyn a Bangkok. Ao invés de responder a diferentes métodos de lavagem e a químicas de água encontrados em cada lugar, os fabricantes simplesmente adicionam mais força química em substituição às condições locais. Embora os fabricantes de detergentes orgulhosamente anunciem que seus produtos são “livres de fosfatos”, eles não estão livres de outras químicas prejudiciais. A força industrial necessária para fazer um sabão funcionar em qualquer contingência faz de uma pequena dose um potente poluente. Combinados com outros resíduos, o fluxo de detergente que escorre da pia, mesmo diluído, não é benigno. A saúde de rios e córregos, a vida de peixes e plantas aquáticas e a qualidade da água potável são afetadas.
Em vez de impor um produto universal nos mercados de todo o mundo, um fabricante de sabão pode aplicar tecnologia sofisticada e expertise em química para o desenvolvimento de detergentes que não são apenas seguros em todos os lugares, mas projetados para atender às necessidades específicas dos ecossistemas e proporcionar efeitos nutritivos localmente. Detergentes poderiam ser produzidos empregando mão de obra local e ser vendidos em embalagens biodegradáveis, desenhadas para ser alimento para o solo, ou em discos de pequeno formato, que eliminariam as embalagens.
Com tais inovações crescendo organicamente a partir de pesquisa, a empresa global desenvolveria produtos adequados para cada lugar, projetados sem produtos químicos perigosos; construiria um sistema efetivo de produção; eliminaria resíduos; protegeria da poluição as águas locais e proveria alimento para o solo. Nada mal para um detergente!
Muitos produtos estão no ponto para inovações que terão impactos positivos mundiais. Alguns exemplos: um fabricante de embalagens poderia projetar um recipiente de alimento biodegradável para os mercados da China, onde a eliminação de isopor é um problema nacional. Na Índia, onde os resíduos são frequentemente queimados como combustível, garrafas plásticas poderiam ser produzidas com novos polímeros em substituição às perigosas toxinas, como o antimônio, liberado quando incinerado. Na verdade, polímeros produzidos sem antimônio já foram projetados e oferecem alternativas promissoras no mercado global.
Elogio à roupa suja: design e renovação da vida cotidiana
Se olharmos para coisas tão simples como água e sabão no contexto da vida cotidiana, podemos começar a ver alguns dos surpreendentes efeitos de longo alcance de um mundo berço a berço.
Imagine, por um momento, uma comunidade que quer reinventar-se. Depois de uma rodada difícil, mas excitante, de reuniões públicas, os cidadãos decidiram que querem renovar a sua conexão com o mundo natural e restaurar as qualidades de uma pequena cidade saudável. Junto com o planejamento para preservar um bairro comercial, bairros de uso misto, ruas de pedestre e muitos parques e playgrounds, a cidade também identificou a necessidade de uma variedade de novos espaços sociais. Espera-se que muitos dos novos espaços criados una as gerações, proporcionando experiências de proximidade com a natureza na rotina diária. Com efeito, a comunidade quer derrubar o muro entre o comércio, a cultura local e o mundo natural.
Um dos novos espaços criados é um centro comunitário operado como um negócio viável por aposentados. O centro é composto de uma lavanderia, uma creche, um posto de saúde e um serviço de mobilidade urbana. Ele fica na rua principal, na antiga estação ferroviária, que agora incorpora nova tecnologia para criar sistemas de energia solar, terra e vento. Na verdade, iluminação natural, painéis fotovoltaicos e uma turbina de vento remoto em uma fazenda eólica permitem que o centro funcione sem uma gota de combustível fóssil. Jardins botânicos e tanques ao ar livre cuidam do tratamento de esgoto e águas pluviais, também gerenciados no local.
A antiga estação recebeu outra novidade: um lugar de uso comum onde todos se reúnem no coração do bairro. Enquanto as mães sentam e conversam durante o café, apreciando a vista, dois homens relaxam sob o sol quente enquanto esperam para consultarem no posto de saúde. Outros esperam o elevador para a garagem subterrânea, onde uma pequena frota de carros comunitários está estacionada. Os carros foram concebidos a partir de materiais reciclados e são alimentados por células de combustível. Os carros são conduzidos por aposentados que levam crianças à escola, buscam mantimentos e lavanderia e pegam e levam pessoas para o posto de saúde. A frota permite que a maioria das pessoas mantenha seus carros fora da cidade enquanto reintegra os novos motoristas na vida da comunidade.
Vamos à lavanderia: o negócio é rápido e rentável. A maioria das pessoas da comunidade optou por não lavar, secar e passar roupas em casa, decidindo que seria mais barato, rápido, ecologicamente inteligente e socialmente útil levar a roupa para a lavanderia. Assim, as máquinas de lavar aplicam energia solar e detergente inofensivo para a natureza. Após cada lavagem, a água utilizada transborda para um jardim interno criando calor e, então, flui para fora através de uma zona úmida que fornece alimento para flores e plantas. O centro comunitário tornou-se um habitat fecundo. Como uma árvore, ele produz oxigênio, absorve carbono, corrige nitrogênio, purifica a água, faz açúcares complexos e alimento, criando assim um ambiente onde as gerações se encontram.
Da lavanderia, a vista é deslumbrante. Um senhor olha para a cidade montanhosa e depois de dobrar uma pilha de roupas, carrega-a para a creche, onde faz uma pausa para assistir a seu neto brincar ao ar livre com as outras crianças. Percebe que vive em um lugar de riqueza comunitária e que contribui diariamente para esse crescimento. E esse é apenas um exemplo de como o design ecoeficiente pode transformar a experiência cotidiana.
Confrontado com o mundo em que vivemos hoje, o cenário proposto encontra-se entremeado de coisas que poderíamos lamentar, como o impacto de automóveis movidos por combustíveis fósseis ou a poluição dos rios e córregos, testemunho de que as estratégias industriais em voga nunca atingirão um alto padrão de vida para os povos do mundo.
As transformações propostas permitem às nossas crianças uma história de esperança. Buscando um futuro possível, as tragédias de hoje nos estimulam a imaginar soluções. Primeiramente, podemos simplesmente tentar nos libertar de algo que sabemos ser prejudicial, como o cloro ou o chumbo. Na medida em que começamos a conhecer melhor os produtos que compramos, podemos fazer escolhas. Designers envolvidos nessa transformação começariam a analisar os materiais usados nos produtos, substituindo as substâncias nocivas por ingredientes benignos. Outros produtos seriam desenhados a partir de materiais definidos como nutrientes totalmente seguros, tanto biologica quanto tecnicamente. E, finalmente, desenvolveriam sistemas de montagem coerentes com o fluxo berço a berço.
Essas mudanças estão ao nosso alcance. Na verdade, já começaram. E, quando percebermos os frutos de nossos esforços, os atuais lamentos transformar-se-ão em celebrações de um mundo em que as pessoas e a natureza prosperam juntas, abundantemente, extravagantemente…. esperançosamente.
William McDonough e Michael Braungart
Autores de Cradle to Cradle: remaking the way we make things. Nova York: North Point Press, 2002.
Como citar
BRAUNGART, Michael; MCDONOUGH, William. O gesto extravagante. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 5, p. 34-38, jan. 2013.