O QUE AS
PLANTAS NOS
ENSINAM
SOBRE POLÍTICA?
Texto de Mauro Dela Bandera
Cartazes de ColeraAlegria
Em uma versão da história da humanidade contada à exaustão, a invenção da agricultura intensiva, sucedida quase de forma mecânica pela propriedade privada, teria levado à emergência do Estado. Essa história, no entanto, não explica tudo, e nela importa tanto o que é posto às claras quanto o que resta oculto.
A íntima relação entre agricultura e política é mais antiga que a presença de uma bancada ruralista no Congresso Nacional. Essa é uma história profunda expressa no discurso filosófico e na imaginação conceitual, pois as culturas agrícolas também são políticas. Se roças de coivara ou cultivos itinerantes produzem em seu movimento a esquiva da centralização do poder e, com isso, a biodiversidade, no outro extremo, monoculturas cerealistas resultam em homogeneidade estatal, natural e humana e transformam a diversidade das paisagens em ruínas do Estado. Os desertos também podem ser verdes, conforme nos mostram os campos de soja, milho, eucalipto e cana. No momento em que, ratificado pelo Estado, o agronegócio avança despudoradamente seu braço monocultor sobre os territórios, eliminando outros cultivos, sistemas agrícolas e conhecimentos tradicionais, é urgente lançar a questão: o que as plantas nos ensinam sobre política?
Os autores modernos consideram que o Estado é uma criação recente, ou seja, a humanidade não esteve fadada desde suas origens a ter chefes e a obedecê-los, diferentemente de uma concepção de poder político, nascida e desenvolvida na Grécia antiga, que naturaliza tal destino. Muitas sociedades se arranjaram sem o Estado e dele não tinham sequer uma ideia vaga. O filósofo David Hume notara, no Tratado da natureza humana (1740), que não é absolutamente impossível que os humanos vivam em sociedades sem governo. O estado de natureza histórico formulado pelo filósofo Jean-Jacques Rousseau no Discurso sobre a desigualdade (1755) revela essa possibilidade: um sem número de sociedades no mundo estranham a ideia de comando e de obediência e vivem sem chefes e sem governos.
Já no século XX, o antropólogo Pierre Clastres investigou como diversos povos recusaram, e seguem recusando, a formação do Estado, vivendo às margens dele, contraefetuando sua influência. Por pressentir os perigos, por intuição ou premonição, esses povos criam modos de inibir e bloquear sua emergência, mesmo sem jamais ter experimentado uma vida sob o jugo do Estado. Longe de se definirem como povos sem Estado, são povos contra o Estado, que de modo consciente se posicionam politicamente contra sua emergência. Em consonância, o cientista político estadunidense James Scott reforça que determinadas sociedades reconheciam sua ameaça e, justamente por isso, desenvolveram estratégias de resistência variadas às investidas de controle; povos que, por decisão política, permaneceram fora da máquina estatal ou dela escaparam, criando seus refúgios e seus quilombos.
O Estado não é eterno, tampouco um destino inescapável da vida social que, uma hora ou outra, brotará de supetão com todos os seus infortúnios. Se cresce o número de estudos que datam o nascimento desse e daquele Estado, seria justo suspeitar que deve haver atestados de suas dissoluções. Se naturalmente ninguém manda e ninguém é mandado, o que teria historicamente instaurado a opressão do “eu mando” e “você obedece”? Que condições misteriosas marcaram o fim da igualdade e o início da vida civil? Que medonho acontecimento ou que revolução funesta permitiu o surgimento da figura que comanda e, com ela, aquela dos que se calam? A pergunta jamais perdeu seu viço: de onde provêm o Estado e o poder político? A essa questão acrescento outra: o que poderiam as plantas nos contar sobre a origem do Estado?
Uma tentativa de desvendar o mistério dessa origem foi ensaiada por Rousseau e retomada por gerações de pensadores, no século XVIII, no iluminismo escocês, como Adam Smith e Adam Ferguson, passando por Friedrich Engels, no século XIX, até ser renovada em Against the Grain, de James Scott, em 2017. O enredo dessa mitologia ocidental é bem conhecido. Quando a humanidade era jovem, um passado não inscrito na linha do tempo, os agrupamentos humanos eram diminutos e igualitários, vivendo da caça e da coleta, gozando de uma vida sem hierarquias. As desigualdades social e política seriam desconhecidas até a revolução neolítica (termo cunhado pelo arqueólogo Gordon Childe, no século XX), momento em que a humanidade teria tomado outro rumo em direção à civilização, por meio de suas novas aquisições tecnológicas, da metalurgia, da domesticação de animais e plantas, da escrita, dentre outras. Acredita-se que durante a maior parte de nossa história teríamos vivido em pequenos grupos igualitários de caçadores-coletores, e que a agricultura, em companhia dos grãos, teria feito germinar a propriedade privada e seu cortejo rumo à vida “tal como a conhecemos hoje”.
Nessa história hipotética da humanidade, a invenção da agricultura intensiva, sucedida quase de forma mecânica pela propriedade privada, teria levado à emergência do Estado. No entanto, isso não explica tudo, pois nessa história importa tanto o que é posto às claras quanto o que resta oculto. E a instituição do Estado segue assombrando nosso imaginário político-filosófico, pois, se o verdadeiro fundador da sociedade civil foi aquele que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de selar sua posse dizendo “isto é meu”, desconfiamos ainda da fonte do desejo de se apropriar. O mistério que ronda a instauração da civilização se acentua diante da incompreensível transformação econômica pensada no seio de uma sociedade contra o Estado: de um modo de produção doméstico, dotado de autonomia, autossuficiência e independência, para a produção orientada pelo acúmulo e por excessos, equacionada à subordinação, à heteronomia e à dependência.
Seguindo essa história hipotética, os grãos cultivados de forma intensiva foram vistos como os agentes da transformação. Ferro e trigo civilizaram os humanos. Então, é com a transformação do modo de produção da vida, agora pautado na desigualdade social decorrente da acumulação, que a emergência estatal se torna compreensível. Completamos nossa constelação conceitual com a aparição da propriedade privada, a produção de excedentes, a divisão do trabalho, o trabalho alienado, a exploração das mulheres, a escravização de humanos, e também dos não humanos. Na medida em que o cultivo da terra gera a ideia de propriedade privada, do acúmulo da riqueza e da desigualdade resulta o estado de guerra, sendo o Estado a solução para findar a belicosidade de todos contra todos, evitando que os conflitos consumam a sociedade.
Essa hipótese dos grãos, do século XVIII, adquiriu ares científicos em análises, como a de James Scott, que se pautam em estudos arqueológicos da pré-história dos primeiros Estados na região da antiga Mesopotâmia, atual Iraque, Kuwait e outros Estados vizinhos. De acordo com os dados provenientes de diversas regiões do mundo, os Estados da antiguidade emergiram e se sustentaram em economias dependentes do cultivo de poucos cereais – nomeadamente o trigo, a cevada, o painço, o arroz e, no caso da América, o milho –, na contramão da biodiversidade regional que propiciava estratégias sazonalmente variadas, que aliavam pesca, coleta, formas de manejo da paisagem, caça, em suma, economias da mobilidade e da autonomia avessas ao controle centralizado. Se à primeira vista parece que sugerimos uma ligação mecânica entre o desenvolvimento da agricultura e o nascimento do Estado, cabe tornar o argumento mais sutil, pois nem toda economia na qual há presença de grãos é afim ao Estado. Contudo, fato é que o Estado nunca irrompe onde não há uma agricultura centrada nos cereais. Não há registros de Estados da lentilha, do grão-de-bico, do taro, do sagu, da fruta-pão, do inhame, da mandioca, da batata, do amendoim ou da banana, ou seja, leguminosas e tubérculos não alimentam o Estado, sendo uma economia do grão necessária, embora insuficiente, para a sua emergência e manutenção. Há então uma afinidade eletiva entre eles, e o Estado apenas prospera com a exploração e a dominação de um modo de existência materialmente apto à apropriação: o dos grãos.
Uma vez instituído o Estado, ele contribuiu para preservar e ampliar o território agroecológico que estava no fundamento de seu poder e, assim, interditar as atividades de subsistência não tributáveis, apagando a diversidade, pois à medida que algumas culturas vegetais são priorizadas e incentivadas, outras são esquecidas, proibidas e questionadas. Assim, ao contrário dos tubérculos e das leguminosas, os cereais são as culturas político-estatais por excelência, pois perfeitamente legíveis sobre o solo, de amadurecimento simultâneo e previsível, e, portanto, tarifáveis, armazenáveis, confiscáveis.
A história dos povos autogovernados, no entanto, não se restringe ao passado arqueológico. O que vale para a história antiga vale, com ao menos tanta razão, para a história recente de regiões como as terras altas do Sudeste Asiático, uma enorme área montanhosa conhecida por Zomia, analisada por James Scott em The Art of Not Being Governed, de 2009. Nesse maciço continental, uma multiplicidade estonteante de grupos étnicos habita as franjas dos Estados de Myanmar, Vietnã, Laos, Camboja, Tailândia, China e soube escapar e resistir, por muito tempo, às investidas estatais por meio de alianças com os vegetais. Não à toa, da perspectiva pejorativa do Estado, são os remanescentes ancestrais da vida anterior ao budismo, à civilização e ao arroz. O modo de vida desses grupos minoritários das montanhas, como uma escolha política, é central para a esquiva: suas técnicas de moradia e de cultivo propiciam a evasão com a dispersão física em terrenos acidentados, a alta mobilidade e as práticas de cultivo itinerante associadas a uma economia não especializada.
A diversidade linguística e a oralidade não deixam de ser igualmente um ato de recusa relevante. Na resistência cotidiana, os povos dessa região praticam uma agricultura que evita a monocultura cerealista, mais fácil de controlar e de recensear pelo fisco, em proveito da caça, da coleta, da cultura de tubérculos, do cultivo de alimentos de ciclo curto, de amadurecimento irregular e que despendem cuidados pontuais, tais como a mandioca, a batata-doce, o inhame e a papoula. Às sombras da nossa imaginação política, há histórias de culturas e de povos contra o Estado que vão na contramão da opressão do poder centralizador.
A dependência de o Estado incentivar determinados cultivos e proibir outros atravessa o oceano e aporta no Brasil Colônia no século XVIII. A preocupação dos colonizadores era determinar os tipos de cultivares mais adequados aos interesses da coroa portuguesa. No tratado intitulado Tesouro descoberto no máximo rio Amazonas, o jesuíta português João Daniel recomenda a proibição do cultivo da mandioca e, em seu lugar, o incentivo à cultura dos cereais, sobretudo do trigo. O cultivo da mandioca implica a prática de uma agricultura itinerante e, por conseguinte, propicia a mobilidade ou não fixa as pessoas num território e, por isso, não implica uma relação proprietária com a terra. Os cereais são mais desejáveis do ponto de vista do Estado, uma vez que implicam cuidados que fixam as pessoas em suas terras, facilitando o governo e o controle.
A narrativa de João Daniel não é em nada trivial e revela certo laço metafísico entre grãos e Estado, tal como concebido por Rousseau mais ou menos à mesma época, e analisado por Scott no século XXI. A agricultura cerealista desestabiliza, ao mesmo tempo, a paisagem vegetal, transformando as vastas florestas em campos de produção, e a igualdade da paisagem humana, ao introduzir a divisão de classes, a concentração de poder econômico e o poder político separado da sociedade. Os produtores de cereais do núcleo central eram sujeitos domesticados e civilizados; por sua vez, os caçadores, pescadores, os coletores, os pastores, os agricultores itinerantes e os horticultores eram vistos como populações selvagens, bárbaras e rústicas. Essas populações indomáveis eram um perigo à civilização, um incômodo ou uma ameaça que seria preciso exterminar ou controlar, do mesmo modo que a agricultura cerealista deve, para prosperar, eliminar as demais formas de cultivo e a variedade de espécies vegetais.
Questionar a origem ou o alcance do Estado é, de certa forma, pensar a origem e o alcance do cultivo de cereais. Ao descobrir uma, muito provavelmente descobre-se a outra. Donde se segue a espinhosa questão: como, afinal, a agricultura cerealista emergiu e prosperou dominando as demais formas de existência?
As sociedades contra o Estado são genuinamente sociedades do lazer e da abundância, são sociedades afluentes. O acesso à riqueza do mundo vegetal-animal em regiões férteis e úmidas faz com que os humanos possam viver de acordo com o modo de produção doméstico de coletores, caçadores, pescadores, criadores, horticultores e agricultores itinerantes, sem a necessidade de se dedicar exclusivamente à agricultura de grãos, caracterizada por uma intensificação inútil do tempo de trabalho e pela produção de excedentes. Já os que praticam uma agricultura exclusivista encontram-se confinados a uma só rede de alimentos e suas práticas obedecem ao ritmo específico desta rede, subordinados ao metrônomo das colheitas e à uniformidade das paisagens marcadas pelo arado. Excelentes razões nos levam a considerar que a vida exclusivamente agrícola implica um aumento da insegurança alimentar: pragas e parasitas que, porventura, venham a abater-se sobre as culturas tornam o resultado da agricultura questionável, colocando todo o trabalho a perder.
A mudança de um modo de vida baseado em enorme variedade de flora e de fauna para outro, sustentado por um punhado de cereais e de espécies de rebanho, reflete um empobrecimento e um estreitamento das relações socioambientais incompreensíveis, de sorte que nos afastamos cada vez mais das condições da passagem contínua rumo à prática dominante da monocultura cerealista, o que não faz senão tornar a emergência e a influência do Estado ainda mais improváveis. Sobre isso, são relevantes as evidências no sítio arqueológico Abu Hureyra, na atual Síria, no qual grupos de coletores paleolíticos exploravam mais de uma centena de espécies vegetais contra menos de uma dezena de seus sucessores neolíticos.
Alguns especulam que algo extraordinário tenha se passado para explicar esse mistério. Rousseau e Scott recorrem então à hipótese – deus ex machina – de uma abrupta mudança climática ou de catástrofes naturais. Tais eventos teriam culminado em aridez e seca tanto na baixa mesopotâmia estudada por Scott (entre 3500 a 2500 a.C.) quanto na hipotética primavera perpétua retratada por Rousseau, fenômenos que estimularam os modos de produção mais adaptados ao surgimento e à ação estatal: um tipo de protourbanização de alta concentração demográfica e de mão de obra próximas a locais de abundância hídrica, impedindo a dispersão e a variação sazonal dos modos de existência, bem como a utilização dos cereais para a alimentação de grandes contingentes populacionais.
A essa altura, a influência agroeconômica sobre o político assume contornos mais claros, já que as alterações no nível da produção afetam ou criam a esfera política, sendo o surgimento do Estado o reflexo de transformações profundas derivadas da revolução agrocerealista. Em boa linguagem marxista, a infraestrutura determina a superestrutura. Em um polo estaria a vida material, em outro, as relações sociais, políticas e morais, concedendo-se ao primeiro destes polos uma eficiência causal preeminente.
Por certo, os grãos iluminam certos aspectos de nossa investigação, não obstante e, ao mesmo tempo, obscurecem outros. A principal dificuldade dessa hipótese é que a agricultura, auxiliada ou não por machados e outras ferramentas de metal, não criaria automaticamente um excedente de alimentos. Trabalhos desenvolvidos por nomes como Marshall Sahlins e Pierre Clastres mostram que as práticas agrícolas de muitos povos do mundo não se orientam pela produção de excedentes e isso não decorre de uma limitação tecnológica, tampouco ambiental. Longe de se inscrever numa falta, a ausência de excedentes é desejada socialmente. Diversas sociedades humanas zelam conjunta, permanente e politicamente para não deixar acontecer o que se passou na narrativa hipotética de Rousseau: que o modo de produção vise ao excedente. A variedade transcontinental das referências mobilizadas por Sahlins – caçadores-coletores nômades dos desertos da Terra de Arnhem, na Austrália, e os Bochiman do Kalahari, na África do Sul, agricultores de coivara na África, na Melanésia, no Vietnã ou na América do Sul, dentre eles os Chimbu, da Papua-Nova Guiné, e os Kuikuru, do Brasil –, confirma que a economia de inúmeras sociedades não estatais, tanto agrícolas quanto não agrícolas, não busca o excedente, caracterizando-se, ao contrário, pela produção doméstica.
De conclusão semelhante, os dados apresentados por Clastres provêm de observação direta entre os Guayaki, ou a partir de uma série de etnografias e relatos, dentre elas a dos Yanomami ou a dos Tupi. Grupos indígenas amazônicos ou outras populações, presentes ou passadas, desenvolveram complexos sistemas agroflorestais com preponderância ora maior ora menor dos cultivos agrícolas, manejando a paisagem, diversas espécies de plantas – dentre elas, alguns cereais, como milho e arroz – e produzindo florestas antropogênicas, sem que houvesse, não obstante, a preocupação em acumular ou produzir excedentes.
Não é então o econômico que dá origem ao político, pois os mecanismos sociais necessários à produção de excedentes não derivam de alguma mecânica oculta nos grãos. Um modo de produção econômica não traz em si uma organização política correspondente e necessária. Se a importância dos grãos é inegável, eles não atuam sozinhos. Em termos causais, se a agricultura cerealista pode ser considerada em certa medida a causa material da desigualdade, não é possível dizer que seja também sua causa eficiente. Dito de outro modo, a agricultura não impõe o fardo do Estado.
Ao imaginar solucionar a intrincada questão sobre a origem estatal, não fizemos senão nos afastar desta resolução, pois, numa reviravolta insuspeita, descobrimos que a esfera política tem certa preponderância sobre o econômico: o econômico deriva do político e não o contrário. Qual é a razão de aumentar as horas de trabalho? De produzir além do necessário para o consumo? Essa razão é política. Ante a ausência de imposições à acumulação ou de teias de dependência entre os humanos, não haveria a incitação à produção para além das exigências locais de autossuficiência e de bem-estar, tampouco razão para aumentar a intensidade de trabalho. Essa força impositiva, sem a qual as populações não renunciariam ao lazer, é a potência de sujeitar, é a capacidade de coerção e é, em última instância, justamente o poder político.
O poder político força a produção de excedentes, não é o modo de produção de excedentes que funda o político. Não são os grãos que fazem brotar o Estado, mas o Estado é que impõe a germinação dos grãos. Todos esses embaraços sugerem que analisar as metamorfoses da ordem econômica a partir dos grãos talvez só leve a acentuar o paradoxo sobre a origem do Estado, pois outras questões igualmente misteriosas aparecem e pedem respostas. A questão sobre essa origem se renova, sem que se torne fácil determinar seus contornos. Os grãos se transformam em armadilhas semânticas, miragens metafísicas e mitos de origem. Talvez seja indispensável abandoná-los como centrais em nossa imaginação conceitual a respeito da história social e política e reconhecer que a revolução agrícola não foi capaz de promover uma mudança radical que marcaria o início do estado civil.
Se ainda parece impossível determinar com exatidão as condições de aparecimento da hierarquia e do Estado, não é inconcebível precisar como os Estados, seja qual for a causa de seu surgimento, conseguiram prosperar ou fracassar. Nesse ponto, as plantas trazem ensinamentos seguros sobre ordenamentos político-sociais. Os grãos são reabilitados, pois aparecem frequentemente germinados pelo poder político hierarquizado, portanto, permanecem como as marcas de uma política de Estado. Inversamente, muitas regiões do mundo, dentre elas as ocupadas pelos ameríndios das terras baixas sul-americanas e pelos povos de Zomia, nos mostram a relação entre a recusa em se policiar (sinônimo, no século XVIII, de civilizar-se) e a escolha política em não praticar uma agricultura exclusivamente cerealista. Ser contra o Estado se desdobra numa relação de contiguidade ou afinidade em ser contra o grão.
Em uma agricultura contra o Estado prevalece a fluidez das circulações físicas e a mobilidade das populações, a permeabilidade das fronteiras, as estratégias mistas de existência, de promoção da variabilidade vegetal; a riqueza dos modos de vida e de se relacionar com os não humanos, bem como dos arranjos sociopolíticos.
A olhos menos mesmerizados pelas falsas promessas de segurança e de prosperidade estatais surgem paisagens políticas diversas, orientadas pela autonomia, um mar de periferia salpicada de frágeis centros de poder. Poderíamos tirar das sombras da filosofia da história uma contramitologia do político, aquela que conjura a emergência do poder centralizado, que deixa de ser um caminho natural, uma passagem do simples ao complexo, com narrativas de fugas, resistência e a possibilidade renovada de criar e recriar outras formas de política. Com isso, talvez a imagem de uma revolução neolítica, com seus centros de poder e sua marcha triunfalista, descrita como um grande romance evolucionista, comece a se desfazer em um evento contingente, localizado e instável, a se diluir em prol do florescimento de outra imaginação político-vegetal.
Mauro Dela Bandera
Filósofo, professor da UFPR, é doutor em Filosofia pela USP.
ColeraAlegria
Coletivo temporário de artistas que se rearopria de símbolos e termos deturpados por discursos de direita. Atuam nas redes sociais por #coleraalegria.
Como citar
BANDERA, Mauro Dela. O que as plantas nos ensinam sobre política?. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, edição especial Vegetalidades, p. 2-11, set. 2023.
Esta edição especial da revista foi produzida colaborativamente pelos editores Felipe Carnevalli, Fernanda Regaldo, Paula Lobato, Renata Marquez e Wellington Cançado e pelas editoras convidadas Anai Vera, Bianca Chizzolini e Karen Shiratori.