O RETORNO
DA POLÍTICA
Texto de Moysés Pinto Neto
Folklor Insurrecto, pinturas de Francisco Papas Fritas
Aceleracionismo, exterminismo, comunismo de luxo, anarcoindigenismo. Em meio à indefinição do século por vir, desenham-se quatro alternativas polarizadas de futuro.
Recorrentemente tachado de “catastrofista” ou “apocalíptico”, o debate sobre a experiência de um ponto-limite que estaríamos na iminência de alcançar finalmente começa a ser colocado com a seriedade que merece. Antes restrito ao universo acadêmico, ele passou a ocupar, nos últimos anos, as artes e a política, como no movimento internacional Extinction Rebellion e na luta de uma nova geração contra as mudanças climáticas, cuja maior liderança é a ativista Greta Thunberg. A noção de “Antropoceno”, em particular, marca essa virada.
Disseminado pelo químico Paul Crutzen e hoje em ampla discussão tanto na área da geologia quanto nas próprias humanidades e ciências sociais, o conceito se referiria à transição de uma era geológica – o Holoceno – em direção a um novo período em que as atividades humanas ultrapassam o campo da interação animal e começam a interferir sobre o ambiente. Apesar de controversa, a provável origem dessa era remete à Revolução Industrial, no século XIX, quando a introdução de um novo modelo produtivo acaba gerando uma ampla interferência humana sobre os diversos hábitats naturais, e passa por uma “grande aceleração” no século XX com a formação das sociedades de consumo.
No Brasil, esse debate foi introduzido na área humanística por Déborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro no seminal Há mundo por vir? Ensaios sobre os Medos e os Fins, em que a temática do fim do mundo aparece como uma variação entre os estados de mundo sem gente, gente sem mundo, entre outros. No ensaio, fica clara a “floração disfórica [que] se dispõe na contracorrente do otimismo ‘humanista’ predominante nos três ou quatro últimos séculos da história do Ocidente”, prenunciando “a ruína de nossa civilização global em virtude mesmo de sua hegemonia inconteste, uma queda que poderá arrastar consigo parcelas consideráveis da população humana” e, como “barbárie por vir”, pode inclusive ser “tanto mais bárbara quanto o sistema tecno-econômico dominante (o capitalismo mundial integrado) continuar sua fuite en avant”. Evidentemente, a pandemia global de covid-19 — com seus impactos humanos, ecológicos, políticos e econômicos — tira do assunto qualquer aura de excentricidade ou hermetismo, jogando-o no nível da urgência e tornando a pax que combinava democracia liberal e economia de mercado uma relíquia de tempos remotos.
Déborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro exploraram as variações metafísicas e antropológicas do tema. Aqui, elaboro uma visão preliminar e hipotética dos quadrantes políticos de futuros possíveis em quatro variações inspiradas por seu ensaio e complementadas pela leitura do livro Four futures: visions of the world after capitalism, de Peter Frase. No livro, Frase esboça um quadro especulativo similar a partir de dois eventos disruptivos: a automação total e a crise ecológica. Sua divisão tem dois eixos, escassez/abundância e hierarquia/igualdade, resultando em comunismo (abundância e igualdade), rentismo (abundância e hierarquia), socialismo (escassez e igualdade) e exterminismo (escassez e hierarquia). Não é difícil perceber que os quatro eixos correspondem às quatro linhas políticas centrais nos últimos séculos em uma forma transfigurada para o futuro: liberalismo, comunismo, fascismo e anarquismo. Este ensaio é uma variação dos quadrantes fraseanos divididos, porém, em civilização (aceleracionismo), barbárie negativa (exterminismo), civilização renovada (comunismo) e barbárie positiva (anarcoindigenismo).
Civilização: o projeto estelar aceleracionista
Desde sua virada para o neoliberalismo, o capitalismo vinha se desfazendo de seu espírito fordista e, como convincentemente descreveram Luc Boltanski e Eve Chiapello em O novo espírito do Capitalismo, passando a uma nova forma conexionista, horizontal e criativa, transitando também da indústria para as finanças e do protestante ascético para o yuppie moderno a partir da incorporação da “crítica estética” das revoltas de 1968. Desde o crash das hipotecas subprime de 2008, no entanto, esse espírito entrou em crise e perdeu a capacidade de manejar o leme da governabilidade com a mesma naturalidade que mantinha anteriormente. As gestões tecnocráticas de centro-direita (Sarkozy, Merkel, Rajoy, Cameron, May, Piñera, FHC, etc.) e centro-esquerda (Lula, Obama, Hollande, Zapatero, Morales, Bachelet, etc.) que dividiam o poder entraram em crise.
Desde então, o establishment liberal vem tentando recuperar-se. Lideranças que combinam a defesa da economia global dos mercados com políticas de reconhecimento, como Trudeau, Merkel e Macron, são a tentativa de retomar o projeto após o crash de 2008. Há, contudo, uma nova transformação no espírito do capitalismo: enquanto anteriormente a lógica do dinheiro e do enriquecimento recebia uma forma cínica, tal como personagens do cinema em filmes como Wall Street (1987), Psicopata Americano (2000) ou O Lobo de Wall Street (2013) não cansavam de mostrar, a nova face que sai de Manhattan para a Califórnia é mais politicamente correta, buscando combinar a lógica do enriquecimento com projetos sociais, defesa do meio ambiente e das pautas minoritárias. Para tanto, em geral, lida com problemas estruturais como a desigualdade econômica e a destruição do planeta baseando-se no “solucionismo tecnológico”, isto é, na crença de que todos os problemas sociais e políticos podem ser resolvidos com o aperfeiçoamento técnico adequado. Os representantes desse “otimismo geek” são, hoje em dia, corporações como Google, Facebook, Amazon e Apple. Esqueça Warren Buffet e os carniceiros das finanças e pense em Elon Musk e seu imaginário tecnofílico megalômano; esqueça as festas selvagens regadas a cocaína e a adrenalina dos fluxos numéricos das ações subindo e despencando e pense em meditação e mindfulness como “estratégias para lideranças” que fomentam cabeças inovadoras e criativas.
Levando em consideração a cultura da disrupção como estado permanente nesse novo espírito, venho nomeando-o “aceleracionista”, inspirado numa corrente de pensamento que vem ganhando força no Norte e gradualmente também encontra alguns adeptos no Brasil. Como infraestrutura para a manutenção do sistema atual baseado em lucro e avanço tecnológico, esse projeto investe na aceleração do tempo e na compressão do espaço, intensificando o capitalismo em uma direção que extravasa a própria compleição corpórea natural. O “empreendedor de si” não reconhece mais barreiras entre diferentes instâncias da vida: tudo, desde o próprio corpo até o universo infinito, confunde-se com o fluxo informacional que se torna o próprio capital.
Diante da dissolução do corpo (e da natureza) em bits de informação, também a própria existência física torna-se redundante e, como mostram filmes como Transcendence, Ela ou séries como Black Mirror ou Altered Carbon, existe uma tendência a procurar uma espécie de dissolução da própria espacialidade, situando-se como um digital puro sem extensão.
Assim, não se pode dizer que o aceleracionismo capitalista seja simplesmente tomado por uma força banal de enriquecimento das elites (embora este seja, obviamente, um dos efeitos). Sua legitimação vem do projeto que, no ritmo do capitalismo e com a proteção da propriedade intelectual concentrada em megacorporações, finalisticamente se dirige à construção de elites capazes de realizar os sonhos fáusticos mais comuns de toda a história do humanismo e talvez até mesmo das religiões, como a imortalidade, a ser conquistada mediante aprimoramentos biotecnológicos pela genética, pela neurociência, pelas nanotecnologias ou por próteses cibernéticas. A geoengenharia aparece aqui como alternativa de restrição dos efeitos climáticos sem que haja mudanças no modelo tecnoeconômico. A viagem e a colonização interplanetária se tornam uma alternativa diante da ameaça de colapso ecológico total na Terra. A velha transcendência não deixa de existir, passando a se realizar na Terra por meio da tecnologia e, por isso, carregando o “trans” no nome: transumanismo.
No horizonte da pandemia, a desmaterialização do corpo aparece como alternativa aos riscos inerentes ao contato social epidêmico. O processo de transferência de ossos, carne e sangue para um conglomerado de dados se acelera. Deslocando-se com cada vez maior intensidade para o mundo digital, é possível abdicar dos sofrimentos do físico em detrimento de uma realidade paralela – ou pelo menos um redesenho de suas principais características. Isso não deve ser entendido simplesmente como reprimenda moralista: o surgimento de novas formas de controle na vida social – derivadas do aprimoramento de mecanismos de vigilância que fariam Admirável mundo novo, de Huxley, 1984, de Orwell, ou Nós, de Zamiatin, parecerem livros infantis – pode tornar esse deslocamento a última alternativa viável.
O projeto supõe, contudo, que a política seja mantida sob controle (evitando os diversos “populismos” – tanto de direita quanto de esquerda – que ameaçam o equilíbrio do establishment) e que a conexão global seja mantida sob o regime restrito da propriedade intelectual, priorizando o Vale do Silício e a aliança entre a tecnocracia governamental e o capitalismo financeiro. Os populismos, afinal, fazem renascer a política de modo incontrolável, tornando visível a insuficiência do solucionismo tecnológico para dar conta dos antagonismos sociais. Por isso, é preciso domesticá-los com mecanismos de filtragem que permitam limitar seu alcance, mantendo a narrativa progressista intacta. A filtragem, contudo, opera de modo opaco: as políticas de controle não são, elas mesmas, controladas democraticamente, atuam no interesse exclusivo de corporações e plataformas e preservam o oligopólio financeiro baseado em dados indene.
Barbárie negativa: exterminismo
Uma ameaça reacionária, no entanto, assombra o domínio do aceleracionismo capitalista. Composto pelo descontentamento das classes trabalhadoras precarizadas com a piora das condições de trabalho e pela ausência de um horizonte de futuro e movido pelo ressentimento social, esse segmento dirige-se contra as elites políticas e culturais e culpa ambas pelo modelo atual. Com isso, fabrica inimigos como bodes expiatórios entre as minorias, sobretudo entre imigrantes e refugiados, e produz a nostalgia compartilhada da “Era de Ouro” do passado pré-global e pré-multicultural em que havia uma relativa “ordem moral” consensual e tradicional, não raro remetendo inclusive a uma visão nacionalista na política econômica que contraria o neoliberalismo mais estrito, que demanda abertura dos mercados ou barateamento da mão de obra pelo deslocamento da indústria para a Ásia e pela entrada de imigrantes sem garantias legais.
Não há dúvidas de que é Donald Trump, com seu lema “Make America Great Again”, quem sintetiza melhor esse novo espectro, composto também por grande fatia dos votantes pelo Brexit na Inglaterra, os governos da Hungria e da Polônia, a Liga Norte na Itália, a Aurora Dourada na Grécia, o renascimento da extrema direita nazista na Alemanha e, no Brasil, o fascismo militarista de Jair Bolsonaro. Esse arco, no entanto, deve ser estendido para todas as alternativas de fechamento estrutural do regime que se combinam com as tecnologias de vigilância contemporâneas e, portanto, abrange também, em graus distintos, China, Rússia, Turquia e, como casos-limite, as teocracias do Oriente Médio e o regime totalitário da Coreia do Norte. Numa escala ascendente, são todos exemplos de autoritarismo estatal e social combinado ao nacionalismo reacionário.
Por ora, esse modelo é simplesmente orientado ao passado e, quando confrontado com os desafios tecnológicos e a crise ambiental, funciona em termos de denegação. Notícias falsas e “fatos alternativos” são a resposta aos problemas do regime da pós-verdade em que o pertencimento ultrapassa a verossimilhança e a virulência verbal combinada com a violência física aponta para a brutalidade como modo de fazer política. Paradoxalmente, o regime que nega o futuro é o que atualmente usa com maior habilidade os Big data, manipulando a esfera pública com estratégias baseadas em conexões afetivas e pânicos morais e fomentando um estado de caos permanente. Com isso, foi capaz de recriar as massas, até então dispersas na cultura atomizada liberal dominante e restritas a situações relativamente domesticadas pela indústria cultural, agora na forma das manadas virtuais que atacam em volumes gigantescos, combinando exércitos híbridos de bots e trolls e mesclando modulações de ironia e cinismo (humor brutal) com ações diretas promovidas por “lobos solitários” (como os múltiplos ataques de atiradores que já são efeito da cultura global, embora paradoxalmente a desprezem). Recriando a massa, o novo fascismo reaviva toda a literatura – de Freud a Milgram, de Adorno a Reich – que investigou o poder “hipnótico” do líder (“o homem forte”) sobre seus seguidores e a subjetivação que abraça a submissão voluntária.
Sua relação não se dá com a terra ou o local, como se costuma dizer, mas com o solo ou a soberania, o desejo de propriedade absoluta e expansiva mantido a ferro e fogo numa mitologia da guerra e da conquista. A condição de elite é resultado da eleição divina que destina àquele povo específico a glória. O imaginário é supremacista, patriarcal, e consagrado ao desejo pelo Um-Todo, embora sob certas circunstâncias – como é o caso dos governos Bolsonaro no Brasil e Trump nos EUA – a produção artificial do caos seja o método político orientador. Apesar, portanto, do Um-Todo, não é no Estado que ele se condensa. O Estado é uma relíquia de um tempo em que a liberdade do mais forte em prevalecer era limitada. A lei estabelecia fronteiras que não poderiam ser cruzadas, partindo da igualdade geral. Agora, são novas mediações – como as igrejas, as milícias e as corporações – que desenham um cenário em que todo “público” é imediatamente desacreditado por limitar a supremacia dos fortes.
No já mencionado livro, Peter Frase, combinando as imagens da hierarquia e da escassez, associa a tendência ao que nomeia “exterminismo”. Usando uma imagem do filme Elysium (2013), destaca que os “inúteis” ficariam reduzidos a uma existência aprisionada em um grande campo de concentração no qual os indivíduos trabalhariam para produzir as próprias armas que os mantêm prisioneiros. Em um cenário no qual o trabalho humano torna-se completamente dispensável diante da automação geral, toda necessidade de negociação se tornaria desnecessária e quem está fora da elite, matável. Trata-se de uma imagem familiar para quem conhece os trabalhos de Giorgio Agamben, por exemplo, acerca do estado de exceção e da produção de vida matável, ou as recentes investigações de Achille Mbembe acerca da necropolítica.
No contexto do covid-19, algo ficou muito claro: a ideia eugênica da sobrevivência dos mais fortes, com a erradicação de qualquer laço social de responsabilidade, foi adotada de modo implícito e explícito. O espaço político, em alguns casos, deixa de ser um esforço coletivo de construção de um projeto para se situar no campo de todos contra todos. O cinismo troll, mesmo com sua condição fake, encontra então um ponto de indiscernibilidade com o exterminismo: a galhofa contra o “politicamente correto” é agora dirigida contra os “hipócritas” que negam o caos como única forma de funcionamento do mundo. A seguridade social acumulada nos velhos tempos de Estado de bem-estar é ridicularizada como mentirosa, falsa e corrupta, pois toma o lugar do único modelo possível de sociedade: aquele em que os fortes prevalecem e a hierarquia natural dá ordem às coisas.
Por isso, apesar de denegar a crise ecológica e mesmo o fenômeno da automação geral, geralmente apontando bodes expiatórios e medidas voluntaristas para solucionar problemas complexos, o exterminismo pode bem ser um projeto de longo prazo para a adaptação de elites supremacistas a um novo mundo de maior escassez.
Civilização renovada: comunismo de luxo automatizado
Embora o aceleracionismo esteja identificado com um movimento imanente ao próprio capitalismo contemporâneo, o termo ganhou recentemente popularidade a partir de uma intervenção identificada com as políticas de esquerda. O Manifesto Aceleracionista, escrito por Nick Srnicek e Alex Williams, trazia a ideia de que as tendências de escapar do sistema ou mesmo de recusá-lo criando zonas de autonomia temporária (ocupações, por exemplo) haviam chegado ao limite. Seria necessário adotar outro movimento, capaz de se conectar com o avanço tecnológico promovido pelo capitalismo e ao mesmo tempo levá-lo a seu limite pela máxima aceleração possível. A aposta de Srnicek e Williams era de que o próprio capitalismo hoje é um obstáculo à aceleração.
Mais tarde, Srnicek e Williams publicaram um novo trabalho, desta vez nomeado Inventing the Future, no qual defendem uma nova plataforma de esquerda que contemple a automação total, a redução da jornada de trabalho, a renda básica universal e o abandono da ética do trabalho. Os autores deixaram de lado o termo “aceleracionismo” e passaram a usar – aproximando-se do Podemos espanhol e mesmo de experiências da América do Sul – “populismo de esquerda”. Para construir uma contra-hegemonia em relação ao neoliberalismo seria necessário usar o poder e conquistar a hegemonia, recusando o que nomeiam “folk politics” (algo próximo do que chamamos micropolítica) e buscando, ao contrário, o retorno do universalismo e do projeto de emancipação moderno. Mark Fisher, um dos mais emblemáticos intelectuais ligados à corrente, cunhava o termo k-punk para pensar essa possibilidade de produção de afetos revolucionários ou subversivos em escala industrial. O futuro, sequestrado pelo “realismo capitalista” durante as últimas décadas, nas quais predominou a retromania pós-moderna, torna-se ponto central do projeto.
Nesse ínterim, mobilizações do “socialismo democrático” pró-Bernie Sanders, nos Estados Unidos, Jeremy Corbyn, na Inglaterra, e Jean-Luc Mélenchon, na França, animaram boa parte da juventude desses países que, depois de muito tempo longe da política institucional e diante da vitória das forças sociais mais reacionárias, resolveram reocupar esse espaço. Desde então, a expressão memética criada por Aaron Bastani, fully automated luxury communism (doravante FALC e em português, comunismo de luxo totalmente automatizado), traça um projeto em que se recuperaria a defesa da abundância a partir do salto tecnológico e, contrariamente ao tempo contínuo e modulado da aceleração capitalista, se abriria o tempo livre do ócio e da criação nos termos sonhados por Marx n’O Capital. O canal Novara Media, que tem Bastani entre seus fundadores, abre espaço para demandas de reestatização e retomada do Estado de bem-estar social. Essa linha aglutinou-se em torno de Jeremy Corbyn e autodenominou-se “nova nova esquerda” (contrapondo-se à “nova esquerda” nascida no final dos anos 70 do século passado), chegando a especular sobre uma nova economia planificada com a expropriação da tecnologia construída pelas plataformas corporativas que atualmente comandam o mercado.
Nesse quadrante temos uma encruzilhada interessante: por um lado, seus grandes líderes, Sanders e Corbyn, naufragaram na política eleitoral nas disputas de 2020, mostrando que a auto-reivindicação “popular” não equivale a uma confiança que extrapole a juventude engajada com as ideias da “nova nova esquerda”. Mesmo o Podemos, experiência mais ambígua que abdicou do próprio significante “esquerda” a fim de se colocar como simplesmente “popular”, teve que revisar seus planos e se aliar, numa coalisão típica de centro-esquerda, com o Partido Socialista. Por outro lado, a pandemia de covid-19 reativou de modo estrondoso a necessidade de um sistema público de saúde e de projetos ambiciosos de ruptura com a austeridade neoliberal. A intervenção do Estado, eclipsada pelos mercados nos últimos 30 anos, passa a ser tida como razoável até por núcleos ideológicos francamente hostis ao investimento e aos serviços públicos. Talvez, e apenas talvez, se o timing eleitoral tivesse sido poucos meses diferente, os projetos de Corbyn e Sanders poderiam ter tido outro destino.
O cenário comunista, portanto, compartilha com o aceleracionismo capitalista o imaginário estelar, forjando-se a partir da mitologia prometeica europeia e da recuperação do projeto universalista marxista como saída do horizonte capitalista. No fundo, esse cenário é de um “bom Antropoceno”, compartilhando ainda o imaginário moderno de adaptação da natureza às necessidades humanas e a uma abundância generalizada (luxo) como modo de organização social. Esse, aliás, é o capítulo que abre a obra especulativa de Peter Frase: Comunismo = igualdade e abundância. Ou (eu preferiria) simplesmente: Antropoceno + messianismo.
Barbárie positiva: o anarcoindigenismo
Como apontam Danowski e Viveiros de Castro, “assim como um dia já tivemos horror ao vácuo, hoje sentimos repugnância ao pensar na desaceleração, no regresso, no recuo, na limitação, na frenagem, no decrescimento, na descida – na suficiência”. Um estranho devir-índio perpassaria, no entanto, comunidades camponesas “em vias de modernização” que habitam o espaço rural no Brasil desde a promulgação da Constituição de 1988 e o reconhecimento de direitos indígenas. Que impulso é esse para desejar o menos ou o mais lento? Temos aqui uma possível referência ao universo dos “despossuídos” do romance homônimo da escritora Ursula Le Guin: anarquistas convictos (de Anarres) que valorizam a autonomia, a possibilidade de exploração das potencialidades vitais sem com isto produzir excesso material e na mais plena solidariedade social. No romance, o luxo transbordante do capitalismo (de Urras) é visto como “excremento” pelos anarquistas, assim como a fumaça tóxica do metal habita as mercadorias em A Queda do Céu, do xamã yanomami Davi Kopenawa.
E não é apenas entre os supostamente “atrasados” ou, melhor dizendo, extramodernos, que o decrescimento encontra adeptos. Mesmo no ambiente urbano das megalópoles, cada vez mais encontramos rejeição a processos de “modernização” (construção de estradas, viadutos e obras carrocêntricas, proliferação de arranha-céus e perda dos espaços verdes, privatização e camarotização dos lugares de convivência, militarização da segurança pública e disseminação das técnicas de vigilância) ao mesmo tempo que se fortalecem movimentos entre ciclistas, pedestres, adeptos da permacultura e da agroecologia, dos direitos dos animais, das festas abertas ao ar livre, por exemplo. Ocupações urbanas icônicas da década passada no Brasil, como a do Parque Augusta, em São Paulo, o Cais Estelita, em Recife, e o Ocupa Saraí, Pandorga ou Mirabal, em Porto Alegre, entre muitas outras, estão sintonizadas com essa corrente. Esses experimentos não são simplesmente espaços lúdicos ou de sobrevivência. São uma reinvenção do tempo/espaço a possibilitar a emergência de outras subjetivações que redistribuem essa própria dicotomia organizadora da vida moderna.
A pandemia de covid-19 tornou ainda mais nítida uma dimensão que parecia irrealista ou excessivamente abstrata. Diante da diminuição da atividade econômica, níveis de poluição despencaram, a produção abundante de petróleo caiu no vazio, acidentes de trânsito desabaram, animais não humanos ocuparam praças e piscinas, os indivíduos são convidados a viver em uma temporalidade ralentada em que atividades como cozinhar, limpar a casa, ler, dormir ou simplesmente conversar – mesmo que por meios digitais – retomam sua conexão com o fluxo diário da vida, interrompendo a “correria” que alternava ambientes de reuniões sufocantes, clarões publicitários, corredores infinitos, congestionamentos insuportáveis. Evidentemente, não se trata de apologia a uma incômoda condição de afastamento físico. Em geral, é na luta por espaços abertos que se situa este campo. O que aparece, contudo, é outra temporalidade, outra forma de habitar o mundo, outro modo de existência.
Na Holanda, um grupo de 170 acadêmicos propôs uma agenda pós-pandemia baseada na distinção entre setores que devem crescer ou decrescer dependendo de seu impacto ecológico; no fortalecimento da redistribuição econômica; na transição para uma agricultura regenerativa, atenta à biodiversidade e focada na produção local; na redução do consumo e das viagens; e no cancelamento das dívidas do Sul Global.
A pior das caracterizações do decrescimento é tê-lo como “anarcoprimitivista”, como se houvesse uma rejeição irracional da tecnologia, e não simplesmente a proposição de um novo uso que separa, por exemplo, a produção mediante obsolescência programada, de produtos de baixa qualidade, do aperfeiçoamento de artefatos facilitadores que ampliam a inteligência ou a memória, ou que permitiriam, por exemplo, reduzir o impacto energético das atividades humanas. O próprio encontro virtual se situa como pharmakon (droga: remédio ou veneno) nessa encruzilhada: ao mesmo tempo em que os sujeitos se desmaterializam e perdem o importante contato físico, sensível, ou as múltiplas formas de atenção presencial que não se reproduzem nos fóruns virtuais, centenas de milhões de litros de combustível gastos em voos aéreos desnecessários são poupados, diminuindo o ritmo das mudanças climáticas. As possibilidades abertas pelo afrofuturismo, imaginadas por escritoras como Octavia Butler, são um exemplo desse encontro entre linhas imprevisíveis de modos de existência descolonizados e futuros tecnológicos que excedem o imaginário modernista.
Isso pressupõe não apenas relativizar o destino que muitas vezes irriga os projetos hiperbólicos do humanismo de esquerda, mas igualmente conseguir visualizar o que já está, como potência, acontecendo, cozinhando, como força revolucionária cujo aparecer não precisa ser um gigantesco fiat lux. Pensadoras como Veronica Gago, por exemplo, apresentam práticas que são dobradiças para outros mundos possíveis e que invertem a própria hierarquia de exemplos e de modelos analíticos. A “economia barroca” e a “pragmática vitalista” dos comércios populares, que a autora apresenta em contraponto à parceria Estado/mercado que valoriza apenas o comércio/emprego formal, ou seus projetos mastodônticos industriais, demonstra a fragilidade da oposição que as visões menos complexas do neoliberalismo têm sustentado. A potência decolonial no pensamento de Silvia Rivera Cusicanqui, o “fazer parentesco” de Donna Haraway, as formas de viver em um mundo danificado, de Anna Tsing, ou, ainda, o feminismo dos comuns, de Silvia Federici, abrem possibilidades que extrapolam o quadro falogocêntrico da política ocidental e de suas instituições centrais: o Estado e o Mercado.
O habitante desse mundo aterrado é um óbvio adversário do singularitano aceleracionista e compartilha com o comunista a sede pelo comum ou simplesmente o desprezo pela avareza da propriedade privada. No entanto, enquanto o comunista olha para as estrelas do universo desencantado em seus sonhos prometeicos, o terrano desliza no chão da Terra e a reabita com todos os monstros, fantasmas, bruxas, animais, plantas e seres do espaço cosmopolítico que haviam sido expostos ou descartados pelo imaginário moderno enquanto “natureza” ou “superstição”. O comunista sonha com o aprofundamento do projeto moderno e da emancipação humana; o anarcoindigenista, com a descolonização e a abertura de futuros orgânicos afroindígenas. A partir disso, a própria ideia de “escassez” torna-se contraintuitiva. Embora o aterrado queira uma contração material do universo econômico da produção de mercadorias (a abundância capitalista), ele intensifica o mundo abrindo-lhe novas perspectivas que operam como outras modalidades de experiências intensivas.
Que alianças e desdobramentos são possíveis entre essas quatro forças? Os dois aceleracionismos podem aliar-se para destruir o exterminismo? É um cenário viável. Ambos compartilham o universalismo e a utopia tecnológica, a elegia dos valores do Ocidente e o humanismo prometeico. Temos aqui a civilização escandalizada com o retorno da barbárie, travando combate pela ascendência da razão, da ciência e do progresso em detrimento de imaginários nostálgicos, tribais e fanatizados.
Por outro lado, é também possível imaginar que o aceleracionismo capitalista junte-se ao exterminismo e ambos transformem-se no domínio tirânico ampliado das elites econômicas sobre a maioria com as estruturas de controle e vigilância que a tecnologia oferece, mais ou menos como num “novo feudalismo” ou numa “nova era das trevas” em que as plataformas aglutinam uma sociedade de controle baseada no supremacismo eugênico. Em vez de manter o verniz politicamente correto, as plataformas simplesmente assumiriam seu papel concentrador e tornariam a eugenia social explícita, protegendo as elites super-humanas dos riscos ecológicos e sociais que emergem em um mundo sob o choque do Antropoceno.
Ou ainda: podem comunismo e indigenismo trabalhar juntos a partir do eixo que os liga – a defesa do comum – e da herança da esquerda política (defesa da igualdade ou libertação das opressões)? Há alguma maneira de confrontar o poder das elites que permita a essas duas perspectivas antagônicas no eixo da aceleração e da estratégia se encontrarem? A aliança mais óbvia não é tão simples quanto parece, uma vez que distinções antropológicas e políticas acabam ampliando o fosso entre perspectivas. No entanto, mediadores tentam produzir diálogos e pontes entre os universos diferentes, buscando construir alianças a partir da heterogeneidade e tomando a libertação como eixo comum.
A quarta hipótese seria uma aliança entre o otimismo geek do aceleracionismo com o anarcoindigenismo. Seria possível uma convergência liberal-verde – reunindo o marketing horizontalista com as práticas do bem viver – capaz de formar algo que não o mero greenwashing típico dos capitalistas? Juntar a iniciativa hipster dos empreendedores criativos com a luta urbana por qualidade de vida?
O último cenário seria a aliança comunista-fascista, que a história já viu acontecer, ao menos em fogo brando. Seria uma forma de manter a política nos extremos antípodas, ignorando linhas diagonais que escapem da polaridade em 180 graus que mantêm? Estes são desdobramentos de um século cujo porvir se mantém indefinido e, como tudo que está em jogo, perigoso. Bem ou mal, o renascimento dessas polarizações é sinal de que, após uma longa hibernação de meio século, vivemos o retorno da política.
Moysés Pinto Neto
Cientista Jurídico, mestre em Ciências Criminais e doutor em Filosofia pela PUCRS. É professor da Universidade Luterana do Brasil e editor do canal Transe.
Francisco Papas Fritas
Artista visual multidisciplinar e ativista chileno. Participou de exposições na China, Costa Rica e Itália.
Como citar
NETO, Moysés Pinto. O retorno da política. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 14, p. 63-73, jul. 2020.