ÓDIO
COMUM
Texto de Luís Antônio Alves Meira
Nas profundezas da internet, vínculos identitários e um sentido de pertencimento emergem entre grupos que, orquestrados por algoritmos e alimentados pelo ódio, acreditam escapar ao sistema e às convenções.
Na manhã do dia 13 de março de 2019, dois jovens de 17 e 25 anos entraram encapuzados na Escola Estadual Raul Brasil, em Suzano (SP) e mataram sete pessoas – cinco alunos e duas funcionárias do colégio. Em seguida, um dos assassinos atirou no comparsa e, então, suicidou-se. Pouco antes do massacre, a dupla havia matado o proprietário de uma locadora de carros da região, que era tio de um deles. Um total de oito vítimas.
O que chama atenção para o episódio é a natureza da motivação dos crimes e sua execução. Pode-se dizer, a partir de postagens – supostamente publicadas pelos próprios autores no fórum anônimo de extrema-direita Dogolachan –, que os crimes de Suzano foram premeditados e com alvos comuns a outros casos de mass shootings (tiroteios em massa) em escolas norte americanas: colegas de classe. Há sempre muito o que se refletir no que se refere às condições que levam jovens a abrir fogo contra colegas, quase sempre também abrindo mão do resto de suas vidas.
Tanto no caso ocorrido em Suzano como em outros ocorridos nos EUA, os atentados foram previamente anunciados e enunciados por seus protagonistas como um símbolo de “retribuição”, uma espécie de resposta a algum mal-estar que motiva os episódios de violência. Foi o caso de Elliot Rodger, de 22 anos, protagonista do massacre de Isla Vista, em Santa Barbara, na Califórnia (EUA), em 2014. Um dia antes de cometer o atentado que mataria seis pessoas e tirar sua própria vida, Rodger publicou um vídeo no Youtube intitulado “Elliot Rodger’s Retribution” onde manifesta em tom de desabafo:
“Oi, Elliot Rodger aqui. Bem, este é o meu último vídeo. Tudo convergiu para isto. Amanhã será o dia da retribuição, o dia da minha vingança contra a humanidade, contra todos vocês. Pelos últimos oito anos da minha vida, desde a puberdade, eu fui obrigado a suportar uma existência de solidão, rejeição e desejos não realizados, tudo porque as garotas nunca se sentiram atraídas por mim. As garotas deram sua afeição e sexo para outros homens, nunca para mim. Eu tenho 22 anos e ainda sou virgem, nunca sequer beijei uma garota. E na faculdade, dois anos e meio, mais que isso na verdade, eu ainda sou virgem. Isto tem sido bem tortuoso. A faculdade é o período em que todo mundo vivencia coisas como sexo e diversão e prazer. Todos estes anos eu tive que apodrecer na solidão, e isso não é justo.”
Elliot Rodger, então, se dirigiu à sororidade mais famosa do campus de sua universidade com o objetivo de vitimar, especificamente, mulheres. Ao não conseguir entrar, atirou nas pessoas que passavam pela rua. Não se pode afirmar com certeza a motivação do atentado de Suzano, uma vez que não há um manifesto tão esclarecedor quanto o de Elliot Rodger, mas os dois atentados, bem como o de Realengo em 2011 – quando Wellington Menezes de Oliveira, de 23 anos, invadiu a escola Tasso da Silveira, no Rio de Janeiro, armado com dois revólveres e matou doze alunos, com idade entre 13 e 15 anos – formam um padrão no mínimo curioso quanto aos alvos da violência: alunos da escola ou da faculdade, colegas de classe dos autores dos crimes. No microcosmo da escola/faculdade, representantes do “coletivo”, um Outro a bloquear um gozo que não veio.
No caso do atentado de Realengo, em que o atirador não estudava na escola, os alunos, que não eram seus colegas, assumem também um papel simbólico – e portanto semelhante ao dos outros casos aqui citados – de colegas de classe, de personagens marcados por uma relação de antagonismo onde se esperaria uma relação de convivência. Outro ponto de relação do atentado de Isla Vista com o de Realengo é o fato de que, das 12 vítimas de Wellington Menezes, 10 eram meninas.
Em comum com os casos de violência aqui citados, bem como o do atentado de Christchurch, em 2018, na Nova Zelândia – onde 51 muçulmanos foram mortos por um supremacista branco –, está o fato de que a violência em questão não encontra um fim em si mesma. A violência gerada não acaba com o ato de sua efetivação, tampouco é cometida com este objetivo. Este tipo de crime tem função simbólica para aqueles que partilham dos mesmos discursos que motivam seus sujeitos à prática da violência e para os alvos do ódio em questão: muçulmanos, no caso do ataque de Christchurch; colegas de escola ou faculdade, no caso dos outros ataques que citei e, especificamente, mulheres, no caso dos atentados de Isla Vista e de Realengo.
Tais episódios compartilham ainda da elaboração de algum manifesto do pensamento que os motivou, frequentemente criando – como no caso de Suzano – a expectativa da violência ao sugerir que um atentado nos moldes de Columbine (ocorrido em 1999) ou de Isla Vista (2014) esteja na iminência de acontecer. Segundo reportagem do portal de notícias R7, os jovens recorreram ao fórum anônimo de extrema-direita Dogolachan, para pedir dicas sobre como executar o atentado. No dia 7 de março, um dos atiradores teria publicado uma mensagem de agradecimento ao administrador do fórum, conhecido como DPR. “Muito obrigado pelos conselhos e orientações, DPR. Esperamos do fundo dos nossos corações não cometer esse ato em vão”.
Tratava-se de uma violência cometida para ser vista e com um objetivo ou ideal de sucesso específico, posto que haveria a possibilidade de ser cometida “em vão”. Este é um ato nebuloso de propagação do medo conhecido como “terrorismo estocástico”, termo que, na definição de Jonathon Keats, designa “atos de violência praticados por extremistas aleatórios engatilhados pela demagogia política”. Na definição da antropóloga Debora Diniz, o terrorismo estocástico é como jogar dados: “Os resultados possíveis são conhecidos, porém não previsíveis a cada lance. No terrorismo, são as ameaças difusas, a insistência da perseguição sem rosto ou biografia”. Ou seja, trata-se de um terrorismo decentralizado, onde os atos de violência emergem através dos discursos, do incentivo indireto, não de ordens diretas, e que podem vir de qualquer lugar.
O perigo da efetivação do terrorismo estocástico é que ele depende apenas do agenciamento entre um discurso e o sujeito: os algoritmos de recomendação de conteúdo que norteiam hoje a internet fazem prontamente esse agenciamento. O termo “red pill”, como veremos adiante, tem funcionado como metáfora que amarra alguns desses discursos a sujeitos com ressentimentos comuns, especialmente no que se refere às conquistas feministas.
Podemos pensar episódios de terrorismo estocástico como os de Suzano, Isla Vista ou Christchurch como a última instância da manifestação do discurso de ódio veiculado pelos pares dos autores dos crimes. Não se tem informação a respeito dos sites que Wellington Menezes frequentava e, portanto, não se pode dizer que se trata de terrorismo estocástico. No entanto, as características de suas ações são comparáveis a de outros casos de violência movidos por motivações similares: ressentimento.
Estes frequentemente buscam passar a mensagem de que o grupo ao qual os sujeitos pertencem encontram-se de alguma forma vitimados pelo grupo a quem se direciona sua violência. No caso do atirador de Christchurch, na Nova Zelândia, um manifesto de 87 páginas foi publicado no fórum 8chan contendo enunciações de ódio direcionadas a imigrantes e muçulmanos. O argumento era que estes seriam uma ameaça à raça ariana e à “cultura ocidental”.
Um grupo frequentemente ligado a episódios de terrorismo estocástico a partir de tais espaços de enunciação de hate speech, ou discursos de ódio, é o dos “incels”, contração de “involuntary celibate” (celibatário involuntário). Podemos classificar Elliot Rodger e Wellington Menezes como pertencentes ao grupo. Os incels se identificam e se unem em torno do ressentimento gerado pelo celibato e suas implicações. Não se pode afirmar que o atentado de Christchurch foi motivado por mal-estares provenientes do celibato, mas é possível afirmar que se trata de crime de racismo e xenofobia, mal-estares partilhados por grupos de extrema-direita com os quais os incels partilham discurso. Entendendo que o sentimento de vitimização dos incels diante das conquistas igualitárias do feminismo se compara ao ressentimento de grupos dominantes que se veem obrigados a dividir cidadania com grupos étnicos minoritários, podemos associar ambos os grupos à retórica de filiação da Alt-Right estadunidense.
O filósofo estadunidense Jason Stanley, em seu livro Como Funciona o Fascismo: A Política do ‘Nós’ e ‘Eles’, de 2018, escreve que esse sentimento de ameaça pode ser – e é – manobrado politicamente por movimentos de direita. Essa dialética, aliás, está longe de ser exclusiva da nova extrema-direita dos Estados Unidos; é, antes, uma característica ampla da psicologia de grupo. A exploração do sofrimento de vitimização de grupos dominantes frente à perspectiva de ter que dividir cidadania com grupos minoritários é um elemento universal da política fascista internacional contemporânea.
A Alt-Right encontra na metáfora da “red pill” um agenciador comum para seus discursos. A red pill, ou pílula vermelha, é uma expressão utilizada para significar a efetiva inclusão de um sujeito em uma série de discursos que entendem que os homens estão sendo vítimas das conquistas de políticas progressistas. Como mostra Angela Nagle em seu livro Kill All Normies, de 2017, o subforum “The Red Pill”, no Reddit, tem sido central para o surgimento e o desenvolvimento de uma comunidade antifeminista online. O termo descreveria uma espécie de “despertar da prisão mental do liberalismo [que é como o léxico estadunidense se refere às políticas progressistas] dentro da realidade crua da misandria societal”. O núcleo duro da Alt-right usa o termo para descrever seu equivalente do “despertar” racial do movimento pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos.
É importante frisar aqui a multiplicidade de significados associados ao termo ao longo dos anos. A metáfora da red pill vem do clássico filme Matrix (1999), dirigido pelas irmãs Wachowski. Em uma cena ao fim do primeiro ato, o protagonista Neo é confrontado com a escolha entre tomar uma pílula azul, que o manteria num estado de fantasia, de ilusão, proporcionado pela simulação da Matrix; ou tomar uma pílula vermelha, que o faria “despertar” do simulacro de realidade em que vive e enxergar a “verdade inconveniente”. É possível, assim, encontrar referências ao ato de “tomar a pílula vermelha” fora contexto do “despertar das prisões mentais do progressismo”. No entanto, a popularização recente do uso está diretamente associada à retórica dos incels e da Alt-right. A red pill, nesses grupos, carrega menos um sentido de ódio do que de transgressão.
Em um ensaio de 1999, o filósofo Slavoj Zizek descreve a Matrix do filme como a materialização do “grande Outro”, a ordem simbólica virtual que estrutura a realidade onde vivemos. No mesmo ensaio ele compara o filme a um teste de Rorschach, colocando-o como um teste de reconhecimento universal onde o expectador faz associações a depender da realidade em que se insere. A “prisão mental” pintada pelo filme pode se referir, de acordo com cada tipo de expectador, ao domínio ideológico da indústria cultural (para os estudiosos da escola de Frankfurt); à reificação ou coisificação das relações sociais e culturais (para os marxistas); à “opressão progressista” (para os homens que sentem atingidos pelas conquistas do feminismo). E assim por diante. Tomar a pílula vermelha significa, então, transgredir os limites da ordem simbólica vigente, materializando um significante de transgressão – significante este que estará necessariamente em contraposição a algum Outro.
Foi no 4chan que os discursos dos incels e da Alt-Right cresceram independentemente e se uniram. Muito da cultura de internet, dos memes, dos remixes e reapropriações culturais presentes nos mais diversos aplicativos de redes sociais – e até em campanhas políticas – é herança da dinâmica comunicacional do modelo de fórum dos chans, cujo exemplo mais conhecido é o 4chan. A cultura dos chans inclui muito da cultura dos incels, da red pill e da Alt-Right, mas não exclusivamente. Entender a retórica da Alt-Right e dos incels pressupõe, necessariamente, entender a retórica e a ética dos chans.
Um chan se caracteriza por uma lógica específica de interação entre seus participantes: a dos imageboards. Os usuários precisam postar uma imagem para a criação de cada thread (fio) de discussão, sem necessidade de registro prévio. A identidade dos usuários é preservada, sendo o criador da postagem exibido como “anonymous”. Um quadro (board) com conteúdo focado em política, dentro de um imageboard de posicionamento político abertamente de direita, por exemplo, terá uma moderação que controlará apenas postagens discrepantes com relação ao tema proposto, ou mesmo com relação aos discursos aceitos pelo fórum. O conteúdo de um fórum segue, portanto, o regime de verdade que ali se dispõe.
Tendo sido criado em outubro de 2003, o 4chan contava em 2011 com 750 milhões de visitas mensais. O fórum foi altamente influente na cultura de internet, entre o público mais jovem, por seus memes, piadas e pegadinhas (pranks) organizadas online e realizadas no mundo real. O 4chan foi um marco para a ética das culturas na internet por estabelecer o que a pesquisadora Angela Nagle chama de “política online da transgressão”.
Este novo potencial de articulação online, somado à segurança do anonimato e à inovação do formato, despertou nos usuários os interesses e potências mais diversos. Sendo todo o sistema social novo e, portanto, sem precedentes na história da comunicação, todo comportamento previamente estabelecido fora da internet e tido como “normal” carrega o potencial de se apresentar como gatilho daquilo que Luhmann chamou de “irritação sistêmica”. Ou seja, a cultura dos chans se caracteriza fundamentalmente como uma cultura de transgressão do que está “lá fora”, do offline, dos “normies”.
A dialética dos chans com o mundo externo é intermediada pela noção de red pill de forma a posicionar o superego do grande Outro – as regras do coletivo, de fora da internet – como o grande contraponto a um ambiente de fantasia pura. A pílula vermelha é apenas a porta de entrada epistemológica para um espaço de gozo irrefreável, a alegoria pela qual o sujeito ressentido busca se integrar a um discurso transgressor. Mas, afinal, o que está sendo transgredido?
Uma das características definidoras da cultura dos chans, segundo o escritor estadunidense David Auerbach, é o assédio constante de novos usuários pouco familiares com a internet e suas dinâmicas (os noobs). Através de jargões específicos, convenções complexas e um conhecimento técnico elitizado, os usuários policiam suas comunidades e os limites da subcultura de forma a resguardá-las da massificação. É crucial para a cultura dos chans que seu ambiente seja pouco convidativo para evitar a massificação e, consequentemente, a perda da condição de diferença do ambiente offline.
O 4chan, como espaço de discussão volátil e desregrada, tornou-se um território fértil para os mais diversos tipos de subjetividades e culturas, baseando-se na ideia de que o anonimato está relacionado à luta pela liberdade de expressão. A cultura dos chans se apresenta então através da simbologia libertária dos primeiros momentos da internet. Essa cultura libertária, amplificada pelo 4chan, inaugurou uma cultura online do “for the lulz” (pela zueira) responsável por momentos marcantes da internet nos anos 2000. Estes vão desde eventuais episódios de altruísmo e propagação de piadas nerds à disseminação de “revenge porn” (“pornografia de vingança”) – fotos partilhadas pelos usuários de suas ex parceiras, sem seu consentimento –, material autodepreciativo, racista, misógino, imagens de gore (mutilação), pensamentos incestuosos e outros tipos de comportamentos tidos como transgressores e “edgy” (que extrapolam os limites da convenção) entre seus usuários.
A transgressão emerge uma vez que o que se diz e faz no fórum não permeia os discursos e costumes aceitos em ambiente offline, alheios ao regime de verdade de pura potência nos quais o 4chan se insere. Nos chans, nada dura ou é feito para durar, e seu conteúdo se apoia na apropriação irrefreável da cultura. É destes princípios que surge o potencial memético dos chans, que faz referência à ideia de “meme”, de Richard Dawkins, uma entidade culturalmente transmissível, análoga à transmissão genética.
Imagine o 4chan como um fluxo em movimento de crianças com seus barquinhos feitos com jornais (representando os fios de discussões que são abertos neste modelo de fórum). Se um barquinho é mais interessante ele é mantido no fluxo, enquanto os demais são levados pela correnteza. Tornou-se tradicional para a cultura de internet que algum meme ou tendência que chegue ao mainstream tenha tido sua origem no fórum. O especialista em redes Cole Stryker descreve o 4chan como um “lugar seminal, imprevisível, onde pessoas têm completa liberdade para experimentar; para tentar novas ideias, identidades alternativas. O 4chan permite aos seus usuários dizer e fazer quase qualquer coisa que sejam capazes de pensar sem medo da vergonha ou retaliação”.
Espera-se então que, num fórum específico pré-concebido para a enunciação da violência, aquele que mais se manifesta sobre ela, que mais se mostra imerso no discurso de ódio, terá maior capital social que os demais usuários. Outros fóruns, direcionados aos mais diversos temas, terão seus próprios indicadores de imersão em seus discursos. É importante lembrar que não seria a violência em si a definir o grau de pertencimento de um usuário a determinada cultura na lógica dos chans, mas seu grau de imersão e participação em determinado discurso, dentro de determinado regime de verdade.
Desde 2016, com a eleição de Donald Trump e a escalada nos episódios de violência orquestrados por seus apoiadores declarados nas redes sociais e por novos braços do populismo, o antigo otimismo dos primeiros momentos da internet tornou-se menos viável. A partir da percepção de que as tecnologias amplificam discursos de ódio, que geram consequências no mundo offline, a ainda recente entrada no século XXI, nos termos da antropóloga Lilia Schwarcz, seria marcada pela superação das retóricas emancipatórias da tecnologia. Acreditamos desde os primórdios do liberalismo e da modernidade, e mais ainda com o avanço do neoliberalismo dos anos 1980, que toda tecnologia nos traria emancipação. No entanto, o que se percebe é que o efeito das tecnologias potencializou também a violência, a retaliação e o negacionismo.
Não é, porém, nos chans que os usuários são apresentados ao conteúdo segregacionista: os ambientes anônimos são o último estágio da radicalização. O Youtube, especialmente, tem tido grande responsabilidade em apresentar para adolescentes e indivíduos alheios canais dedicados à propagação de ódio direcionado a personalidades de esquerda e teorias da conspiração. Na medida em que diversos canais dedicados a teorias da conspiração e a discursos de ódio começam a citar uns aos outros, o Youtube entende que seus vídeos são relacionados. Cria-se assim, para quem recebe o conteúdo, a impressão de universalidade, ou de que “tudo se conecta”.
No caso dos algoritmos de recomendação do Youtube, Facebook e Reddit, parece não ser um problema para suas políticas internas que conteúdos carregados de discurso de ódio sejam recomendados a seus usuários se isto os fizer passar mais tempo nas plataformas e, consequentemente, gerar mais dados e receita publicitária para as empresas. Os documentos internos do Facebook vazados por Frances Haugen e seu depoimento no Congresso americano em 5 de outubro de 2021 expuseram ao mundo o fato de que a companhia sabe dos riscos e malefícios dos seus serviços. Não apenas isso, suas ferramentas são conscientemente projetadas para incentivar a discórdia, criar dependência e aumentar o consumo entre os usuários, enquanto pouco fazem para impedir a atuação do crime organizado na plataforma.
Os gestores do Facebook sabem também que o conteúdo oferecido leva uma parcela de 13% dos adolescentes estadunidenses a pensamentos suicidas e anoréxicos. Há um “ponto cego” estratégico para o crescimento da empresa, um ponto de inação que permite que o interesse público seja desconsiderado em favor dos interesses corporativos. O Facebook não está sozinho nesta conta. Entende-se que é a partir desse “ponto cego” que a política fascista se apropria da lógica da chamada “economia da atenção” e do “extrativismo de dados”. E é nos chans e em espaços anônimos que o agenciamento do discurso da Alt-Right atinge sua última instância.
A partir da análise dos metadados (dados sobre os dados), das interações entre usuários com perfis similares, o Youtube passa a recomendar conteúdo conspiratório. O indivíduo não precisa necessariamente pesquisar conteúdos focados na propagação de ódio; basta que um público com perfil parecido, em condições comparáveis, consuma esse tipo conteúdo para que ele seja recomendado. “Usuários com gostos similares também assistem…”. Logo, um adolescente interessado em videogames cujos gostos se relacionem de alguma forma com um grupo específico pode acabar recebendo a recomendação de um vídeo em que um youtuber oferece a “pílula vermelha”, alertando para que os homens “abram os olhos” para a “agenda secreta do feminismo para acabar com os machos” – ou coisa que o valha. O sujeito radicalizado é produto da atuação consciente das empresas de tecnologia, e passa então a buscar espaços anônimos.
Os algoritmos de recomendação se retroalimentam, extraindo dados sobre o tipo de conteúdo que faz com que um usuário passe mais tempo produzindo dados e metadados, de forma que cada vez mais conteúdo será criado para manter esse usuário online, e cada mais dados serão extraídos, e assim por diante. O discurso e o entendimento do usuário passa assim a limitar-se ao que está sendo consumido. São as famosas “câmaras de eco”. A distração da economia da atenção faz com que o usuário persiga aquilo que o distraiu em primeiro lugar: a repetição do input que ofereceu à máquina como algo que chama sua atenção.
Quando um jovem com problemas de socialização busca na internet por dicas de relacionamento ou consome conteúdo relacionado, ele será classificado pelos algoritmos de recomendação como público potencial para o conteúdo consumido pelos incels e pela Alt-Right. Evidentemente, pouco importa para o algoritmo se o conteúdo recomendado contém ou não discurso de ódio: a ideia é manter o ritmo de consumo de conteúdo e gerar dados. O indivíduo gera dados à medida em que faz uso dos aplicativos e sites e alimenta o algoritmo de recomendação com inputs binários: gosto, não gosto. É a partir desta binarização dos discursos que o Outro, aquilo que não se encaixa no “eu gosto”, é apagado.
Esta seria a condição base para o impasse na “administração das descontinuidades”, ou seja, das diferenças entre representações de mundo. Trata-se de uma das consequências daquilo que o pesquisador Evgeny Morozov denomina “positivismo do consenso algorítmico”, ou seja, dos consensos artificialmente forjados pelos sistemas de comunicação por meio da exclusão da negatividade – aquilo que não convém mostrar ao usuário. É a partir dessa produção de “vontades de verdade” mediada pela tecnologia que a pós-verdade se apresenta como mediadora comum de subjetividades que permitam a fantasia da exclusão do Outro.
Na “pós-verdade”, rumores, boatos, fofocas e mentiras são compartilhadas com mais velocidade em um cenário formado por redes cujos sujeitos confiam mais uns nos outros do que que em qualquer grupo ou instituição tradicionalmente estabelecidos. No atual paradigma da comunicação digital, a premissa da “pós-verdade” se apoia numa lógica publicitária que amarra as dinâmicas da comunicação digital dentro do capitalismo de dados. Nesse universo, os algoritmos de recomendação carregam consigo o potencial de “remodelar antigos vieses culturais, raciais e étnicos como verdades objetivas e empíricas”, nas palavras de Morozov. A red pill amarra e agencia este potencial em uma metáfora sólida. A última instância desse fenômeno são episódios como os de Isla Vista, Realengo, Christchurch e Suzano.
Luís Antônio Alves Meira
Artista visual e pesquisador solarpunk. Graduado em Publicidade e Propaganda pela Universidade Católica de Pernambuco e mestre em Linguagens, Mídia e Arte pela PUC Campinas, com o trabalho Infiltrado no Chan: Economia e Linguagem do ódio.
Como citar
MEIRA, Luís Antônio Alves Meira. Ódio comum. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 15 [conteúdo exclusivo online], dezembro. 2021.
Este número da revista teve como editores Felipe Carnevalli, Fernanda Regaldo, Paula Lobato, Renata Marquez e Wellington Cançado.