OLHAR
MATEIRO
Texto de Daniel Cangussu
Selva-Mata, pinturas de Fábio Baroli
Um olhar mateiro é capaz de apreender os processos de criação e permanência de quebradas e varadouros ancestrais. O crescimento e as cicatrizes das árvores revelam caminhos pelas florestas e testemunham a mobilidade territorial e a itinerância dos povos indígenas pela floresta.
Desde a década de 1990, uma série de pesquisas de distintas áreas tem dedicado sua atenção à ecologia histórica, um campo da ciência que busca compreender as interações entre pessoas e o ambiente ao longo do tempo. Essas pesquisas deram origem a conceitos como “florestas antropogênicas”, “matas domesticadas” e “nichos culturais”, expressões que colocam em destaque a concentração de uma ou mais espécies vegetais de uso direto dos povos nativos em determinadas regiões da floresta, ou mesmo a alteração na estrutura da flora de um bioma como um todo, sendo essas feições resultado da interação entre os seres humanos e o ambiente. Esse é o caso da própria Floresta Amazônica, que não é virgem como se pensava até há pouco tempo.
A existência dos extensos castanhais desse bioma, por exemplo, não depende ou se explica unicamente a partir de sua interação com as populações de cotias, cotiaras, quatipurus, pacas, ratos-coró e macacos-pregos. Esses bichos possuem as ferramentas e a inteligência necessárias para abrir os ouriços e liberar suas castanhas no ambiente. Mas os castanhais estão ali, sobretudo, pela ação diligente dos povos indígenas, que selecionaram e disseminaram essa espécie por seus territórios, cultivando árvores, literalmente. Esse é também o caso das florestas de araucária do Sul do país, das matas de jerivá da Mata Atlântica, das matas de umbu das beiras dos rios da Mata Seca e Caatinga, dos pequizais do Cerrado, assim como dos açaizais e patauazais também da Amazônia; enfim, matas que até recentemente eram associadas exclusivamente a causas naturais, resultado da ecologia característica dessas espécies.
A diversidade e a extensão desse manejo ancestral estão expressas nos nomes de importantes cidades do Brasil. Cacoal, por exemplo, é uma mata com grande concentração de cacau. Do mesmo modo que Bacabal é uma mata de bacabas e Castanhal é uma mata de castanheiras. Obedecendo à mesma lógica toponímica, são também homenagens às florestas antropogênicas Urucuzal, Flechal, Buritizal, Butiazal, entre outras tantas cidades, povoados e colocações do país.
Essas, no entanto, não são as únicas evidências da metamorfose experimentada pelas matas a partir do convívio milenar com os povos nativos e com os responsáveis pela conversão de matas virgens, prístinas, em “florestas indígenas”. É isso o que estudos recentes, oriundos de áreas como a botânica, a ecologia, a arqueologia e a etnologia têm revelado. Esse novo olhar mira as cicatrizes, e outras marcas menos evidentes, transcritas e perpetuadas pela ação humana nos corpos das árvores. A perspectiva mateira dos habitantes da floresta se constitui assim em uma poderosa ferramenta para reconhecer a tradicionalidade do uso dos territórios indígenas do passado e do presente. Esse olhar treinado tem sido fundamental para reconhecer, a modo de exemplo, os territórios dos grupos indígenas isolados que vivem na Amazônia, assistidos por arcabouço legal específico, bem como as metodologias de proteção e de monitoramento ambiental exclusivas para este contexto.
A Amazônia é o lar de diversos grupos indígenas atualmente em isolamento, que interromperam relações intermitentes ou contínuas com os não indígenas, ou mesmo com outros povos indígenas com quem compartilham um mesmo contexto histórico e social. De acordo com dados da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI), há cerca de 120 registros que indicam a presença de povos indígenas isolados na Amazônia brasileira, dos quais 28 estão confirmados. Há quase 200 registros da existência desses povos em toda a América do Sul, a grande maioria concentrada nos territórios amazônicos do Brasil, da Bolívia, da Colômbia, do Equador, do Peru, da Venezuela e na região do Chaco paraguaio, embora muitos destes países não possuam uma política indigenista específica voltada à proteção dos territórios desses povos ou mesmo os reconheça oficialmente.
Existe grande diversidade sociocultural entre os povos indígenas isolados, inclusive alguns deles estão formados por grupos relativamente populosos. Esse é o caso dos habitantes da Terra Indígena (TI) Massaco, no estado de Rondônia, e dos Mashco Piro, da fronteira Brasil/Peru, que chegam a reunir mais de 300 pessoas em alguns dos seus acampamentos. Entre os grupos mais populosos, citamos também os Hi-Merimã, do sul do Amazonas; os grupos Korubo, do Vale do Javari (extremo oeste do Amazonas); os Wyrapara’ekwara, da TI Uru Eu Wau Wau, e os Moxihatëtëma, do estado de Roraima. Já outros povos isolados são compostos por grupos pequenos, vivendo de maneira dispersa e em regiões de grande pressão territorial, como os Tupi Kagwahiva, dos estados do Amazonas, de Rondônia e do Mato Grosso, e os grupos Awá-Guajá e Avá-Canoeiro, habitantes dos fragmentos de florestas dos estados do Maranhão, de Goiás e do Tocantins, na Ilha do Bananal, no extremo leste da Amazônia.
A partir de 1987, o Brasil adotou oficialmente o “não contato” como princípio norteador de sua política voltada aos povos indígenas em isolamento. Naquele ano, foi realizado em Brasília o Primeiro Encontro de Sertanistas, que resultou na elaboração de um relatório no qual reafirmou-se a necessidade de o Estado proteger os grupos isolados, sem contactá-los contra sua vontade. Posteriormente, a presidência da FUNAI publicou portarias mediante as quais foi instituído e regulamentado o Sistema de Proteção aos Índios Isolados, que envolve a criação de unidades administrativas e operacionais para executar a política estatal para sua proteção.
Inicialmente, as expedições de pacificação que objetivavam o contato com os povos isolados aconteciam de modo extremamente invasivo. Essas atividades eram caracterizadas por implicar grande risco aos povos nativos, assim como aos sertanistas, que se confrontavam com grande frequência pelas matas. Não foram poucos os sertanistas que foram flechados ou surpreendidos pelas bordunas. Por outro lado, há também inúmeros registros de indígenas alvejados e mortos por sertanistas que não viram outro meio para salvar as próprias vidas em meio a contatos precipitados e encontros indesejados. Em vários casos, o contato via expedições chegou a ser um dos principais vetores de doenças como sarampo, varíola e gripe, responsáveis por dizimar comunidades indígenas inteiras.
Em resposta a esse cenário, foram desenvolvidas novas metodologias investigativas que consideraram e se orientaram pelo direito político ao isolamento e, consequentemente, à decisão de não contato desses grupos indígenas. Um novo desafio surgiu. Como localizar, monitorar, demarcar e proteger os territórios desses povos sem que se fizesse necessário estabelecer relações diretas entre os servidores do Estado e os indígenas isolados? Isto forçou os responsáveis por criarem a política indigenista a pensar métodos investigativos a partir de um novo olhar para as florestas e seus vestígios antrópicos, já que, a partir da efetivação desse novo método de proteção, nelas estariam as únicas evidências da existência desses povos indígenas que poderiam ser acessadas pelos mateiros em campo.
Os vestígios, via de regra, derivam do manejo e do uso das espécies vegetais e podem expressar-se nos troncos das árvores, na ocorrência e concentração de plantas no interior da floresta, nas evidências de acampamentos temporários ou, ainda, em artefatos encontrados fortuitamente nos caminhos. Os conhecimentos nativos, frutos da experiência do convívio com as matas e seus povos, permeiam e fundamentam os princípios dessa metodologia, posto que trazem a ciência dos mateiros e dos indígenas, guias imprescindíveis das expedições, e parte das equipes de campo das instituições indigenistas.
Alguns dos vestígios monitorados durante as expedições trazem consigo o potencial de revelar todo o território de uso direto de um determinado povo indígena, assim como de conduzir a outros elementos relacionados à sua existência. Esse é o caso das “quebradas” e “varadouros” – os caminhos indígenas no interior da floresta –, evidências mais contundentes da sociabilidade nas matas. Para poder reconhecer os caminhos é preciso ter um olhar treinado, de modo que se saiba para onde eles podem nos levar. Essa é uma premissa para os mateiros indigenistas. De fato, o sucesso das expedições de localização e de monitoramento dos territórios dos povos indígenas isolados está relacionado à habilidade das equipes de campo em reconhecer, rastrear, datar e seguir pelos caminhos da floresta. Varadouros muito antigos, por exemplo, revelam o histórico de uso e ocupação de uma determinada região. Por outro lado, caminhos muito jovens são uma alerta para que se recue a fim de não importunar aqueles que não desejam o contato.
Em 2013, durante uma expedição de monitoramento, percorri junto com outros indigenistas da FUNAI os varadouros dos Wyrapara’ekwara, povo indígena isolado habitante da TI Uru Eu Wau Wau. Um desses caminhos conectava a região da Serra do Opianes a um conjunto de barreiros a leste do território dos indígenas. Barreiros são regiões da floresta onde ocorre o afloramento de sais minerais no solo. São áreas de grande concentração de caça, já que alguns animais, como antas, queixadas e veados, dependem desses minerais para balancear sua dieta. A importância desses lugares de caça para os Wyrapara’ekwara se revelava, sobretudo, pela largura e extensão dos varadouros, que foram revertidos ao longo dos anos em verdadeiras estradas. Nesse contexto, não apenas varetas e ramos eram quebrados para a sua abertura. Os indígenas tinham o cuidado de derrubar arvoredos relativamente grossos por todo o aceiro do caminho, com a ajuda de ferramentas. As árvores presentes nas bordas do varadouro se desenvolviam inclinadas para o interior do caminho respondendo ao fenômeno do fototropismo, o crescimento das plantas orientado em direção ao estímulo luminoso, neste caso, devido ao grande tamanho da clareira aberta ao longo do varadouro.
Esse é um fato comum que pode ser observado nas árvores que margeiam estradas ou as que habitam as matas ciliares dos igarapés. Espécies pioneiras como marupás, toréns, embaúbas e lacres, que colonizam mais rapidamente as clareiras na mata, crescem ao longo de varadouros muito largos e, quando surgem alinhadas em meio à floresta, podem ser consideradas como bioindicadores de sua existência pretérita, quando já não são mais utilizados ou reavivados pelos seus donos. Cicatrizes são também comumente vistas nas árvores presentes nas bordas desses antigos varadouros. Sempre voltadas para o interior do caminho formado, resultado de tiradas de enviras, fibras vegetais da entrecasca de certas espécies, da extração de essências ou medicamentos, ou mesmo por conta de pequenos golpes nas árvores, ao que parece, sem qualquer motivo aparente, de modo despretensioso, por quem percorria esses caminhos.
Esse e outros processos relacionados à cicatrização e ao crescimento vegetativo das plantas se perpetua e denuncia a existência das antigas passagens humanas. Caminhos como esses dos Wyrapara’ekwara resistem à passagem do tempo, mesmo quando abandonados por seus criadores. E é essencialmente para isso que chamamos atenção aqui: como o olhar mateiro pode auxiliar na compreensão dos processos concernentes à criação e persistência desses varadouros ancestrais e revelar, a partir deles, territórios indígenas.
O processo investigativo de localização e/ou de monitoramento de povos indígenas isolados se inicia por meio de sobrevoos, ou pela análise de imagens de satélite e, mais recentemente, pelas imagens obtidas por drones. Ao examinar essas imagens aéreas, temos muitas vezes a falsa impressão de estarmos diante de florestas inabitadas e intocadas, sobretudo quando visualizamos os territórios de povos não agricultores, já que estes geralmente não realizam derrubadas extensas para colocar seus roçados e não constroem grandes casas coletivas facilmente detectáveis remotamente do interior das aeronaves. Apesar do acelerado processo de desmatamento que avança rapidamente sobre a Amazônia, ainda é possível sobrevoar por horas trechos de floresta sem qualquer alteração antrópica evidente. Temos a impressão de observar um manto verde quase homogêneo, como em trechos de florestas no interflúvio Juruá-Purus, no sul do Amazonas.
No entanto, é muito diferente a perspectiva de quem investiga essas matas sob a copa de suas árvores. Longe de ser um ambiente intocado, a floresta é o lar de diversas populações indígenas e não indígenas, humanas e não humanas. Esses territórios são entrecortados por inúmeras trilhas que conectam aldeias, acampamentos e os mais diversos ambientes de uso dos seus habitantes, tais como barreiros, igarapés, lagos, palhais (concentrações de palmeiras), áreas de caça e pesca. São ambientes caracterizados por uma densa malha de veredas e atalhos. Sua importância e seu uso por parte dos grupos indígenas conferem aos varadouros características próprias. Caminhos muito utilizados e mais batidos são geralmente mais largos e possuem o solo mais profundo e compactado.
Os habitantes das florestas costumam quebrar pequenos arbustos e galhos finos por onde passam, seja para desobstruir a passagem dos caminhos, marcar algum local pretendido ou sinalizar uma mudança de direção das trilhas. Essa é, inclusive, uma ação espontânea entre grupos de pessoas que se encontrem desprovidas de facas, terçados ou quaisquer outras ferramentas cortantes em um ambiente de mata fechada. No entanto, minha experiência em expedições de monitoramento de caminhos de grupos indígenas isolados na Amazônia aponta para o fato de que, mesmo quando munidos de terçados e facas, eles ainda assim realizam quebradas para marcar a sua passagem por um território, tamanho o significado desta comunicação através dos vestígios. Por conta disso, todos aqueles que integram expedições de localização ou de monitoramento no interior dos territórios de povos indígenas isolados são rigorosamente orientados sobre como manusear os terçados e garantir que estes permaneçam sempre devidamente amolados, a fim de padronizar o tipo de vestígio produzido pela equipe de expedição e não gerar dúvidas acerca da análise dos vestígios em campo. Caso algum membro da equipe opte por não manusear uma ferramenta cortante, precisa se comprometer a não quebrar arbustos utilizando as mãos durante todo o período da expedição. Essas recomendações são análogas a métodos da arqueologia que objetivam preservar ao máximo os sítios estudados. É fundamental garantir que a atuação descuidada de algum dos membros da equipe não prejudique a leitura correta dos vestígios, já que poderia causar dúvidas e confusões acerca da sua origem.
De fato, todos os seres da floresta possuem caminhos próprios e lhes imprimem características muito peculiares. O tatu, a paca, a anta, as formigas-cortadeiras, as queixadas e os caititus possuem caminhos bastante visíveis e que não se confundem com os vestígios humanos, uma vez que se encontram a uma altura incompatível com aqueles feitos por pessoas. As quebradas indígenas que marcam os varadouros são, em geral, sequenciais, ainda quando espaçadas, e são realizadas em arbustos e galhos pequenos, amiúde utilizando apenas a força de uma das mãos. As quebradas humanas possuem uma direção, mesmo que tortuosa. As quebradas dos animais, no entanto, podem ser feitas em diversos galhos próximos e com distintas espessuras e dimensões.
O local onde ocorre a quebra na planta é também um dado relevante, visto que permite estimar a altura de quem a produziu. Do mesmo modo, o ângulo da quebrada pode revelar a direção para onde seguia seu artífice: o ângulo em relação ao sentido do caminho não é de noventa graus, mas menor para o sentido que a pessoa seguia no ato da quebra, pois esta tanto desobstrui a passagem como também responde ao movimento do punho e a indicação do polegar durante o movimento das passadas. Mesmo em varadouros recentemente abertos e com quebradas bastante espaçadas, ou caminhos muito antigos, ainda é possível saber para onde seguia quem produziu os vestígios. Nesses contextos de busca e rastreamento, também é importante considerar a possibilidade de que os vestígios podem ser produzidos para confundir quem estiver no encalço.
Os famosos “caminhos das antas”, tapirapé, são muito batidos, e aqui e acolá também se avistam quebradas, algumas delas encontradas fora dos caminhos principais. Elas são produzidas, por vezes, em varas muito grossas, empurradas pelo peito do animal até se envergarem completamente e se lascarem em decorrência da pressão sofrida. Há ocasiões em que esses vestígios acontecem em altura semelhante às quebradas humanas, gerando dúvidas acerca de sua natureza. Se bem existe uma semelhança entre as quebradas antrópicas e aquelas produzidas por esses animais, é na finalidade das mesmas que está a principal diferença entre ambas, já que as antas agem dessa maneira para acessar os ramos verdes localizados nas pontas dos arbustos e se alimentarem deles.
A educação do olhar mateiro permite saber o que exatamente deve se observar ao longo do corpo dessas quebradas, e assim perceber as marcas dos dentes de anta nas pontas dos galhos, nas folhas parcialmente maceradas ou na completa ausência delas nas extremidades dos arbustos. Mesmo os olhos menos experientes, uma vez orientados, poderão reconhecer esses detalhes em meio à floresta.
Há outros aspectos ainda mais sutis na história dos caminhos das florestas e que se relacionam ao crescimento vegetativo e à capacidade de cicatrização próprios das plantas, e que se revelavam apenas aos olhos mateiros mais experimentados. À diferença dos animais, muitas plantas crescem por toda sua vida, e são alguns dos seus tecidos especializados os responsáveis por isso. Esse conjunto de células (tecidos vegetais) permanece jovem e retém a potencialidade da multiplicação celular mesmo em árvores adultas, tal como as células-tronco nos animais. São também responsáveis pelo aumento da espessura do corpo da planta e do seu prolongamento. A grande maioria das árvores cresce de modo permanente, o que explica a existência de gigantes nas florestas maduras mais protegidas.
Esses tecidos especiais também têm outras funções. No caso de um arbusto ser quebrado, eles atuarão para que o ferimento na planta seja cicatrizado, a fim de proteger a espécie de ataques de fungos e assegurar que o arbusto retome o seu crescimento. Contudo, a cicatrização das plantas não é perfeita. E são exatamente essas imperfeições, conservadas ao longo dos anos de vida das plantas, um dos principais objetos de apreciação dos mateiros para reconhecer os varadouros.
Nesse contexto, o xilema, um dos tecidos vasculares das plantas, possui papel central no processo de perpetuação de cicatrizes da floresta. Ele é o principal tecido de sustentação, condução de água e demais produtos inorgânicos no interior das plantas. As células do xilema, quando maduras, são inertes. Por meio de um tipo específico de morte celular programada, essas células se fundem umas às outras durante o processo de crescimento das plantas, formando os dutos condutores internos que, devido à sua capilaridade, permitem que a água proveniente das raízes alcance as folhas.
As estruturas do xilema estão mortas, enrijecidas por celulose e lignina, o que confere dureza e resistência aos troncos das árvores. Acontece que esse sofisticado sistema de formação do xilema impede que ele se regenere por si próprio. Quando sofrem danos em suas estruturas, os tecidos vegetais especializados se regeneram, novas camadas de xilema são produzidas e direcionadas para a parte interna da planta. Nesse processo, essas camadas vão aos poucos recobrindo o dano, remediando-o ao máximo a fim de assegurar a retomada do crescimento. Tecidos especiais garantirão o crescimento vertical e a planta se tornará uma árvore adulta. Todavia, a lesão causada no xilema permanecerá internamente, na estrutura da árvore, e, em muitos casos, se manifesta externamente pela tortuosidade da quebra. Apesar da cicatrização promovida pelos tecidos vegetais mais externos presentes no tronco da planta, o xilema interno danificado não se recupera jamais, e, assim, a tortuosidade provocada pelas mãos humanas no momento da quebrada irá se perpetuar. A pequena muda atingirá sua maturidade, tornando-se uma árvore grande e frondosa. Entretanto, o local, o sentido e a altura da quebrada permanecerão, testemunhando ao longo de sua vida a mobilidade territorial e a itinerância dos povos indígenas pela floresta.
A manutenção dos varadouros implica a realização constante de novos cortes e quebradas, e, por isso, estão constituídos por plantas e árvores em diversos estágios de crescimento e de cicatrização. Varadouros abandonados há anos ainda podem ser reconhecidos pelos grossos troncos deformados, mas que, todavia, preservam o sentido em que seguiam aqueles que os produziram. Mateiros experientes conseguem, quase que intuitivamente, rastrear varadouros seculares marcados por velhas árvores tortas e espaçadas. O pensamento selvagem dos mateiros parece moldado pela própria plasticidade da história e do tempo das florestas. Eles são capazes de perceber e seguir pela tortuosidade do mundo em que vivem. Um ambiente não linear moldado pela sombra das grandes árvores, pelo estrangulamento dos cipós e apuís, pelas raízes e pelos balseiros caídos. Um mundo persistente, retorcido, adaptável e intimamente vegetal, assim como as velhas quebradas humanas.
A identificação e datação dos varadouros e de suas quebradas é auxiliada, ainda, pela presença de ramos e brotos próximos ao local onde a planta sofreu o dano. O crescimento desses brotos é regulado, inibido por um fitormônio (hormônio vegetal). A principal fonte desse hormônio está localizada exatamente nas pontas dos galhos e hastes, nas gemas apicais. Quando elas são seccionadas, as regiões de crescimento deixam de ser inibidas e dão início ao processo de crescimento. Portanto, além da tortuosidade, as velhas quebradas podem se revelar também por meio da bifurcação incomum de árvores naturalmente linheiras de tronco único. Assim, castanheiras, cedros, cumarus, louros, itaúbas, ipês, mulateiros, jatobás e jutaís, árvores reconhecidas por seus troncos retilíneos individualizados, por vezes se apresentam bifurcadas ou trifurcadas já próximas ao solo, quando presentes nas bordas de antigos caminhos. Nesses contextos, a idade das árvores bifurcadas mais velhas e das que apresentam tortuosidades se aproxima bastante da idade dos próprios varadouros.
Muitos desses conceitos e terminologias botânicas não estão presentes no mundo dos mateiros. Para eles, há outros modos, mais elegantes, de abordar os processos da biologia vegetal. No ambiente silencioso e compenetrado desses habitantes das florestas, a comunicação é mais concisa, e as longas conversas são reservadas principalmente para quando já estão no aconchego de suas redes, ouvindo os bichos da noite. Acerca da minha longa e confusa tentativa de descrever processos histológicos que culminam com a criação e perpetuação de velhas quebradas, me valendo sobretudo de estranhas palavras como xilema, lignina, gemas e bioindicadores, penso que meus amigos mateiros sintetizariam tudo isso de uma forma mais bem-humorada: “Pau que nasce ou cresce torto, morre torto, e até a sua cinza é torta”.
Ainda sobre espécies pioneiras comumente encontradas ao longo dos varadouros, merecem destaque especial a batata Mairá, o Yamo e a Batata da Fartura. São cipós da família Icacinaceae, que colonizam clareiras e bordas dos varadouros em diversas regiões do Brasil, e que geram batatas com até 200 quilos. Estas são utilizadas por povos indígenas e tradicionais na fabricação de pães, bolos, farinhas e mingaus. Sabemos hoje que essas plantas tiveram papel central na soberania alimentar de diversos povos nativos no passado. Se adicionarmos a isso o fato de que os povos indígenas coletam frutos pelo interior da floresta e que, durante as refeições realizadas em suas caminhadas, essas sementes são deixadas ao longo dos caminhos e que podem posteriormente tornar-se árvores adultas, além de revelarem informações sobre a mobilidade e territorialidade, os varadouros são também sítios de promoção e dispersão da agrobiodiversidade dos povos nativos.
A Amazônia não é um ambiente intocado. Sua importância não se restringe ao nosso presente ou à nossa vontade renitente por permanecer existindo neste mundo. Por meio da materialidade expressa na tortuosidade de suas árvores e arbustos, a floresta mantém vivas as memórias de incontáveis povos que deixaram um pouco de suas vidas impressas no mundo vegetal. Nesse contexto, a destruição das matas não acarreta apenas a degradação ambiental, ela também destrói a história humana nelas inscrita.
A identificação das velhas quebradas, das árvores bifurcadas ou inclinadas pela luz do sol e, consequentemente, dos varadouros centenários, é utilizada para o reconhecimento dos territórios dos povos indígenas isolados, mas traz consigo o potencial de apoiar a demarcação de quaisquer territórios indígenas, sobretudo daqueles cujos habitantes se viram forçados a deixar suas terras ancestrais. Mesmo longe da Amazônia, onde o processo de colonização da América é mais antigo e o resultado da destruição das matas é mais evidente, esses caminhos ainda estão vivos e resistentes.
Trago comigo também a lembrança de menino, quando morava no nordeste de Minas Gerais. Lembro-me dos Maxakali em suas andanças pelo Vale do Mucuri. Eles percorriam os mesmos caminhos em que seus pais e avós andaram, rememorando histórias e mantendo viva sua memória. Ao longo do processo de colonização, muitas de suas rotas principais foram sendo apropriadas pelos colonos e tropeiros, transformando-se com o passar dos anos em estradas mais largas e empoeiradas, enlameadas, esburacadas e, por fim, convertidas em um manto negro, escaldante para os pés descalços. Rotas que conectam rios como o Pampã e o Mucuri, além de cidades e de outros lugares que ainda preservam seus nomes indígenas. Apesar da quase completa destruição das matas daquela região, ruínas das florestas dos Tikmũ’ũn (como se autodenominam), os Maxakali resistem e continuam a seguir por onde passaram os seus ancestrais. E se nos dispusermos a acompanhá-los pelo interior das fazendas, nos embrenhando por entre cercas e arames farpados, as velhas quebradas e os varadouros seculares se revelarão. São, antes de tudo, testemunhas da opressão, do esbulho e da usurpação dos territórios indígenas, do passado e do presente. Na minha região, a saudade da terra estará eternamente materializada por uma velha quebrada maxakali.
Daniel Cangussu
Mestre em Gestão de Áreas Protegidas na Amazônia pelo INPA, atua junto à Frente de Proteção Etnoambiental Madeira-Purus/FUNAI nas metodologias de localização, monitoramento e proteção dos territórios de indígenas isolados.
Fábio Baroli
Nascido em Uberaba (MG), é mestre em Poéticas Visuais pela USP. Participou de exposições na Galerie Voss (Alemanha), Reiners Contemporary Art (Espanha), MuseumsQuatier (Áustria), CCBB, CCBN, MAR e MAM.
Como citar
CANGUSSU, Daniel. Olhar mateiro. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, edição especial Vegetalidades, p. 22-33, set. 2023.
Esta edição especial da revista foi produzida colaborativamente pelos editores Felipe Carnevalli, Fernanda Regaldo, Paula Lobato, Renata Marquez e Wellington Cançado e pelas editoras convidadas Anai Vera, Bianca Chizzolini e Karen Shiratori.