OS INCOMUNS
Texto de Mario Blaser e Marisol de la Cadena
Fome de resistência – A mão Kayapó Menkragnoti, série de Jonathas de Andrade em colaboração com a comunidade Kayapó Menkragnoti
Quem deveria decidir como tratar e usar um bem comum, como, por exemplo, um rio? As comunidades que vivem às margens desse rio, os cidadãos do país que ele atravessa ou a comunidade global que cuida de sua função em sistemas planetários?
A ideia dos “incomuns” impôs-se num momento muito particular da história da América do Sul, quando se tornavam evidentes os conflitos socioambientais que acompanharam o neoextrativismo. Como modelo de desenvolvimento baseado sobretudo na extração em grande escala de recursos naturais para exportação, o neoextrativismo foi implementado tanto sob governos conservadores quanto progressistas. Os primeiros aprofundaram as tendências de privatização das receitas geradas pelas exportações, enquanto os segundos geralmente usaram estas receitas para reduzir a pobreza, aumentar a participação social e garantir a estabilidade política. As figuras paradigmáticas do neoextrativismo são a mineração a céu aberto, a expansão das fronteiras dos combustíveis fósseis, a construção de grandes hidrelétricas e o agronegócio em larga escala.
Como essas atividades frequentemente envolvem a destruição e/ou o cercamento dos “comuns”, não é raro ver governos descrevendo-os como “bens comuns” a serem apropriados por corporações ou pelo Estado na busca do “bem comum” nacional. No entanto, tais alusões ao bem comum não impediram o surgimento de contestações e conflitos que não foram apenas locais, mas, pelo contrário, tornaram-se endêmicos onde quer que se implementassem projetos extrativistas.
Duas coisas nos chamaram a atenção nesse contexto. Primeiro, o paradoxo da convergência conceitual entre as justificativas de governos extrativistas e as justificativas de justiça social e ambiental usadas na defesa dos comuns. Depois, a maneira como essa convergência paradoxal faz ressaltar os limites dos termos usados na discussão. Mesmo que “cercamento” e “comuns” se inscrevam na economia política como termos opostos – um destruindo o outro à medida que o capitalismo avança, embora sempre diante da possibilidade de que tudo pode mudar –, ambos os termos, articulados por uma série de binários (individual e coletivo, privado e público, subsistência e lucro), acabam convergindo.
Essa convergência está na suposta continuidade ontológica entre humanos e na descontinuidade ontológica entre humanos e não humanos, o que permite uma relação que objetifica os não humanos como recursos naturais. A distribuição, o acesso e o uso desses recursos podem, então, tornar-se pontos de discórdia entre os humanos.
Entretanto, isso contrasta fortemente com as expressões que ouvimos nos contextos de conflito, quando os defensores dos comuns diziam que o que os mobilizava não era apenas o interesse em preservar seus comuns, mas também um sentimento de obrigação – e receio sobre as potenciais consequências se não a cumprissem – com o que chamaríamos de florestas, animais, rios e montanhas, e que eles descrevem como poderosas pessoas não humanas.
O que os defensores dos comuns nos diziam trazia à tona algo que ultrapassava os conceitos baseados na descontinuidade ontológica entre humanos e não humanos, sem, no entanto, deixar de lidar com estes conceitos. Por exemplo, quando eles, seus aliados e oponentes, traduziam para formas hegemônicas de reconhecimento as pessoas não humanas: por meio dos idiomas da religião – uma montanha sagrada – ou da cultura – as ditas crenças tradicionais.
Processos coloniais desse tipo efetivam, em parte, o que John Law chama de “Mundo de Um Mundo” – “uma grande caixa de espaço-tempo que existe por si só” e onde vivem “pessoas com crenças diferentes”. Vidas heterogêneas às quais pode não se aplicar a divisão entre humanos e não humanos (e vidas que não se dão apenas por meio destas entidades) são forçadas a caber nesta distinção, mas continuam a existir excedendo-a. Chamamos esse excesso emaranhado de “os incomuns”, uma condição que perturba, embora não substitua, a ideia do “mundo” como terreno compartilhado. Uma ideia que aparece como condição para o bem comum e para os comuns.
Nos últimos anos, o entendimento dos comuns como reservatórios compartilhados de recursos sofreu duras críticas. Como afirma Peter Linebaugh, “falar dos comuns como se fossem recursos naturais é enganoso, na melhor das hipóteses, e perigoso, na pior delas – os comuns são uma prática e, no mínimo, expressam relacionamentos sociais inseparáveis das relações com a natureza. Talvez fosse melhor pensar a palavra como verbo, como prática e não como um substantivo”.
Assim, alguns críticos preferem falar de “fazer comum”: uma prática de construção e nutrição da comunidade que inclui os não humanos como agentes ativos, se distanciando da descontinuidade ontológica entre humanos e não humanos. O “fazer comum” rejeita, embora nem sempre consiga superar a descontinuidade, que os não humanos sejam transformados em recursos e que sejam desvinculados das comunidades humanas que os utilizam e que deles dependem. Em outras palavras, os comuns são concebidos como totalidades indissolúveis de humanos e não humanos sempre em construção, sempre em processo de vir a ser. Como se costuma dizer nos círculos de discussão sobre os comuns, “não há comuns sem comunidade”.
O que está implicado na construção dessas “totalidades”? “Se o fazer comum tem algum significado, está na produção de nós mesmos como um sujeito comum”, diz Silvia Federici. Sua ideia de comunidade se refere à “qualidade das relações, um princípio de cooperação e responsabilidade uns com os outros e com a terra, as florestas, os mares, os animais”, e não a “um agrupamento de pessoas unidas por interesses exclusivos que as separam de outras”. É assim que devemos entender o slogan “não há comuns sem comunidade”.
No entanto, a ideia de comunidade implica um domínio compartilhado que, diante da existência de incomunalidades, levanta questões de escala, escopo e relações. Até onde se estende o domínio compartilhado constituinte da comunidade? Que tipo de coisas ele inclui e que responsabilidades essas coisas exigem? Quais são as possíveis relações entre os comuns e os incomuns? Em suma, quais seriam as implicações de fazer comuns (os objetos, as identidades, os conceitos, as ideias e assim por diante), especialmente quando essas coisas podem (também) ser incomuns?
Os apelos governamentais ao bem comum nacional para justificar o confisco de comuns, embora muitas vezes retóricos, têm alguma reverberação, porque lidam com uma questão nunca resolvida: em que escala a fronteira de um comum (e a comunidade associada a ele) deve ser traçada? Quem deveria decidir como tratar e usar um comum, como, por exemplo, um rio? As comunidades que vivem às margens desse rio, os cidadãos do país que ele atravessa, ou a comunidade global que cuida de sua função em sistemas planetários?
Frequentemente fala-se dos comuns a partir de uma imaginação convencional das escalas, com a grande escala englobando domínios menores (ou seja, o global engloba o nacional, que engloba o regional, que engloba o local). Assim, as decisões devem ser delegadas à menor unidade jurisdicional capaz de lidar com elas em benefício do comum, a menos que isto gere conflito entre “unidades”. Nesse caso, a tomada de decisões deve ser ‘‘repassada’’ a uma unidade de nível superior.
No entanto parece haver um problema que escapa a essa imaginação de escala, como mostra Casper Bruun Jensen: quando examinadas de perto, as relações entre as escalas envolvem não apenas conflitos potenciais, mas também uma proliferação de incomuns. Jensen contrasta o significado convencional dos comuns como conjuntos de recursos acessíveis com as “pressuposições compartilhadas sobre os significados das práticas ou dos mundos”, já que o “fazer comum” inevitavelmente envolve esboçar um domínio compartilhado.
Um rio como o Mekong, por exemplo, pode ser domínio de comunidades ribeirinhas como fonte comum de seu sustento, de governos que supostamente representam os cidadãos dos países que ele atravessa como fonte potencial de energia e de organizações ambientais transnacionais como um componente-chave dos comuns da biodiversidade. Cada uma dessas perspectivas constitui diferentes projetos de “fazer domínio” (ou de fazer comum), e suas escalas podem ser um efeito do modo como são conduzidos. Jensen propõe que a compreensão dos comuns a partir das práticas de “fazer domínio” permite enxergá-los como projetos que precisam ser constantemente concretizados, pois não existem a priori.
Ao contrário do que poderíamos acreditar, os comuns de pequena escala não estão encaixados em comuns maiores e assim por diante, até constituírem uma “totalidade” comum. Na verdade, os comuns se tornam grandes ou pequenos dependendo da forma como os domínios se relacionam. A preservação global de um comum de biodiversidade pode precisar estar ligada à fonte comum de sustento de comunidades ribeirinhas por meio de projetos de manejo florestal ou ecoturismo, facilitando o uso do rio para a pesca, e tornando-se assim uma versão “local” de um “comum global”. Uma das questões cruciais levantadas por Jensen, no entanto, é que, independentemente da escala, os domínios constituem lugares onde abundam os incomuns.
Em um projeto de manejo florestal, por exemplo, enquanto os moradores locais tentam impedir a extração de madeira ou a invasão das monoculturas ou mesmo buscar recursos para os próprios fins (fazer oferendas para os espíritos, inclusive), a ONG nacional pode estar interessada em melhorar os meios de subsistência e a ONG transnacional estará preocupada com a biodiversidade. Como o fazer comum (ou o fazer domínio) precisa ser constantemente performatizado, sobretudo por meio do alinhamento de diferentes projetos de domínio, os incomuns proliferam o tempo todo. Os incomuns são constitutivos dos comuns.
Os festejos para os espíritos realizados hoje com recursos de um projeto de manejo florestal não equivalem, porém, exatamente aos festejos do passado. E participar do projeto para aproveitar seus recursos para festejar os espíritos é diferente de participar deste mesmo projeto para proteger a biodiversidade. Em outras palavras, embora novas relações entre domínios (por exemplo, “festejar os espíritos” e “conservar a biodiversidade”), possibilitadas pela formação de um novo domínio (o projeto de manejo florestal), possam alterar os primeiros (fazendo-os divergir de si mesmos), isto não significa que passam a convergir, tornando-se a mesma coisa. Sem que sejam imutáveis, cada domínio traz as próprias “coisas” incomuns para o processo de fazer comum, como enfatizam Judith Farquhar, Lili Lai e Marshall Kramer. Os incomuns não devem ser pensados como expressão de diferenças fossilizadas e preexistentes (“coisas” que sempre existiram, iguais para si e diferentes umas das outras), mas como um processo de divergência contínuo.
O “Mundo de Um Mundo” pode ser pensado como um projeto de fazer comum em escala universal, como a construção de um domínio compartilhado no qual todas as diferenças existem. O que Jensen dizia sobre a criação de domínios se aplica também a esse domínio universal: ele é um efeito de práticas que pressupõem que o domínio já existe. No entanto a biodiversidade global só é um domínio plausível se suas variadas versões locais se conectarem com sucesso umas às outras.
O exemplo do sistema ferroviário utilizado por Bruno Latour é apropriado aqui. Um sistema “global” que existe apenas na medida em que estações, faixas, sinais e máquinas de bilhetes “localizados” se conectam e se mantêm interligados. Conexões e ligações são obviamente centrais para a constituição de domínios (ou de comuns), mas não menos central é se os elementos incomuns serão flexíveis o suficiente para se manterem juntos, delimitando assim o âmbito possível de um comum – mas sob quais condições os incomuns sustentam os comuns?
Na história da construção do “Mundo de Um Mundo”, a comunalidade universal da “natureza” foi estabelecida por meio da extensão das práticas científicas a uma multiplicidade de locais geográficos. Atsuro Morita aborda um momento específico dessa história: o encontro entre o projeto humboldtiano de um “retrato abrangente do universo” e a adesão do rei Mongkut, do Sião, a esse projeto para os próprios fins. O evento paradigmático é uma expedição à selva organizada pelo rei para testemunhar um eclipse solar total, previsto por ele. Morita nos conta que a expedição reuniu “a família real siamesa, nobres, eminentes astrólogos da corte, astrônomos franceses, diplomatas de vários países europeus […], o governador de Cingapura” e, claro, “instrumentos de observação astronômica”.
Poderíamos interpretar o evento como uma expansão das práticas científicas, o que daria ainda mais credibilidade à suposição de Humboldt sobre a existência de um universo organizado composto por “coisas” e leis a serem estudadas de acordo com um método específico. Tal interpretação não estaria errada, mas o que Morita mostra é que havia algo mais: a tentativa do rei de administrar a relação entre o Sião e as potências coloniais, com base no conhecimento “comum” siamês sobre como um universo de “milhares de maravilhosos mundos elevados à milésima potência” se mantém unido!
As ações do rei estavam em consonância com a governança de um “corpo político em mandala” – que, seguindo os arranjos cosmológicos hindu-budistas, era concebido como uma série de círculos concêntricos de influência e poder, em meio a uma multiplicidade de corpos políticos configurados de forma semelhante. A astrologia desempenhava um papel central nas tecnologias políticas e diplomáticas das mandalas, e a astronomia e a geodesia foram adotadas pelo rei nesta mesma linha. No entanto não devemos interpretar que o rei estava simplesmente incorporando elementos da prática científica à astrologia e à administração política tradicionais. Como no exemplo do manejo florestal que descrevemos antes, o rei estava dando forma a um novo domínio no âmbito daquilo que Morita chama de um espaço intersticial, “entre múltiplas práticas de conhecimento e gerenciamento do mundo”.
Ao mesmo tempo que as práticas implicadas nesse novo domínio divergiam de suas “raízes”, elas se conectavam com elas (a astrologia, a astronomia, a geodesia, a diplomacia). Divergiam porque foram tecidas junto a um novo conjunto de práticas, mas, por outro lado, também se conectavam porque podiam ser perfeitamente reconhecidas como pertencentes a protocolos estabelecidos. Tal simultaneidade entre conexão e divergência nas práticas do rei eventualmente permitiu que os cientistas percebessem a expedição como um símbolo “da vitória da ciência moderna e do monarca esclarecido sobre a superstição”, mas também permitiu que astrólogos tailandeses a vissem como “o marco do início da astrologia tailandesa moderna”. Em outras palavras, o fazer comum ou fazer domínio estabelecido pelo rei no espaço intersticial apagava apenas tenuamente o incomum em que estava alicerçado. Como um campo de equívocos, esse novo domínio permitiu que a ciência moderna e a astrologia tailandesa existissem em comum, mesmo que divergindo.
Os equívocos desempenham um papel fundamental em manter os incomuns como comuns. Os equívocos, noção proposta pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, acontecem quando não há a compreensão de que, ao usar um mesmo termo, dois ou mais interlocutores estão se referindo a coisas diferentes. O domínio de práticas comuns estabelecido pelo rei do Sião constituiu um campo de equívocos porque aquelas práticas tinham diferentes referentes para diferentes interlocutores. Para os cientistas, elas se referiam à ordem universal do cosmos humboldtiano; para os astrólogos tailandeses, elas se referiam à ordem universal dos milhares de mundos elevados à milésima potência. Podemos imaginar esses interlocutores parabenizando uns aos outros pelo sucesso da expedição, sem perceber que se referiam a coisas distintas.
As incomunalidades surgem também durante o deslocamento das relíquias nacionais do Museu Nacional de Jacarta ao palácio Klungkung, em Bali, para uma comemoração de Estado. Margaret Wiener mostra como a visita dos punhais-relíquias indonésios, conhecidos como kris, constitui um campo de equívocos em que uma comemoração de Estado e um ritual balinês acontecem em paralelo e se sobrepõem. A incomunalidade torna-se imediatamente visível quando as relíquias não são utilizadas exatamente como prescrevem os protocolos de preservação museológica, por um lado, e os ritualísticos, por outro. Isso ocorre, por exemplo, quando os “objetos de museu” são manipulados por um sacerdote sem luvas, diferentemente do que determinariam as práticas de preservação, ou quando um membro da equipe do museu que acompanha as relíquias preocupa-se com os riscos à saúde daqueles que bebem a água benta produzida durante os ritos. A visibilidade do incomum, porém, não dura muito: uma pequena modificação no protocolo (os sacerdotes param de tocar as relíquias com as mãos nuas) e um recurso à “linguagem ecumênica” (o membro da equipe do museu, muçulmano, é informado de que Deus removeu todas as bactérias da água) trazem de volta os dois conjuntos de práticas para o terreno do comum.
O silenciamento dos incomuns, entretanto, nem sempre é possível. É o que Wiener argumenta ao contar sobre o incomum evidenciado nas praias de Bali. Junto com ravinas e cemitérios, praias são locais que os balineses chamam de tenget: perigosos ou assombrados. Nos anos de 1965 e 1966, entre 80 e 150 mil pessoas morreram nas mãos de grupos paramilitares anticomunistas, de vizinhos e até mesmo de parentes, numa onda de violência disseminada pelo regime da Nova Ordem do general Suharto. A maioria das mortes ocorreu em lugares tenget, onde os corpos foram enterrados. Com exceção dos cemitérios, esses são lugares de grande atração para os euro-americanos e para investidores da indústria do turismo, muitos deles políticos e generais promotores dos massacres. “Foi construída uma indústria sobre os corpos daqueles cujas mortes permitiram que quem lucrava com ela chegasse ao poder”, diz Wiener.
No entanto, desde a queda da Nova Ordem, crescem movimentos para exumar as valas comuns. Em alguns casos, o movimento parte dos próprios mortos, que, por meio de possessões, visões paranormais e suicídios, exigem uma cremação adequada. Para responder plenamente às suas demandas, porém, seria necessário remover os hotéis construídos sobre as valas comuns. Além dos problemas práticos e políticos que isso implica, a publicidade em torno do assunto prejudicaria uma indústria da qual muitos balineses dependem. Como afirma Wiener, a situação traz à tona choques entre diferentes formas de prosperidade, mesmo para os balineses: aquelas que mantêm adequadas as relações entre os vivos e os mortos, entre as forças humanas e não humanas, e aquelas associadas à força econômica do fazer comum conhecida como capitalismo.
Os dois exemplos produzem equívocos na constituição dos comuns, permitindo que práticas divergentes permaneçam articuladas com o mínimo de interrupção mútua. Os incomuns se tornam visíveis quando essas práticas se chocam ou quando os equívocos sobre os quais o comum está construído são enfatizados. Qual seria o significado político de tornar visível o incomum ou de “tornar incomum”? Os equívocos desempenham um papel importante no sucesso do fazer comum, mas o que não podemos perder de vista é que, na maioria das vezes, os campos de equívocos são assimétricos. O papel fundamental dos incomuns na constituição dos comuns acaba sendo renegado, e os comuns acabam não cumprindo as promessas de democracia, igualdade e justiça.
Num futuro próximo, o provável desdobramento do incomum nas praias balinesas indica que o turismo prevalecerá, sufocando as possibilidades de um tratamento adequado aos mortos. Nesse exemplo, parece não haver possibilidades de um equívoco produtivo que torne as praias um comum para ambos os conjuntos de práticas. A atual assimetria de poder faz com que o desacordo seja resolvido de forma unívoca. Podemos, entretanto, sempre nos perguntar o que aconteceria se as assombrações proliferassem a tal ponto que para a indústria do turismo fosse conveniente fazer algo a respeito.
Voltando à expedição do rei Mongkut: para os cientistas, a expedição do rei representava uma coisa e para os astrólogos tailandeses, outra – mas, enquanto algo muda para a astrologia tailandesa (sua requalificação como “moderna”), a ciência moderna é apenas reconfirmada. Somos tentados a dizer que, embora a astrologia tailandesa veja a ciência moderna como conhecimento, o inverso não é o caso.
No caso do trânsito dos kris ao museu, uma assimetria semelhante fica evidente, e o trabalho para manter em funcionamento o equívoco é realizado por aqueles que abordam as relíquias como agentes não humanos. Eles cobrem as mãos para acomodar as práticas de preservação museológica e recorrem a uma “linguagem ecumênica” para apaziguar as preocupações dos agentes do Estado. Em outras palavras, o fazer comum se dá ali ao custo de subordinar um conjunto de práticas a outro por meio do “tornar igual” – isto é, proclama-se uma equivalência onde há divergência operante. E, como, consequência, as práticas dominantes podem operar como se as práticas subordinadas fossem irrelevantes para a constituição do comum.
O “tornar incomum”, porém, vai contra essa possibilidade. Enfatiza que as práticas ditas comuns são tanto diferentes (o oposto do igual) quanto divergentes, como explica a filósofa Isabelle Stengers a partir do que chama de “ecologia das práticas”. As práticas são constituídas pela própria divergência positiva, já que se juntam simbioticamente – como em um sistema ecológico –, embora permaneçam distintas: o que as aproxima é um interesse em comum que não é o mesmo interesse. Assim, o “tornar incomum” não é excluir a possibilidade de fazer comum, mas, antes, procurar sempre que possível maneiras de basear o fazer comum nos fundamentos sólidos das divergências produtivas reconhecidas.
Mario Blaser
Antropólogo, doutor pela McMaster University e professor da Memorial University of Newfoundland and Labrador, no Canadá. É autor do livro “Storytelling Globalization from the Chaco and Beyond”.
Marisol de la Cadena
Antropóloga, doutora pela University of Wisconsin-Madison e professora da University of California, Davis, nos EUA. É autora do livro “Earth Beings: Ecologies of Practice across Andean Worlds”.
Jonathas de Andrade
Artista, trabalha com instalações, ações e fotopesquisas. Publicou o livro Ressaca Tropical e participou da 32ª Bienal de São Paulo e da 13ª Bienal de Sharjah.
Como citar
BLASER, Mario; CADENA, Marisol de la. Os incomuns. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 15, p. 74-83, dez. 2021.
Este número da revista teve como editores Felipe Carnevalli, Fernanda Regaldo, Paula Lobato, Renata Marquez e Wellington Cançado.
Tradução: Fernanda Regaldo e Renata Marquez