PAISAGENS
ANTROPOGÊNICAS
Texto de Anna Tsing
Fotografias de Elaine Gan, Anna Tsing e Working Group of the Forest and Nature Agency
Por meio de algumas ferramentas, podemos apreender o design não intencional que surge da interação entre espécies num planeta devastado – com ou sem planejamento – pelos humanos.
O termo Antropoceno foi proposto como referência a uma época geológica em que a perturbação humana na terra geofísica excede até mesmo a das geleiras. Longe de ser perfeito, o termo nos alerta para os enormes problemas ambientais do nosso tempo, incluindo a onda de extinções causadas por distúrbios humanos, as mudanças climáticas antropogênicas e a disseminação de formas de poluição e de radiação que colocam em risco a vida, entre tantos outros. A habitabilidade da Terra está em perigo devido à perturbação humana, e teremos que decidir se faremos algo a respeito.
Para explicar a gravidade de nossos problemas ambientais, pode ser útil comentar dois equívocos comuns em torno do termo Antropoceno. Em primeiro lugar, o termo não se refere a qualquer distúrbio humano no meio ambiente da Terra. Desde a evolução do Homo sapiens, cerca de 200 mil anos atrás, os humanos vêm afetando o meio ambiente, assim como todos os outros seres vivos. Sabemos, por exemplo, que os castores criam lagoas e pântanos quando constroem suas barragens, o que muda o ambiente para os peixes. Todas as espécies exercem esse tipo de transformação no ambiente. Se olharmos para as mudanças coletivas que as bactérias já exerceram na Terra, os efeitos humanos se tornam irrisórios. Não somos os únicos a moldar a Terra, intencionalmente ou não. O termo Antropoceno refere-se ao escopo e à escala recentemente emergentes da perturbação que causamos e suas ameaças à vida multiespécies. Vemos essas ameaças não apenas nas mudanças climáticas globais, mas também na extinção de tantas plantas e animais, na poluição generalizada, na eutrofização dos corpos d’água, e na emissão contínua de radioatividade e de resíduos tóxicos. Esse é o problema do Antropoceno, não a perturbação humana em si.
Em segundo lugar, o Antropoceno não é a era do domínio humano da natureza. Não é a realização de sonhos de progresso. Pelo contrário! O objetivo do termo é nos conscientizar sobre o quanto não controlamos e sobre a desordem que nossa espécie causou sem nunca parar para pensar. Se estamos longe de pensar em termos de domínio, nem mesmo a noção de intencionalidade serve como guia quando levamos o Antropoceno a sério. É por isso que faz sentido começar falando de desenlaces não intencionais, ou seja, da situação que ajudamos a criar, com ou sem planejamento.
A noção de intencionalidade nos leva na direção errada. Primeiro, ela nos faz esquecer de que outras espécies também fazem mundo. Em segundo lugar, nos leva a pensar que tudo de que precisamos são boas intenções. Nosso problema não foi causado por um gênio do mal, como nos filmes infantis. Mesmo as práticas mais perigosas para o meio ambiente que conseguirmos imaginar, como o fracking ou a genética industrial, não são exercidas para destruir a terra. A situação é melhor descrita da seguinte maneira: os investidores, focados em ganhos de curto prazo, não estão nem aí, e ninguém mais foi capaz de detê-los. A verdade é que eu poderia argumentar que a última frase funciona razoavelmente bem para explicar como criamos tantos problemas nos últimos 200 anos.
Esses 200 anos constituem o mesmo período que sediou a divisão do conhecimento entre as humanidades e as ciências, e é difícil não ver o entrelaçamento que existe entre essas questões. Sonhos irrealistas a respeito do alcance do domínio humano alimentaram a divisão acadêmica entre os humanos, prontos para conquistar, e os não-humanos, à espera de serem conquistados. Esses mesmos sonhos impulsionaram os projetos de investidores irresponsáveis. As pessoas pensavam – se é que elas pensavam – que poderíamos limpar a lambança mais tarde. Só que agora estamos todos dentro dessa lambança, e não há nenhum sinal de limpeza à vista. Não tenho a arrogância de imaginar que a iniciativa de pesquisa da qual faço parte na Universidade de Aarhus, na Dinamarca, poderá mudar tudo isso, mas o mínimo que podemos fazer é lançar um outro olhar para o mundo em que nos encontramos. Em vez de começar com sonhos irrealistas de domínio, podemos explorar a bagunça para avaliar as possibilidades que ainda existem nela.
O objeto da pesquisa desenvolvida pelo nosso grupo é o design não intencional em paisagens antropogênicas, ou seja, paisagens que foram moldadas pela atividade humana. O design não intencional não é exclusividade dos humanos; muitas outras espécies, bem como coisas inanimadas, como a água e o vento, moldam as paisagens que estudamos. O design não intencional é o padrão emergente de todas essas formas de atividade, humana e não humana. Esse é o nosso mundo no Antropoceno.
Não podemos saber o que está se formando nessas paisagens sem a ajuda de cientistas e humanistas. As histórias e as atividades humanas e as histórias e as atividades não humanas são igualmente relevantes. É aqui que a curiosidade e a imaginação entram em jogo; precisamos das habilidades de observação tanto de humanistas quanto de cientistas para entender como as coisas se misturam – e, também, portanto, o que ainda pode emergir.
Gostaria de levar as leitoras e leitores a um lugar específico para mostrar o que quero dizer – e apresentar algumas ferramentas de que dispomos no século XXI para enfrentar esse desafio. Alguns anos atrás, comecei com meu grupo um trabalho de campo em um lugar na Jutlândia Central chamado Søby Brunkulslejerne, ou jazidas Søby de carvão marrom (linhito). Aquele havia sido um lugar de extração de linhito entre a Segunda Guerra Mundial e 1970. A mineração consistia em cavar grandes buracos para encontrar camadas finas, comprimidas, de árvores do Mioceno. Quando os mineiros terminaram seu serviço, eles pararam de bombear a água subterrânea e lagos ácidos encheram os buracos. Ao redor deles estavam os montes de areia que haviam sido desenterrados do chão. O local estava abandonado: como grande parte da Terra, é um local de ruínas industriais.
Nosso trabalho ali é duplo. Por um lado, estamos mostrando uns aos outros métodos para desenvolver nossa abordagem colaborativa. Os biólogos e os antropólogos dominaram até agora; cada um trabalha as possibilidades do lugar para aprender o que é possível em paisagens danificadas pelo homem. Por outro lado, queremos descobrir se resultados reais de pesquisa serão possíveis. É muito cedo para tirar conclusões, mas posso apresentar quatro novas ferramentas de pesquisa que nos deixam otimistas. Cada uma delas tem raízes em alguma disciplina específica, mas também é transdisciplinar, pois nos diz o que observar e como perceber. Trata-se de ferramentas, portanto, para remodelar a imaginação.
Uma dessas ferramentas é o que chamo aqui de “corpos interespécies”. Uma revolução aconteceu nos últimos anos na interseção entre a biologia do desenvolvimento, a teoria evolutiva e a ecologia. Ao longo do século XX, os biólogos trataram os organismos como unidades autônomas, e isso informou a criação dos algoritmos da biologia populacional. Acontece que agora os corpos da maioria dos organismos passaram a ser compreendidos como paisagens multiespécies. Nenhum organismo pode se desenvolver sem a ajuda de outras espécies. Isso muda muita coisa na prática da biologia. Entre outras coisas, traz a observação das relações interespécies de volta ao centro da disciplina.
Os pinheiros colonizaram a areia em torno das minas abandonadas de carvão marrom – mas apenas porque contam com a ajuda de um cogumelo. Essa areia não tem muitos nutrientes. É o fungo que forrageia os nutrientes, oferecendo-os ao pinheiro. Por sua vez, o fungo usa os carboidratos do pinheiro. Sem fungos, os pinheiros não poderiam colonizar locais pobres em nutrientes como esse. Sem os pinheiros, esses fungos não poderiam viver. Eles formam corpos interespécies com órgãos compartilhados que são a um só tempo pinho e fungo. Acontece que a maior parte da vida é assim. Temos sorte, porque sem essas colaborações, lugares arruinados permaneceriam vazios. Para observar paisagens em devir, precisamos notar corpos interespécies.
Uma segunda ferramenta são as “ecologias de distúrbio”. Durante a maior parte do século XX, os ecologistas se concentraram em comunidades ecológicas, imaginando-as como configurações estáveis em busca de equilíbrio. No final do século, porém, sua atenção voltou-se para o distúrbio, isto é, a ruptura das relações ecológicas. O distúrbio passou a ser entendido não apenas como um problema, mas também como uma abertura para a formação de novas ecologias.
Existem muitos tipos de distúrbio que não têm nada a ver com os humanos, mas convém pensar os distúrbios antrópicos a partir desse quadro de análise. Eles não são apenas um fim; são também um começo. Que ecologias podem se desenvolver em lugares perturbados por humanos?
A fotografia da Figura 3 foi tirada em 1970, quando fecharam as últimas minas de carvão marrom. Podemos observar os locais onde está a água e a linha onde os campos começam, ao fundo. A imagem parece ter sido feita no inverno, portanto é preciso levar isso em consideração. A Figura 4 mostra o mesmo lugar no ano 2000, mas nela parece ser verão. Os campos ao fundo agora estão verdes. A água está no mesmo local, mas muitas plantas estão crescendo no que até recentemente era só areia. Algumas delas foram plantadas, mas muitas foram parar ali por conta própria, por meio da dinâmica, que mostrei nas últimas imagens, entre fungos e árvores, transformando a areia em florestas.
Em 1970, havia apenas areia. Em 2000, um bosque havia surgido. A perturbação pode dar origem a novos agrupamentos de espécies. Humanistas e cientistas estão se unindo para aprender sobre paisagens históricas e dinâmicas.
Felizmente para nós, no minuto em que os humanos deixarem um pouco de espaço de manobra para outras espécies, elas provavelmente começarão a colonizar ruínas humanas. Consideremos, por exemplo, um espaço até aqui bastante humano: um tapete.
Trabalhadores de toda a Dinamarca haviam se mudado para a região das jazidas de carvão marrom. Uma senhora ficou por lá até dois anos atrás. Desde então, sua casa esteve vazia e o telhado cedeu em alguns pontos, de modo que caiu água sobre o tapete. Algumas semanas antes de fazer a apresentação na qual este artigo se baseia, encontrei ali um fungo em forma de copo, que começava o processo de devolver a casa à vida multiespécies. As possibilidades de ecologias de distúrbio estão por toda parte.
Volto às novas ferramentas, agora no campo das humanidades. Muitas vezes, pensamos os humanos como seres capazes de estabelecer apenas um tipo de relação com o mundo natural, mas, na verdade, as ações humanas formam um mosaico, constituem uma multiplicidade. O senso comum ainda tende a associar a diversidade humana a tempos arcaicos, entendendo-a como algo que teria sido superado pelo progresso, mas a diversidade também é moderna, mesmo quando se vale de legados antigos. Ainda não temos nem ideia de toda a perturbação ambiental humana no âmbito da tapeçaria da multiplicidade.
Depois que as minas de carvão marrom foram abandonadas, a área foi considerada perdida, e algumas indústrias poluidoras obtiveram autorização para operar ali. Entre elas, uma estação de gestão de resíduos sólidos. Há ainda outros projetos humanos que continuam a moldar essa paisagem. O manejo florestal incluiu o plantio de árvores – muitas delas exóticas. No início, essas árvores encantaram os silvicultores, prometendo um crescimento rápido. Em alguns casos, como no dos pinheiros, elas se espalharam muito além das expectativas iniciais, transformando-se em ervas daninhas invasoras. Outra perturbação humana importante é a caça — e o manejo para a caça. Nos últimos dez anos, os veados-vermelhos voltaram à área e, começando com uns poucos, passaram a definir a paisagem para uma legião de novos proprietários de terras, que compram terrenos para explorar o direito de caça. Eles alimentam e estimulam os veados, permitindo que populações insustentáveis cresçam. Como os veados costumam comer as colheitas dos agricultores, os agricultores se opõem a eles, mas os caçadores continuam a alimentá-los.
Os pinheiros e os veados-vermelhos, juntamente com seus defensores e detratores humanos, desempenham papéis importantes na reconstrução da paisagem. Ela é composta pela soma de atividades humanas bastante distintas – bem como pelos não humanos, que aproveitam as oportunidades que cada uma dessas atividades oferece. Isso é um design não intencional.
Darei mais um exemplo. Como mencionei, uma das atividades econômicas situadas nas ruínas da mineração é uma instalação de gestão de resíduos. Há um depósito de lixo, agora coberto de húmus, próximo à instalação. Nele, encontramos uma profusão de espécies relacionadas ao lixo, variando de plantas ornamentais que surgem de sementes descartadas pelo homem, até espécies selvagens que gostam da bagunça de nutrientes que os humanos podem oferecer. Vimos ali uma profusão de fungos que adoram espaços ricos em nitrogênio, incluindo cogumelos da palha (Volvariella volvacea) e cogumelos gota-de-tinta (Coprinus comatus). Também encontramos um cogumelo que não ocorre naturalmente na Dinamarca, o Stropharia. Essa espécie foi importada para o país em kits de cultivo, e os cogumelos que encontramos no lixão devem ser produtos dessa importação. Ninguém pediu que esses cogumelos crescessem ali; os esporos no lixo das pessoas germinaram naquilo que para eles é um espaço auspicioso. Há todo um design não intencional, portanto, no projeto humano de descartar o lixo. E este é apenas um entre muitos.
O que será necessário para conhecermos esses múltiplos projetos e seus resultados não intencionais? A primeira tarefa é reconhecer que os humanos não são a única espécie que explora o meio ambiente. Se imaginarmos a “curiosidade” não como um estado psicológico, mas como vontade de explorar, concluiremos que muitas espécies demonstram curiosidade. Essa é a minha quarta ferramenta. Consideremos novamente os cogumelos. O corpo da maioria dos fungos consiste em filamentos semelhantes a fios que se espalham pelo solo ou pela madeira, explorando-os. Longe de pensar nos fungos como “enraizados” em um único lugar, podemos observar suas explorações, ou até mesmo aquilo que chamei de sua curiosidade.
À medida que o preço das lascas de madeira aumentava, os proprietários de terras nas minas de carvão marrom cortavam seus pinheiros invasores e os transformavam em pilhas de lascas. Mesmo quando essas lascas são vendidas, no entanto, acaba ficando para trás o suficiente para os fungos.
Na Figura 7, um Hypholoma aventureiro achou as lascas de madeira atraentes e se espalhou por elas, explorando o meio e depois irrompendo em corpos de frutificação, os cogumelos.
Reconhecer as explorações dos outros é uma forma de estimular nossa curiosidade sobre paisagens multiespécies, mesmo em meio à perturbação humana. Na pesquisa, quando chegamos às lascas de madeira, achei que aquilo seria chato, e disse envergonhada aos biólogos especialistas em fungos que estavam comigo: “Não precisamos entrar aqui”. Mas as lascas acabaram se revelando um paraíso da vida multiespécies – e um ótimo lugar para revigorar toda a nossa curiosidade sobre o potencial ecológico de lugares perturbados pelo homem. Essas aventuras multiespécies podem nos levar a apreciar não apenas os problemas, mas também as possibilidades da vida no Antropoceno.
Anna Tsing
Antropóloga e professora na Universidade da Califórnia e na Universidade Aarhus, Dinamarca. Foi coordenadora do projeto AURA e integra a American Anthropological Association, a American Ethnological Society e a Association for Asian Studies.
Como citar
TSING, Anna. Paisagens antropogênicas. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, edição especial Vegetalidades, p. 124-131, set. 2023.
Esta edição especial da revista foi produzida colaborativamente pelos editores Felipe Carnevalli, Fernanda Regaldo, Paula Lobato, Renata Marquez e Wellington Cançado e pelas editoras convidadas Anai Vera, Bianca Chizzolini e Karen Shiratori.