PEDESTRIANISMO
Matthew Algeo
Caminhar em círculos pode não parecer tão exótico em cidades onde as ruas perderam sua verve e a alternância de pernas transformou-se em mero exercício funcional. Ainda assim, é surpreendente que as caminhadas já tenham sido esporte nacional nos Estados Unidos.
Durante as décadas de 1870 e 1880, milhares de norteamericanos lotaram arenas e arquibancadas para assistir a ferrenhas competições entre atletas caminhantes, também conhecidos como pedestres, que andavam, quase sem parar, durante seis dias. Nessas provas de resistência que os transformavam em estrelas, os pedestres profissionais chegavam a percorrer mais de 800 quilômetros.
As disputas eram acompanhadas com ansiedade nas arenas, comentadas com euforia nos jornais e telegrafadas às pressas para fãs em todo o país. O pedestrianismo não durou muito, mas abriu caminho para toda uma nova tradição: a dos esportes de entretenimento.
Conhecida como “O Grande Campeonato Mundial de Pedestrianismo”, a caminhada de 500 milhas disputada por Edward Payson Weston e Daniel O’ Leary em 1875 atraiu a atenção de tantas pessoas que os dois atletas concordaram em realizar a disputa no maior espaço existente: o gigantesco Edifício Interestadual de Exposições de Chicago.
De todos os edifícios voltados para o grande público construídos na década que se seguiu à Guerra Civil, o prédio de estilo italiano da Exposição, na Avenida Michigan, era, de longe, o maior: um palácio de metal e vidro coberto por três cúpulas enormes. A cúpula central atingia 50 metros de altura, servindo de farol para os navios do Lago Michigan. O piso principal cobria uma área de mais de 20 mil metros quadrados. A Expo era o maior espaço coberto para realização de eventos públicos nos Estados Unidos.
Como a maratona seria sediada em Chicago, O’ Leary desfrutaria da vantagem de competir em casa, mas Weston havia sido tranquilizado por uma proposta irrecusável: U$500 e metade dos lucros de bilheteria da maratona. Além disso, a cidade ainda tinha Weston em alta conta em razão da façanha obtida na caminhada de Portland a Chicago, oito anos antes – e o fato de o evento ser sediado na gigantesca Expo maximizaria os lucros.
Sabe-se que Weston e O’ Leary estiveram em treinamento nas semanas que antecederam a maratona, embora seja um mistério a maneira como eles treinavam exatamente. Os pedestrianistas, como outros atletas daquela época, consideravam seus métodos de treinamento segredos comerciais, e eram notoriamente cautelosos ao falar sobre o assunto. Weston admitiu apenas que, quando estava se preparando para algum evento, comia “alimentos naturais” e evitava “bebidas alcoólicas estimulantes”. Em Lore of Running, livro que conta a história do atletismo, Tim Noakes escreveu que outros maratonistas do século XIX treinavam para corridas “caminhando e correndo de seis a oito horas por dia” e aderiam a dietas que consistiam em “carne de boi, de carneiro ou de frango assada ou cozida, poucos legumes e pão duro e dormido, tudo isso regado a cerveja amarga”.
A maratona estava marcada para começar logo após a meia-noite de segunda-feira do dia 15 de novembro de 1875. Na medida em que o dia se aproximava, a publicidade em torno do evento crescia. “A chegada deste teste de resistência física despertou interesse considerável”, observou o Chicago Tribune na véspera da disputa, “e seu resultado será comentado com interesse por milhões de pessoas”. As regras da maratona foram registradas em artigos aprovados por Weston e O’ Leary. Uma equipe de juízes seria nomeada a partir de uma lista de chicaguenses proeminentes que fossem aceitos por ambos os pedestrianistas. Os ingressos para o evento seriam vendidos a 50 cents.
Weston e O’ Leary teriam direito a um quarto no Edifício de Exposições para descansarem. O primeiro deles a caminhar 500 milhas seria declarado o vencedor. No entanto, a maratona não poderia, em hipótese alguma, estender-se para além de meia-noite do sábado seguinte. Isso não apenas em razão da proibição que o próprio Weston se impunha com relação às caminhadas aos domingos, mas também porque, naquele tempo, Chicago, como quase todas as outras cidades dos Estados Unidos (e também do Reino Unido), possuía muitas das então chamadas leis azuis, que proibiam “diversões públicas” no descanso cristão. Seis dias era, então, o limite máximo para a duração de qualquer evento de atletismo.
Os artigos do acordo também estipulavam que os competidores deveriam manter “ou o calcanhar ou o dedo do pé no chão’’, ou seja: ao menos uma parte de um dos pés deveria estar sempre em contato com o chão. Correr era explicitamente proibido. Essa era uma distinção importante. Até então, pedestrianismo era um termo ambíguo que se aplicava a qualquer competição a pé, fosse caminhada ou corrida. Mas dali em diante − ao menos nos Estados Unidos − o termo passaria a definir exclusivamente as competições de caminhada.
A verdade era que nem Weston nem O’ Leary tinham aptidões especiais para a corrida. Ambos eram melhores em resistência física do que em velocidade. E a definição de pedestrianismo − ou mesmo de caminhada − ainda geraria muitas controvérsias no mundo dos esportes.
Weston chegou a Chicago no dia 11 de novembro, quatro dias antes da competição. “Ele viajou com estilo”, observou o Chicago Evening Journal, “tendo sido servido por dois empregados negros”. Hospedou-se numa suíte no Hotel Gardner, localizado em frente ao Edifício de Exposições.
Dentro da cavernosa Expo, duas pistas concêntricas foram estabelecidas. A pista interna media 1/7 de milha e a externa, 1/6 de milha. As medidas foram certificadas pelo topógrafo da cidade de Chicago. As pistas eram recobertas por uma cobertura vegetal prensada, conhecida na época como tanbark, uma espécie de palhagem.
As portas para a Expo se abriram às 23 horas de sábado do dia 14 de novembro de 1875. Apesar do avançado da hora, entre três e quatro mil pessoas foram assistir à largada sob a penumbra das ruidosas lâmpadas a gás do edifício. À meia-noite, precisamente, Weston e O’ Leary se aproximaram da mesa dos juízes. Weston usava um terno de veludo preto, botas pretas e tinha uma faixa de seda envolta diagonalmente sobre o peito. Na mão direita, carregava um chicote de equitação.
O’ Leary estava vestido mais adequadamente para um evento esportivo: meia-calça branca, camiseta regata listrada, casaco de malha marrom. Usava um tênis leve de caminhada e segurava um pedaço de pau em cada uma das mãos porque acreditava que eles “absorvem o suor e impedem o inchaço das mãos”. Ao longo de sua carreira, O’ Leary desenvolveria o hábito de segurar alguma coisa enquanto caminhava: varas de madeira, espigas de milho, pedaços de marfim. Essa se tornou uma mania tão conhecida quanto as talas de equitação de Weston.
Pouco depois da meia-noite, o prefeito Harvey Doolittle Colvin se dirigiu à multidão. Observando que “o Sr. Weston veio à cidade para competir com um cidadão de Chicago”, garantiu ao público que “[Weston] competia em condições de igualdade”.
O fato de o prefeito ter sido convidado para presidir a abertura da maratona era um indicativo da magnitude do evento, ainda que ele se sentisse um pouco confuso naquela situação. “É estranho estar aqui, pouco depois da meia-noite, para fazer qualquer tipo de negócio”, disse ele. “Como sabemos”, continuou, “o homem que caminhar 500 milhas não terá mais nada a fazer; estará livre para descansar”.
Foram feitos sorteios para determinar a posição de cada um nas pistas. Weston caminharia na pista interna e O’ Leary na externa. Eles ocuparam suas posições na linha de partida em frente aos juízes. O prefeito virou-se para eles. “Você está pronto, Sr. O’ Leary?” “Sim”. “Você está pronto, Sr. Weston?” “Sim”. “Um! Dois! Três!”, gritou o prefeito. A multidão berrava. Os repórteres que cobriam o evento observaram que o imponente relógio da Expo marcava exatamente oito minutos e 19 segundos passados da meia-noite.
A direção em que eles caminhariam não foi predefinida. Nas competições, os maratonistas às vezes caminhavam no sentido horário e, às vezes, no sentido anti-horário. Em alguns casos, os atletas podiam caminhar em ambas as direções, ou mesmo mudar de direção, o que certamente devia causar muita confusão.
Na semana que antecedeu a partida, O’ Leary anunciara sua intenção de percorrer 100 milhas nas primeiras 18 horas de competição, o que correspondia a um ritmo de mais de 5,5 milhas por hora, velocidade nunca atingida antes por qualquer outro maratonista. Era provável que ele estivesse apenas tentando abalar emocionalmente seu oponente. Pouco antes do início da competição, O’ Leary confessou a um repórter que havia “desistido dessa ideia… e iria simplesmente tentar vencer Weston”.
Se foi uma estratégia da parte de O’ Leary, funcionou. Weston ficou convencido de que O’ Leary ficaria exausto antes do fim da disputa. A estratégia de Weston era simples: devagar se vai ao longe, acreditava ele. Seria como na história da lebre e da tartaruga, sendo que Weston desempenharia o papel da tartaruga.
Desde o início, ficou claro que O’ Leary, sete anos mais jovem, era o mais veloz. Ele imediatamente conquistou a liderança, completando a primeira milha em 11 minutos e três segundos. Weston levou cerca de um minuto a mais que O’ Leary para percorrer a primeira milha. Os dois pedestrianistas eram tão diferentes para caminhar quanto para se vestir. De acordo com um observador, O’ Leary caminhava “de forma ereta, os passos rápidos, os braços flexionados”, enquanto Weston parecia mais “se arrastar do que movimentar os pés”. O’ Leary mantinha a cabeça erguida e olhava sempre em frente, enquanto Weston parecia “carregar sua cabeça em cima do peito e não enxergar nada além da poeira diante dele”.
Na tarde de segunda-feira, a Expo estava abarrotada de espectadores. Como não haviam sido montadas arquibancadas para o evento, eles se empurravam para se posicionar próximos das pistas, disputando um bom lugar. Alguns espectadores, para a infelicidade dos atletas, chegavam mesmo a cruzar as pistas de corrida para acompanhar a ação de dentro dos círculos ovais. “A atração irresistível que leva pessoas a lugares inimagináveis nunca foi tão bem retratada quanto nos rostos boquiabertos que permaneciam calmamente no caminho dos atletas”, observou um jornalista do Chicago Tribune. Em diversas ocasiões, a polícia foi acionada para limpar o caminho e dar passagem aos pedestrianistas.
Um grande quadro negro servia para marcar o placar. A pontuação dos maratonistas era atualizada a cada milha percorrida. Uma banda havia sido contratada para entreter o público, e os músicos “tocavam músicas um tanto tristes nos intervalos, ditadas pelo humor dos artistas”. Alguns presentes reclamaram que a música estava muito alta. Um vendedor que torrava amendoins numa das extremidades da arena fez um ótimo negócio e perfumou o espaço com um aroma delicioso.
Ao final do primeiro dia, Weston havia ficado 19 milhas atrás de O’ Leary (110 a 91), mas parecia despreocupado. Ele ainda estava convencido de que O’ Leary ficaria exausto. Ao longo do Campeonato, os competidores dormiam apenas de três a cinco horas por noite nos pequenos quartos reservados a eles na Expo, embora Weston tenha retornado pelo menos uma noite ao seu hotel. Ocasionalmente, os dois homens paravam para fazer refeições – porém, mais frequentemente, eles se alimentavam enquanto caminhavam. Weston optava por bife mal passado, enquanto O’ Leary preferia carne de carneiro e bebericava chá quente ou champanhe.
Apesar de estar perdendo, Weston mantinha o bom humor. No fim da tarde de terça-feira, seu talento para o teatro desabrochou. De acordo com um depoimento, “os gestos, os trechos de músicas, as mímicas de atores e outras brincadeiras que Weston fazia foram muito apreciados pelo público e, aparentemente, também pelo ator”.
Quando os pedestrianistas se recolheram, na terça-feira à noite, O’ Leary tinha acrescentado mais três milhas à sua liderança. Ao final da noite de quarta-feira, sua vantagem havia aumentado para 26 milhas: 273 milhas a 247. Estava claro que O’ Leary não iria se exaurir como Weston esperava. Mas Weston era orgulhoso e teimoso demais para mudar de estratégia ou o modo arrastado de caminhar que, afinal de contas, havia lhe rendido tanto sucesso.
Assim como a liderança de O’ Leary aumentava no decorrer da semana, crescia também o número de pessoas que se reuniam na Expo. Na sexta-feira à noite, o Tribune noticiou que a multidão era “simplesmente enorme”. Em meio aos espectadores, havia dezenas de imigrantes irlandeses explodindo de orgulho e gritando com seu sotaque inconfundível até ficarem roucos, torcendo por O’ Leary. Aqueles que não podiam pagar pelo ingresso de 50 cents recorreram a outros meios para entrar na Expo. Alguns se voluntariaram para vigiar as estátuas de mármore do edifício em troca da entrada gratuita.
No sábado de manhã, já não havia mais dúvidas quanto ao resultado: O’ Leary estava na frente, 425 milhas a 395. A conclusão antecipada, no entanto, não impediu os chicaguenses de se dirigirem para a Expo no dia final da competição. Por volta das três da tarde, havia se formado uma imensa fila para a compra de ingressos. O fato de, àquela altura, os competidores estarem completamente exaustos só deixou o evento ainda mais atraente.
Às sete da noite, “começou uma disputa sem igual”, de acordo o Tribune. A Expo estava “cercada por uma crescente massa de pessoas, ansiosas por adquirir bilhetes. A excitação não poderia ter chegado a um nível maior, e a multidão que cercava o edifício estava quase num delírio selvagem. Às oito horas, a multidão dentro do prédio chegava a cinco mil pessoas. “A aglomeração era densa; as pessoas empurravam-se de lá para cá, gritando, berrando ou torcendo”, noticiou o Tribune. “A multidão era heterogênea, mas muito respeitosa; reunia ricos, pobres, pensadores, ladrões, jogadores e durões”. Havia muitas mulheres, algumas com maridos, outras com amantes, mas todas passaram por momentos de muita aflição em meio à multidão incansável e barulhenta. Batedores de carteira e ladrões “praticavam suas vocações nefastas”. A polícia teve trabalho para controlar a multidão e ficou sobrecarregada em muitas ocasiões com “a massa que tomava conta das pistas”.
Às nove horas, a multidão já contava seis mil pessoas. Dentre elas, havia muitos “operários, os quais trouxeram consigo suas esposas e filhos”. Garotinhos pequenos engatinhavam entre a floresta de pernas de adultos para chegar mais perto da movimentação. Já os garotos mais velhos e aventureiros escalavam os andaimes da Expo e se sentavam nas vigas de madeira próximas ao telhado, a mais de 30 metros acima do chão da arena.
A cada milha percorrida – e na medida em que O’ Leary se aproximava de seu objetivo –, aumentava o frenesi da multidão. Por volta de 22h15, ele completou sua 495ª milha. Usando megafones − amplificadores elétricos só surgiriam cinquenta anos mais tarde −, os locutores informaram à multidão que O’ Leary havia decidido continuar caminhando até a meia-noite, mesmo que atingisse a marca das 500 milhas muito antes desse horário.
O’ Leary completou sua 500ª milha por volta das 23h15. A Expo irrompeu em aplausos efusivos. Exultantes, os homens lançaram seus chapéus aos ares. A banda tocou músicas de comemoração. A mulher de O’ Leary o cumprimentou na linha de chegada, em frente à mesa dos juízes, com uma grande cesta de flores, provocando ainda mais aplausos. Após essa breve pausa, O’ Leary continuou caminhando e, quando os ponteiros do grande relógio da Expo marcaram meia-noite, ele havia completado 503 milhas e duas voltas (o equivalente a 1/3 de milha). Weston havia completado 451 milhas e quatro voltas (o equivalente a 4/7 de milha).
Completamente esgotados, os adversários se cumprimentaram calorosamente e, devagar, deram as últimas voltas na pista juntos, gesto de desportivismo que também foi muito aplaudido. Depois, O’ Leary recebeu uma medalha de ouro maciço que o proclamava campeão mundial. E, então, todos voltaram para casa.
Matthew Algeo
Jornalista, escreve sobre eventos atípicos e curiosos da história americana. O texto foi extraído do livro Pedestrianism: When Watching People Walk Was America’s Favorite Spectator Sport, publicado pela Chicago Review Press em 2014.
Como citar
ALGEO, Matthew. Pedestrianismo. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 7, p. 72-77, jan. 2015.