PEQUENOS
AGRICULTORES
Texto de Miguel Altieri
Vá pra feira, ilustrações de Marina Morelli
Forças globais desafiam a capacidade dos países em desenvolvimento de alimentarem-se a si próprios. Vários países organizam as suas economias ao redor de um setor agrícola competitivo, voltado para a exportação e baseado, sobretudo, em monoculturas. Se é costume dizer que os produtos agrícolas de exportação – como a soja brasileira – trazem uma contribuição significativa para a economia nacional, é sabido, entretanto, que esse tipo de agricultura industrial também gera inúmeros impactos negativos.
A Revolução Verde, por mais que tenha alcançado certo aumento da produção agrícola, provou ser insustentável por seus impactos. A saúde pública, a integridade de ecossistemas locais, a qualidade dos alimentos, a expulsão dos meios tradicionais de subsistência e a consequente aceleração do endividamento de milhares de pequenos agricultores são alguns dos seus impactos. As sementes milagrosas, dependentes de fertilizantes, deixaram um registro trágico na América Latina e na Ásia, onde cresceu a dependência de insumos estrangeiros e a variedade de plantas protegidas por patentes, impedindo o acesso aos pequenos agricultores.
O impulso em direção a uma agricultura industrial globalizada com ênfase em produtos de exportação – ultimamente transgênicos e espécies voltadas para a produção de biocombustíveis tais como a cana-de-açúcar, o milho, a soja ou o eucalipto – está remodelando o fornecimento mundial de alimentos. Paralelamente, vivemos em um contexto de mudanças climáticas que podem afetar fortemente a agricultura, principalmente em zonas tropicais.
Durante séculos, a agricultura nos países em desenvolvimento foi estruturada com os recursos locais da terra e da água e a partir dos saberes tradicionais. Dessa prática resultaram pequenas propriedades com grande diversidade biológica e genética, capazes de produzir uma resiliência que permitiu sua rápida adaptação às mudanças climáticas, pragas e doenças. Ainda hoje, sistemas agrícolas como esse continuam a alimentar muita gente.
Segurança alimentar regional
Enquanto 91% dos 1,5 bilhões de hectares de terras cultiváveis do planeta dedicam-se ao cultivo para agroexportação e biocombustíveis responsáveis por alimentar gado e automóveis, milhões de pequenos agricultores dos países em desenvolvimento cultivam a maior parte dos alimentos básicos necessários para alimentar as populações, urbanas e rurais, em todo o planeta.
Na América Latina, cerca de 17 milhões de pequenas propriedades ocupam 60,5 milhões de hectares ou 34,5% do total de terras cultivadas, produzindo 51% do milho, 61% da batata e 77% do feijão destinados ao consumo doméstico. No Brasil, 85% dos agricultores são pequenos produtores que ocupam 30% das terras agrícolas embora sejam responsáveis pela produção de 84% da mandioca e 67% do feijão consumidos no país.
Pequenos são mais produtivos
Apesar do senso comum propagar que a agricultura familiar é atrasada e pouco produtiva, várias pesquisas demonstram que as pequenas propriedades são mais produtivas do que as grandes propriedades, se consideramos toda a produção de uma única fazenda em vez de considerar a colheita de um único produto. Os sistemas tradicionais de cultivo diversificado fornecem cerca de 20% dos alimentos do mundo. Em tais sistemas, os agricultores produzem, na mesma fazenda, grãos, frutas, vegetais, forragem e produtos animais, frequentemente superando a produção das monoculturas.
Uma grande propriedade pode produzir mais milho por hectare do que uma pequena propriedade na qual o milho é cultivado como parte de uma policultura que também inclui feijão, abóbora, batata, etc. Entretanto, em contextos semelhantes, a colheita total da pequena propriedade é maior do que a da grande, podendo alcançar uma diferença de 20 a 60%. As policulturas reduzem as perdas advindas de espécies daninhas, insetos e doenças graças à presença de múltiplas espécies e ao uso mais eficiente dos recursos disponíveis de água, luz e nutrientes.
Gerenciando menos recursos e de forma mais intensiva, os pequenos agricultores obtêm um lucro maior por unidade de produção, mesmo que a produção por produto seja menor. Nos Estados Unidos, outro fator importante para a boa lucratividade está no fato de que os pequenos agricultores contornam os atravessadores e vendem direto para o público, restaurantes e mercados. Eles também podem obter um melhor preço pelo fato do cultivo ser local e frequentemente orgânico.
Agrobiodiversidade
Muitas das plantas cultivadas pelos pequenos agricultores são variedades crioulas, mais geneticamente heterogêneas do que as variedades modernas, e cultivadas a partir de sementes que passam de geração a geração. As sementes crioulas são mais resistentes e aumentam a segurança da colheita frente às doenças, pragas e secas.
Uma pesquisa mundial sobre a diversidade varietal envolvendo 27 culturas constatou que as propriedades tradicionais de cultivo básico mantêm uma diversidade genética considerável. Na maioria dos casos estudados, os agricultores mantêm a diversidade como garantia contra futuras mudanças ambientais, sociais ou econômicas. Outras pesquisas já haviam concluído que a riqueza de variedades aumenta a produtividade e reduz a inconstância da colheita.
A introdução de espécies transgênicas nas áreas onde há grande diversidade traz a ameaça da substituição de características importantes presentes nas sementes crioulas – resistência à seca, competitividade, performance em sistemas de policultura, qualidade para armazenamento – por traços das sementes transgênicas que, resistentes a herbicidas, não oferecem nenhuma vantagem para os fazendeiros que não utilizam agroquímicos. Sob o risco de perderem a habilidade de produzir colheitas estáveis com poucos recursos externos, os pequenos agricultores podem sofrer impactos sociais consideráveis causados pela poluição genética que gera carência nas colheitas e mudança na integridade genética das variedades locais.
Faz-se urgente proteger as áreas livres da contaminação pelo cultivo geneticamente modificado. Bolsões de diversidade genética, geograficamente isolados de quaisquer possibilidades de fertilização cruzada ou poluição genética de cultivos transgênicos poderão criar “ilhas” de recursos genéticos intactos que servirão como salvaguardas contra a potencial falência ecológica criada pela segunda Revolução Verde que vem sendo imposta.
Mudanças climáticas
Projeções de mudanças climáticas apontam que as regiões nas quais se concentra o maior número de pequenos agricultores, principalmente aquelas que não contam com sistemas de irrigação, serão as mais afetadas. No entanto, os modelos científicos nos dão somente aproximações sobre os efeitos esperados, sem nos mostrar as enormes variabilidades e estratégias internas de adaptação.
Muitas comunidades e propriedades rurais conseguem lidar com extremos climáticos, minimizando as perdas através do uso de variedades locais tolerantes à seca, com sistemas de captação de água, plantios extensivos, policultura, agroflorestas, capinas inteligentes, coleta de plantas silvestres e uma série de outras técnicas vernaculares. Nos agrossistemas tradicionais a prevalência dos sistemas de cultivo complexos e diversificados é a chave para a estabilidade dos agricultores. Arranjos espaciais e temporais diversificados os tornam menos vulneráveis a perdas.
Uma forma interessante para analisar tais resultados é a sobrecolheita – que ocorre quando duas ou mais espécies consorciadas produzem mais do que quando cultivadas sozinhas. Por exemplo, 1 hectare de plantio consorciado de sorgo e amendoim produz mais do que 0,5 hectare de sorgo e 0,5 hectare de amendoim separadamente. É interessante notar que a diferença relativa de produtividade das policulturas sobre as monoculturas fica ainda mais acentuada em situações ambientais desfavoráveis.
Muitos agricultores fazem seus cultivos em sistemas de agrofloresta, de forma que a sombra das árvores protege as plantações contra extremos e situações microclimáticas flutuantes. Os agricultores influenciam o microclima controlando a presença de árvores para reduzir a temperatura, a velocidade do vento, a evaporação e a exposição direta ao sol e interceptar a geada e a chuva. Tecnologias locais frequentemente refletem uma visão de mundo e um entendimento da nossa relação com o ambiente natural que é mais realística e sustentável do que aquelas da tradição ocidental europeia.
Agroecologia e produtividade
Apesar das evidentes vantagens da agricultura em pequena escala tradicional, cientistas especialistas em desenvolvimento e organizações argumentam que a performance é insatisfatória e que se faz essencial a intensificação da produção por meio de agroquímicos e transgênicos visando a transição da produção de subsistência para a comercial. Apesar dos fracassos apresentados nessa abordagem de intensificação, é possível aumentar a produção com adaptações aos sistemas tradicionais de cultivo. Quando princípios ecológicos são usados para redesenhar pequenas propriedades incrementando o ambiente e usando trabalho e recursos locais de forma mais eficiente, promove-se o crescimento de plantas saudáveis, diminui-se o stress das pragas e encoraja-se ou fortalece-se a presença de organismos benéficos.
Em diversos países, um grande número de abordagens agroecológicas e participativas tem apresentado resultados positivos mesmo sob condições ambientais adversas e custos energéticos crescentes. Os resultados incluem um aumento de 50 a 200% na produção de cereais, uma maior estabilidade de produção por meio da diversificação, uma melhoria na dieta e na renda dos agricultores e a conservação dos recursos naturais e da biodiversidade. Tais resultados foram evidenciados em um relatório recente produzido pela Conferência das Nações Unidas sobre comércio e desenvolvimento, no qual se afirma que a agricultura orgânica poderia impulsionar a segurança alimentar na África.
Com base na análise de 114 casos na África, o relatório revela que a conversão de fazendas para a produção orgânica ou semiorgânica poderia aumentar a produtividade em 116%. Além disso, um redirecionamento para sistemas de produção orgânica tem impactos de longo prazo, pois fomenta o capital natural, humano, social e financeiro nas comunidades agrícolas.
Para que as inovações agroecológicas sejam aceitas e implementadas seriam necessárias mudanças fundamentais nas políticas, instituições e abordagens de pesquisa e desenvolvimento. As estratégias agroecológicas devem ter deliberadamente como alvo a população de baixa renda em vez de pensar somente no aumento da produtividade ou na conservação dos recursos naturais. Devem criar empregos, prover acesso a insumos e desenvolver oportunidades de mercado em esquemas locais de comercialização e distribuição, fomentar preços justos e outros mecanismos que liguem mais diretamente os produtores ao resto da população.
É preciso uma transformação mais radical guiada pela consciência de que não é possível promover uma mudança ecológica na agricultura sem que sejam operadas transformações equivalentes nas arenas sociais, políticas, culturais e econômicas, que conformam e determinam a agricultura.
Miguel Altieri
Professor de agroecologia na Universidade da Califórnia, Berkeley.
Como citar
ALTIERI, Miguel. Pequenos agricultores. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 6, p. 45-47, abr. 2013.