PLANTAR NO
RASTRO DA CHUVA
Texto de Heleno Bento de Oliveira
Plantas e ervas medicinais, série de desenhos organizados por Ana Carvalho das mulheres e crianças da Zona da Mata Norte pernambucana: Carmelita Maria da Silva, Helena Tenderini, Ivaneide Maria Ribeiro, Juno Embaubas, Luiza Cavalcante, Malaika Oniilari Tenderini, Maria José da Silva, Nzinga Cavalcante e Vanuze Carmelita da Silva
Neste texto, formulado a partir de conversas com o antropólogo Gabriel Holliver, o agricultor do Seridó Paraibano Heleno Bento conta das plantas e práticas de plantio herdadas de seus antepassados e das técnicas desenvolvidas por ele para seguir cuidando da terra e da biodiversidade no sertão.
Recentemente escrevi na entrada do meu quintal alguns dizeres que, acredito, explicam um pouco o trabalho que venho desenvolvendo: “Sítio Parquetina – Micro-Estação Ecológica São Bento”. Sítio Parquetina foi assim denominado há muitos e muitos anos, desde o tempo de meu pai, José Bento de Oliveira. Denominei “Micro-Estação Ecológica” pela forma com que conservo a terra, o solo, as plantas, as abelhas e os pássaros e dei o nome de São Bento para fazer uma homenagem a meu pai. A microestação faz parte de um trabalho de ecologia, é um pequeno setor dentro de um grande universo que estava devastado e que, até hoje, não tem controle de queimadas ou desmatamentos.
O Sítio Parquetina fica localizado na comunidade Lagoa do Brejinho, a seis quilômetros da sede do município de São José do Sabugi, no Vale do Sabugi, na Paraíba, cravado na região que pertence ao Seridó. A comunidade tem esse nome, Lagoa do Brejinho, por conta de uma lagoa que toda vida existiu, desde os antepassados. Por isso os moradores mais velhos lhe deram este nome.
A região do Seridó foi muito explorada pelo ciclo do algodão. No passado, as famílias viviam exclusivamente do algodão. Havia também outras culturas como milho, feijão, melancia, jerimum – mas a principal fonte era o algodão. Por ser uma monocultura, houve um desgaste muito grande das terras das comunidades daqui. Na época do algodão, a gente plantava quando desmatava e aproveitava, no primeiro ano, para plantar milho e feijão consorciados com o algodão. Só que, a partir do segundo ano em diante, já não plantávamos mais o milho e o feijão junto com o algodão; tínhamos que ter outra área para plantar, porque o algodão cobria tudo e não produzia mais. A gente sempre aumentava o roçado porque a gente cultivava o algodão, mas precisava também das culturas de subsistência para alimentar nossas famílias.
O algodão dava a renda em dinheiro, inclusive deixou muita coisa na região Nordeste. Atribuímos a questão da degradação do ambiente ao algodão, mas não foi o algodão, foi a forma como ele foi trabalhado. Ele até poderia recuperar áreas que hoje estão devastadas, porque é uma árvore que produz muita matéria orgânica, mas a ganância do povo era muito grande. Abriam muitas áreas, queimavam, não tinham cuidado com a terra, e isso acarretou a sua degradação. O algodão era cultivado na região do Seridó desde os índios, o algodão mocó, que mais tarde passou a ser chamado de algodão arbóreo. Foi quando as empresas inglesas se interessaram pela sua lã, resistente e de um branco muito intenso. Então veio a se propagar o plantio em grande escala, porque as empresas ofereciam para os proprietários, que eram mais abastecidos financeiramente.
No tempo do meu pai, chegou uma época em que as terras ficaram tão fracas que foi preciso a gente arrendar terra no Rio Grande do Norte, nosso estado vizinho, para poder plantar milho, melancia, jerimum e feijão, porque as terras só davam algodão e ainda não produziam o suficiente, era pouco. Meu pai não era daqui, era de Esperança, uma cidade do brejo paraibano, próximo a Campina Grande. Quando ele chegou aqui, veio atraído pela força do algodão. O algodão era muito forte e seguiu assim até próximo aos anos 1990, quando teve seu final por conta do aparecimento do bicudo, uma praga que atacava com força seu ciclo de floração. As famílias foram procurando outras maneiras de sobrevivência, procuraram plantar só milho e feijão, mas as terras estavam fracas. Poucas pessoas resistiram plantando, muitas migraram para a cidade. Foi aí que eu vi que precisava fazer alguma coisa para melhorar as terras.
Se o algodão era uma fonte de renda para os recursos financeiros, as plantas de subsistência – as culturas de milho, feijão, jerimum e melancia – eram a segurança alimentar de nossas famílias camponesas. Então, ainda naquela época, mesmo plantando algodão, reservávamos alguma parte da terra para esse plantio de subsistência. Até hoje, continuamos com esse sistema de plantar o milho, o feijão, o jerimum e a melancia, e ano nenhum eu deixo de botar a minha roça!
Plantamos as culturas de subsistência logo nas primeiras chuvas. Temos muita pressa em botar as sementes no chão para que elas germinem o mais rápido possível. O agricultor camponês costuma dizer que “planta no rastro da chuva”. Choveu no dia, no outro dia já estamos plantando. O período de chuva da gente é de janeiro em diante, quando começam a cair as primeiras águas. Nossa região não é uma região de abundância de chuvas. Se acontecer de chover em janeiro, fevereiro e março, já é o suficiente para que a gente tenha uma colheita. Se a gente demorar para plantar, perder um mês de inverno esperando por alguma coisa, pode ser que a gente veja a lavoura crescer, mas, na hora de ela florir e frutificar, vai faltar inverno. O nosso período de inverno é curto, se chover em janeiro ele vai, no máximo, até abril. Em maio já quase não temos chuvas para a colheita e o plantio.
As espécies de milho que a gente trabalha são de milho crioulo. As famílias vêm conservando essas sementes desde os seus antepassados, dos pais e avós. É um milho muito adaptado à nossa região, à nossa terra, ao nosso clima. Um milho que cresce em um tamanho normal e produz bem, tanto para grão quanto para forragem. Pois quando plantamos, não pensamos só no consumo humano, a gente pensa também no consumo dos animais. Ele tem essa grande vantagem de também servir de alimento para as criações.
Existem várias qualidades de milho. Quando o milho é bom para massa, é bom para comida de milho – pamonha, canjica ou bolo –, mas tem também milho que dá pouca massa e dá mais xerém. Tem o milho alho, o milho branco, o milho pingoró, bem vermelhinho, o milho jabatão. Do jabatão perdemos a semente… Perdemos também, devido às secas, a do milho aracajú, outra semente que era muito boa. Ficou esse milho que não tem um nome específico, que a gente conhece como semente crioula.
Dois fatores contribuíram para que perdêssemos também algumas variedades de feijão que tínhamos no passado: os períodos muito prolongados de estiagem, provocados pelas mudanças climáticas, e também o comércio com o poder econômico, que faz com que as pessoas façam a seleção de feijão para que fique um feijão padronizado, de apenas um tipo. Muito embora, quando havia mais variedades de feijão, ele fosse mais saboroso para o consumo. Temos ainda dois tipos de feijão: o feijão tardão e o feijão ligeiro. O que seria o feijão ligeiro? Ele tem um ciclo de vida mais curto e produz mais rápido, enquanto o feijão tardão tem um ciclo de vida bem mais longo, produzindo enquanto se mantém a umidade no solo.
Lembro que, dentre as variedades de feijão, tínhamos o feijão manteiga, o feijão pingo d’água, o feijão garanjão, o costela de vaca, o cancão, o pitiúba, o roxo. Este último foi extinto por causa do comércio, porque não deixava uma cor muito bonita no feijão nem dava tanto, mas ele era mais resistente ao manhoso. O feijão também se distribui pelos feijões de arranca, que incluem o carioquinha, o gordo, o mulatinho e a fava. Tem a fava branca, a orelha de vovó, o coxinho. Tem uma fava que tem cor vinho… Era uma variedade de tipos de feijão e de fava muito grande, mas nos períodos de estiagem o comércio fez com que fossem se perdendo. Durante os períodos contínuos de estiagem, não tínhamos como colher novas sementes, e as sementes que guardávamos perdiam o teor de germinação e não podiam mais ser replantadas. A gente sempre fazia por onde plantar e colher para ter feijão durante o ano inteiro. Devido às estiagens, muitas famílias procuraram outra fonte de renda e os que plantam já não plantam mais o suficiente para o ano inteiro: precisam comprar feijão. Não são todas as famílias, mas algumas ainda colhem feijão que dá para o ano todo.
As técnicas que venho desenvolvendo, algumas foram experiências adquiridas com meu pai e, outras, diante da necessidade, comecei a desenvolver eu mesmo. Por exemplo, a questão da erosão deixada pelo ciclo do algodão: fui fazendo o que chamo de “barraginha de pedra seca”. Em todo córrego, que a gente chama de barroca, tem essas barraginhas. Também tem a questão de não tirar a vegetação que fica à margem dos córregos e que eu venho conservando. Diminuir o cultivo das terras com arado puxado por boi, usar uma cobertura morta, adubar a terra com estrume do curral e procurar fazer o que chamam de “manejo rotativo”: plantar um ano num local, deixar descansar, plantar noutro. Também fui plantando a planta do sisal onde corria água, pois o sisal tem a função de reter a terra, de não deixar ela ir embora. É uma planta que tem a raiz bem fina e é como um tecido que retém a terra e facilita a infiltração da água.
Existia na nossa região grande quantidade de uma árvore com o nome de baraúna. Por seu crescimento ser lento, apesar de ser uma planta muito resistente foram desmatando até que ela ficou extinta. A baraúna tinha poder curativo, sua casca servia para curar várias doenças. Outra planta que gosto muito é a quixabeira, porque, além da fruta ser muito boa, ela é medicinal. Infelizmente, a quixabeira também foi destruída. Já o jucá, apesar de ter regiões onde tem mais, aqui para nós é muito pouco. Tem o quebra-faca, uma planta de um porte pequeno como um marmeleiro, mas que é bem resistente e por isso tem esse nome. Se você vir um galho fino e tentar cortá-lo com a faca, vai quebrar a faca e não vai conseguir cortar, devido à sua resistência. É uma planta muito cheirosa, sua casca exala um perfume muito forte, e ela também é medicinal. Se eu for falar de plantas que existiam em grande quantidade em nossa região e não existem mais, são muitas…
Minha preocupação é essa: onde é derrubada uma mata nativa, são derrubadas vegetações que têm ciclos de vida muito lentos. Hoje é raro ver um pé de embiratanha, de cumaru, e também daquilo que o pessoal chama de emburana de cheiro. Com muito trabalho, consegui uma muda de jucá e agora tenho um jucá aqui, e num outro terreno que meu pai deixou, aqui próximo, tem um pé de jucá bem antigo. Tem também mulungu, cumaru e embiratanha, que solta umas cabacinhas. Tenho bastante aroeira, angico, catingueira, feijão brabo, aveloz – tanto aqui como no outro terreno. No outro tem até mais aveloz do que aqui, porque vem desde meu pai. Tem também bastante agave, tem gravatá, que é uma planta silvestre, mas eu planto como ornamental. Tenho aqui em casa e é bastante bonita – pelo menos eu acho. Costumo dizer que a gente tem um olhar diferente para os recursos que temos. Se a gente olha com outro olhar, o que é feio se torna bonito.
Tenho grande zelo pelos angicos que vêm desde meu pai, que ele chamava de “maloca de angico”. Na época do algodão, a madeira era difícil porque tinha se desmatado toda a terra. Meu pai conservava esses angicos para, quando precisasse de alguma madeira, ter de onde tirar. E ele nunca cortava totalmente. Se um pé de árvore tem duas galhas, ele tirava uma e deixava a outra. Então segui esse mesmo roteiro que meu pai fazia, conservei e tenho os angicos até hoje.
Quando chegou o tempo de eu construir minha casa, fiz perto de um juazeiro muito antigo. Meu pai pediu para que eu fizesse a casa, mas que nunca botasse o juazeiro abaixo porque era de uma sombra muito boa e era fonte de alimento para as cabras. No sertão, o juazeiro é a única árvore que passa o período de estiagem todinho com folhas. Quando suas folhas caem, já é aproximadamente o fim do ano, e elas logo brotam novamente. Nas primeiras chuvas, ele floresce. Inclusive, no último ano ele deu muita flor, carregou muito bem, e é uma boa experiência para prever como vai ser a chuva do inverno.
Na minha terra tem também um umbuzeiro que considero um dos mais velhos da região. Não vou dizer que é o mais velho, porque seria impossível dizer que uma planta que não vi nascer é a mais velha. Mas pela história que contam os antepassados, as pessoas mais velhas que o conheceram há muitos anos, ele é um dos mais antigos. Abdias, que faleceu há mais de trinta anos, sempre me dizia que, quando tinha de dez a doze anos de idade e vinha soltar os animais do pai dele aqui nessas terras, o umbuzeiro já era muito antigo, já existia um buraco na haste do umbuzeiro onde deixavam um caneco para tomar água na loca de uma pedra que ficava retendo água. Quando Abdias faleceu, ele já tinha noventa e seis anos. Então, se a gente calcular o tempo desde que ele nasceu até hoje, já se passaram mais de cento e trinta anos!
A forma como eu analiso é assim: tenho conhecimento de um umbuzeiro que plantei e que hoje está com quarenta anos, mas sei que não chega nem perto de ser um umbuzeiro adulto. Imagine um umbuzeiro velho como falou o Abdias? Se for juntar o quebra-cabeça, se ele dizia que o umbuzeiro era tão antigo e já tinha haste trocada naquele tempo, vejo um umbuzeiro de quarenta anos e posso dizer que é muito jovem; posso calcular que aquele é muito antigo.
E não é só ele, não, aqui na região tem outros umbuzeiros que têm uma vida muito antiga. Há um umbuzeiro que é conhecido como “umbuzeiro da onça”, porque, na época que existiam onças aqui na região, elas pastoreavam a criação de bode para pegar as criações no umbuzeiro. Aí as pessoas da época deram o nome de “umbuzeiro da onça” e o nome ficou até hoje. Aqui, fui conservando os que iam nascendo e hoje tenho em torno de setenta umbuzeiros – é bastante se você considerar que a terra onde moro só tem três hectares. Como costumo dizer, grande aqui é apenas a vontade de permanecer na terra.
O umbuzeiro pode ser considerado um símbolo do homem nordestino. Foi ele quem nos ensinou a fazer as cisternas. O umbuzeiro é o ser vivo que primeiro criou cisternas no mundo para armazenar água para sua subsistência no período de seca. Suas cisternas são aquelas batatas que ficam cheias d’água para florir e frutificar no período seco. O umbuzeiro floresce mesmo sem ter uma gota d’água na terra, porque em sua cisterna tem água.
Também tenho muitos cactos, e de vez em quando até esqueço o nome das espécies, porque é bastante mesmo. Tem as palmas, que são uma fonte de alimento para o gado no verão, que aqui é um período mais longo que o período de inverno. Tenho uma variedade delas: a orelha de onça, a gigante, a gigante mexicana; agora tenho também a orelha de elefante, tenho a palma doce – que chamamos de mão de moça porque não tem pelo, é uma palma lisa. Tem também a palma doce miudinha, que tem bastante espinhos; trouxe ela quando fui visitar a sede do Instituto Nacional do Semiárido (INSA). Temos o xique-xique e o mandacaru, que são também uma reserva.
Além da boniteza, a gente deixa para aqueles períodos mais críticos de nossa região, quando há as grandes estiagens, anos contínuos de seca. O espinho dessas plantas é queimado e é oferecido como ração para o gado. É uma fonte de energia muito boa, muito vitaminada. Mesmo sendo uma planta silvestre, se a gente fizer um manuseio direitinho, cortar sem a intenção de destruir a planta mãe, ela rebrota e, em outros anos de seca, a gente tem novamente essa fonte de alimentação para o gado.
Tem também os cactos ornamentais, que planto somente porque acho bonito, só por enfeite. Cacto amendoim, cacto americano, o facheiro, a flor de frade, também muito conhecida no sertão nordestino… Tenho esse amor pelos cactos só pela boniteza. Com o tempo, fui adquirindo muitos cactos, os amigos foram me presenteando. Quando a gente tem amor pelas plantas, aparecem pessoas que têm a mesma simpatia, muitas vezes fazem uma troca e surge até uma amizade. As plantas têm esse poder de fazer amizade entre uma pessoa e outra.
Há pessoas que parecem agricultores em todos os aspectos, que, se você olhar, dirá que é um agricultor. Mas se essas pessoas plantam apenas com o fim de colher para ganhar dinheiro, elas são é “microagronegócio”. A terra delas não é um espaço de sobrevivência, é um espaço comercial. O agricultor velho de verdade planta por prazer.
Heleno Bento de Oliveira
Agricultor, vive na comunidade de Lagoa de Brejinho, município de São José do Sabugí (PB).
Mulheres da Mata Norte pernambucana
Grupo de trabalho composto por Carmelita Maria da Silva, Helena Tenderini, Ivaneide Maria Ribeiro, Juno Embaubas, Luiza Cavalcante, Malaika Oniilari Tenderini, Maria José da Silva e Nzinga Cavalcante, Vanuze Carmelita da Silva. Produziram desenhos para o Caderno de plantas e ervas medicinais, disponível em selvagemciclo.com.br/cadernos.
Como citar
OLIVEIRA, Heleno Bento de. Plantar no rastro da chuva. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, edição especial Vegetalidades, p. 98-103, set. 2023.
Esta edição especial da revista foi produzida colaborativamente pelos editores Felipe Carnevalli, Fernanda Regaldo, Paula Lobato, Renata Marquez e Wellington Cançado e pelas editoras convidadas Anai Vera, Bianca Chizzolini e Karen Shiratori.