PODER
ILUSTRADO
Texto de Lila Gaudêncio
Estudos para o Cruzeiro, Aloísio Magalhães
Quem você gostaria que estampasse a nota de vinte reais? Num percurso pelo design do dinheiro no Brasil, as notas se afirmam enquanto espaço potencial para a construção de referências simbólicas da nação.
Em 20 de abril de 2016, o Departamento do Tesouro dos Estados Unidos anunciou um histórico redesenho do Dólar ao incluir representações de líderes de movimentos sociais ligados aos direitos civis e humanos. Harriet Tubman, Susan B. Anthony, Elizabeth Cady Stanton, Lucretia Mott, Alice Paul, Sojourner Truth, Marian Anderson, Eleanor Roosevelt e Martin Luther King Jr. são as nove novas personalidades que em 2020 passarão a integrar anversos e reversos das cédulas de cinco, dez e vinte dólares.
Além das novas efígies, que capturam uma identidade nacional multiétnica e multicultural, as novas notas trarão retratos de eventos históricos importantes, como a marcha de 1913 pelo sufrágio feminino e a ressignificação do Memorial Lincoln – já na cédula de cinco dólares –, agora destacado não como monumento, mas como palco tanto do recital lírico de Marian Anderson contra o racismo, em 1939, quanto do histórico discurso de Martin Luther King, 24 anos depois.
Essas definições resultaram de dez meses de discussões e consultas públicas, iniciadas após o ex-secretário do Tesouro Jacob Lew convidar a população a participar da seleção de novas efígies. Imediatamente cidadãos se organizaram para encabeçar a escolha, em campanhas por opções mais representativas no dinheiro. Criou-se, assim, uma série de petições públicas nas redes sociais e votações monitoradas por Washington a partir de hashtags como “#TheNew10”.
O Departamento do Tesouro dos EUA aponta, em sua justificativa para o redesenho das cédulas, que a moeda é uma afirmação sobre como o país se coloca como uma nação e, mais importante, sobre como o dinheiro moderno “honra a história” e “celebra valores”. De fato, o dinheiro sempre reteve um forte papel de representação cultural e identitária, em que as historicidades retratadas refletem culturas nacionais sob uma ótica achatadora. Esse é o aspecto mais curioso do fenômeno da recente mobilização numismática na sociedade americana: questões antes abafadas assumem um lugar central e restauram uma percepção de como deslocamentos simbólicos interferem nas formas de pensar não só o dinheiro, mas a própria identidade nacional.
Há um ponto crucial no quesito de representatividade nas cédulas monetárias. A imagem ali é uma forma de poder ilustrado. É nessa perspectiva que é possível entender a preciosidade do movimento contemporâneo do redesenho do Dólar. Quando Harriet Tubman, mulher e abolicionista, e outras oito figuras historicamente à margem da memória norte-americana ocupam notas, elas ocupam posições de poder. Elas potencializam a possibilidade de deslocamento – e de abertura – do discurso social, realinhando, assim, símbolos e valores nacionais, a partir de uma simples mudança gráfica pautada pela representatividade.
Dois meses depois do anúncio do governo americano, o jornal Folha de S. Paulo, impulsionado pela mobilização gerada em torno do novo Dólar, lançou uma enquete nas redes sociais cuja pergunta era “que mulher você gostaria que estampasse a nota de R$ 20?”. Entre dez candidatas – incluindo Chiquinha Gonzaga, Pagu, Tarsila do Amaral e Zilda Arns –, a Princesa Isabel ganhou com 22% dos votos, seguida por Clarice Lispector, com 17% e Hebe Camargo, com 13%. Independentemente do resultado, há algo de precioso nos cerca de 7.500 comentários, problematizando questões de sub-representação e, em última instância, de qual figura realmente reflete uma memória popular e nacional.
Curiosamente, dentro do processo brasileiro de reformulação do Real, que ocorreu há sete anos, essa rubrica foi desconsiderada. Em 2010, o Banco Central lançou, junto com as novas notas de 100 e 50 reais, a cartilha de treinamento Segunda família do real, que evidencia que o único motivo da mudança teriam sido os avanços das tecnologias digitais e, consequentemente, a necessidade de “dotar as nossas cédulas de recursos gráficos e de elementos antifalsificação mais modernos, capazes de continuar garantindo a segurança do dinheiro brasileiro no futuro”. Um futuro que desconsidera quaisquer transformações contemporâneas da identidade nacional e os anseios por representação.
Uma possível participação popular, como ocorreu nos EUA, foi descartada pelo Banco Central, pois “isso demandaria muito tempo e recursos para que se desenvolvessem propostas igualmente factíveis e eficientes em termos dos requisitos de segurança e manuseio”. Embora o valor simbólico da cédula circule por toda uma nação, sua criação e sua aprovação ficam ainda restritas a uma cúpula de doze pessoas: a Diretoria Colegiada do Banco Central e o Conselho Monetário Nacional.
Olhando em retrospectiva, fica evidente como a cultura brasileira é resumida e aplainada nas moedas nacionais, refletindo uma representação – salvo pouquíssimas exceções ao longo da história – da cultura hegemônica. Apesar de o Real trazer figuras e imagens isentas em relação aos vultos históricos, tanto a efígie da República no anverso quanto a fauna retratada no reverso mostram uma posição conservadora e desatenta às condições contemporâneas da identidade nacional. Em teoria, a cultura é de todos, mas, em termos práticos e de representatividade gráfica, isto não ocorre. Sob uma ótica histórica, é possível traçar o percurso dessas brasilidades menosprezadas no desenho do dinheiro.
Por 300 anos, a Coroa portuguesa proibiu qualquer atividade impressora no Brasil Colônia. Somente com a chegada da família real em 1808 foi criada a Impressão Régia, a partir de máquinas tipográficas inglesas trazidas por Dom João VI. Assim, nas primeiras décadas do século XIX, os recursos técnicos disponíveis limitavam-se à tipografia de chumbo, criando uma dependência em relação à produção e à impressão dos Réis brasileiros.
Apesar de a trajetória do papel-moeda no Brasil ser irregular, oscilando entre uma produção nacional e uma terceirização estrangeira, as primeiras cédulas de réis foram impressas pelo Tesouro Nacional e, conhecidas como “troco do cobre”, circularam em 1833 na Província do Ceará. Contudo, por serem assinadas individualmente por uma autoridade local, eram vulneráveis a falsificações e, apenas dois anos depois, começaram a ser substituídas por réis produzidos na Inglaterra e nos Estados Unidos; tradição que seguiu, salvo curtos períodos, até 1966.
Essa terceirização afastou a possibilidade de narrativas tipicamente nacionais nas notas. Em Uma etnografia do dinheiro, o professor e ex-projetista da Casa da Moeda Amaury Fernandes da Silva Junior conta que foi a partir de 1857 que os bancos particulares passaram a dividir a tarefa de emitir cédulas com o Tesouro Nacional. Os órgãos autorizados solicitavam a tradicionais fornecedores a criação das notas: a estadunidense American Bank Note e a inglesa Thomas de La Rue. Elas eram também as principais fornecedoras de projetos gráficos – “oferecidos” como parte do contrato. As notas tinham um leiaute genérico, criado por casas impressoras que abasteciam vários países da América Latina, África e Ásia, e as estruturas visuais desenvolvidas eram muito semelhantes – as poucas variações sendo apenas efígies e vinhetas. Em suma, os profissionais que tomavam essas decisões eram alheios à realidade do país e muito pouco de sua cultura visual constava nessa forma de representação oficial.
Exatamente 44 anos antes do início do ciclo ininterrupto de cédulas projetadas e produzidas no Brasil, a Semana de Arte Moderna lança a questão da identidade nacional, provocada pela frase síntese “tupy or not tupy”. Embora as obras gráficas vinculadas ao grupo modernista fossem um exercício de liberdade e de experimentações com temas nacionais, as notas de réis ainda permaneceriam sob uma periódica produção americana e o modernismo só chegaria ao dinheiro brasileiro nos anos 1960 com o designer pernambucano Aloísio Magalhães.
Ainda assim, em 1942, Getúlio Vargas realizaria a reforma monetária pretendida por seu antecessor, Washington Luís, decretando o Cruzeiro como a nova moeda brasileira. De acordo com o numismata Cláudio Amato, no momento da reforma havia em circulação 56 tipos diferentes de cédulas alternativas, que perderam totalmente o valor até 1955. Com essa ação uniformizadora, é a partir do Cruzeiro que narrativas da “cultura nacional” (formas simbólicas que constroem socialmente uma visão específica redutora de cultura) começam a ser utilizadas de forma mais evidente no papel-moeda.
Essas construções se intensificam consideravelmente a partir de 1964 devido às políticas culturais do período ditatorial. Retomando Renato Ortiz, o regime militar, partindo do pensamento autoritário, trabalha uma noção de integração “coordenando” diferenças e focando os chamados Objetivos Nacionais – um destes objetivos sendo um novo papel-moeda, criado, produzido e impresso no Brasil.
Nesse processo de nacionalização da produção do dinheiro – e novo rearranjo da cultura visual brasileira –, a ditadura promove um concurso fechado entre profissionais de artes gráficas, entre os quais estavam os designers Aloísio Magalhães, Gustavo Goebel Weyne e Ludovico Martino. Os projetos foram julgados por uma comissão formada pelo diretor da Escola Superior de Desenho Industrial da UERJ, pelo crítico de arte Flávio de Aquino, pelo embaixador Wladimir Murtinho, por um gravador da Casa da Moeda e por um representante do Banco Central.
O designer João de Souza Leite, um dos principais colaboradores de Aloísio Magalhães e consultor da Casa da Moeda, conta que o concurso foi o primeiro passo de um processo progressivo e gradual que visava a uma autonomia na produção completa – como de desenho e confecção de matrizes de impressão – da moeda brasileira. Com a proposta vencedora de Aloísio, por quatro votos contra um, inicia-se um processo detalhado de pesquisa que durou três anos e culminou numa mudança radical e pioneira de um papel-moeda modernista.
Embora ainda houvesse uma dependência no desenvolvimento das chapas de impressão – feitas na Inglaterra –, com o reequipamento da Casa da Moeda. O Brasil de fato conseguiu certa emancipação em termos de criação original e impressão monetária. João Leite coloca que, como a principal preocupação do governo era a falsificação com os processos de impressão sendo o tradicional offset, a gravura em talho-doce e a tipografia, a base do processo de criação do Cruzeiro Novo era criar empecilhos para a reprodução fotográfica. Em vista disso, Aloísio valeu-se do moiré, cuja sobreposição de retículas provoca certa inexatidão; uma reprodução exata sendo quase impossível e economicamente inviável.
Contudo, talvez mais interessante do que essas soluções técnicas sejam as perspectivas que o designer pernambucano tinha sobre a cédula monetária. Amaury Silva comenta que Aloísio acreditava na função modernizante do design e em suas ações potentes dentro da esfera cultural – como elemento transformador. Ao tratar a cédula como um objeto de comunicação – “o objeto de maior comunicação do país” –, ele também entendia como a modificação dos aspectos visuais da cédula tocava a formação de uma identidade nacional, a nota sendo, afinal, um espaço privilegiado para a construção de referências simbólicas.
A inovação visual dos novos padrões desenvolvidos, no entanto, não foi acompanhada pela mudança dos personagens representados. Houve somente uma exceção, lançada em 1972: a nota comemorativa de 500 cruzeiros. Nela, Aloísio tenta amenizar a pergunta base de seu trabalho: por que é que um produto brasileiro não tem uma cara brasileira e não se relaciona com as suas referências? A nota comemorativa, ao trazer uma sequência de cinco imagens de pessoas anônimas, todas de raças diferentes, recorre a uma iconografia que valorizaria a formação étnica do povo brasileiro e romperia com o conceito tradicional do design numismático até então.
Entretanto, a cédula teve uma leitura negativa pelo americano Thomas Skidmore, que viu o que pode ser lido como uma linha de “evolução” retratada na nota uma conotação racista. Aloísio rebateu: “Por que o professor americano não foi capaz de ler o que todos nós lemos? […] Que outra nação usou com naturalidade sua formação étnica em objeto de comunicação tão amplo como o seu próprio papel-moeda?”. Essa diversidade mostrou-se presente somente na polêmica cédula especial, já que o grupo de personagens contemplados historicamente no dinheiro brasileiro é quase sempre composto por próceres da história.
Com o fim das notas produzidas pelo pernambucano e, mais significativo, com o fim da ditadura militar e o início do período de redemocratização, há uma perceptível mudança no padrão de escolha das personalidades homenageadas – já em outra moeda, o Cruzado. Artistas, escritores, cientistas e educadores passam a ocupar os anversos, com reversos trazendo a cultura em seu sentido antropológico: claros contrastes de formas discursivas e construções de brasilidades, de acordo com os governos vigentes.
O período inflacionário pelo qual o país passou no final do século passado provocou alterações na concepção e no desenvolvimento de cédulas. Em meio ao caos da instabilidade econômica, as cédulas produzidas se aproximavam mais da retratação de uma memória coletiva. O Cruzeiro Real, em particular, com regionalismos destacados, é um lapso fortuito. Cabe aqui retomar a pesquisa de Amaury Silva que, ao resgatar aspectos da produção da cultura monetária brasileira pós-1985, descreve esse processo de criação. De acordo com o ex-projetista, a ruptura com efígies de personalidades se deu pela simples falta de tempo.
No final de 1992, em função dos índices de inflação, há outra troca de padrão monetário, com novas emissões. Como o Banco Central havia tido problemas recentes com familiares de homenageados e por uma falta de tempo para negociações – o que geraria problemas para o abastecimento do meio circulante – decidiu-se utilizar “tipos regionais”. Segundo Amaury, “os depoimentos relatam que há preocupação de que as imagens não recebam um tratamento estereotipado, de que tenham ligações visuais com atividades econômicas, e que possam render boas composições visuais nas cédulas”. Com isso foram desenvolvidos três projetos bastante interessantes: o Gaúcho, a Baiana e a Rendeira. No Cruzeiro Real não há margem de interpretação visual, os elementos do discurso curiosamente se empenhando nos aspectos multiculturais da cultura brasileira, focando no que podemos chamar de dois dos cinco brasis de Darcy Ribeiro: o sulino e o crioulo.
Houve no Cruzeiro Real a possibilidade – como no novo Dólar – de um deslocamento de poder com a conversão de patrimônios simbólicos populares em formas “oficiais” de cultura; retratos da multidão. Não são irrelevantes os dois brasis retratados naquela moeda, fazendo reconhecer e circular um bem cultural (quase sempre) restrito à classe dominante: processo interrompido pelo Real.
Ocorre nesse período uma profunda alteração de caráter representativo, causada por absurdos prazos de execução – reduzidos a poucos meses – resultando em concepções comprometidas, já que “as fases da pesquisa iconográfica, escolha dos elementos visuais e feitura de esboços precisam ser realizadas em prazos menores que os anteriormente utilizados”. Essa “preparação para o caos”, como o ex-projetista nomeia o período de transição, é regida, portanto, por uma “solução” encontrada pelos órgãos monetários de reaproveitar recursos já prontos, como gravados de talho-doce, rosáceas e fundos de segurança não usados em outras emissões, disparando novamente, após décadas, um campo visual sem significado específico.
No dia 10 de janeiro de 1994 fui chamado no Gabinete do Meio Circulante, no centro da cidade, onde recebi essas incumbências e aí não nos restou alternativa a não ser utilizar desenhos notórios de fácil percepção e fixação pelo público e, mais do que isso, usar coisas já gravadas em outras ocasiões pregressas porque eu não teria tempo de fazer gravuras manuais. […] A decisão foi: a Efígie da República, que já estava gravada desde 1989, e os reversos seriam animais da fauna brasileira, sem guardar nenhum compromisso com estar em extinção ou não estar em extinção”.
O depoimento de Carlos Roberto de Oliveira, então Diretor Técnico da Casa da Moeda e Superintendente do Departamento de Matrizes, sintetiza o processo criativo do Real, executado em seis meses. As “incumbências” citadas por ele envolviam, dentre as decisões gráficas, a superstição de que a manutenção do padrão visual teria um impacto psicológico negativo na população. Ou seja, seria preciso realizar uma troca gráfica que agisse como uma “descontaminação” da percepção dos signos prévios de valor, eliminando qualquer elo visual da memória inflacionária.
Amaury Silva coloca que “nessa estratégia muitos pontos importantes são sacrificados para, além de permitir a concepção de projetos e gravação dos leitos em prazos bem mais curtos, viabilizar uma configuração de matrizes”. Assim como no Cruzeiro Real, um desses pontos são precisamente as efígies historiográficas. Com meses para finalizar o Real, entendeu-se que não seria “prudente” arriscar a produção com possíveis desentendimentos e vetos de familiares à utilização das imagens, prejudicando o lançamento do novo papel moeda. Esse receio da Casa da Moeda inviabilizava a escolha de personalidades do século XX, cujos direitos de uso ainda não estavam em domínio público. Contudo, os tradicionais vultos históricos também foram desconsiderados pelas “dificuldades técnicas” envolvidas e a única forma humana mantida nos anversos foi o busto da República.
Personificação do regime republicano, essa imagem francesa reutilizada como alegoria e baseada numa peça escultórica pertencente ao acervo da Casa da Moeda traz, na coroa de louros e no barrete frígio, elementos simbólicos representantes dos conceitos de liberdade, igualdade e fraternidade. Desde a proclamação da República, em 1889, até meados da década de 1920, há uma forte proliferação dessa imagem feminina representativa da nova nação: houve um total de cinco Repúblicas distintas num período médio de 25 anos. Entretanto, ao preterir as figuras brasileiras e optar por um símbolo “universal” num dos maiores objetos de comunicação do país, o governo recria uma antiga relação distanciada entre o cidadão e sua república simbolicamente vazia. Aqui, Amaury aponta que “dá-se um passo rumo a uma internacionalização do imaginário presente no papel-moeda brasileiro”. Se nos padrões monetários anteriores havia uma série de significações que somente poderiam ser compreendidas integralmente por brasileiros ou conhecedores da cultura, a leitura quase universal do Real retira essa exclusividade, achatando especificidades nacionais e esvaziando identidades distintas.
O aspecto mais problemático nas cédulas do Real, logo, está nesse caráter homogeneizador do significado dessa representação, que quebra características de brasilidade presentes em cédulas anteriores. É interessante ressaltar como os animais também remetem a uma leitura desnacionalizante do Brasil. A seleção da fauna do Real – tendo como única restrição os 25 animais do jogo do bicho – desconsidera o fato de estes apresentarem um habitat natural que não se restringe ao território brasileiro. Ou seja, entre beija-flor, tartaruga marinha, garça, arara vermelha, mico-leão-dourado, onça e garoupa, apenas o mico é uma espécie endêmica do Brasil – exclusivamente pertencente à fauna nacional.
As escolhas foram motivadas por quesitos técnicos, como a aplicação da cor real do animal na cédula, mas também, de acordo com Amaury, por razões pessoais. “Há relatos de que o peixe inicialmente escolhido para a cédula de 100 reais era da espécie Tucunaré, mas uma solicitação direta de um membro do primeiro escalão do governo promove sua permuta pela garoupa; a autoridade solicita a alteração por praticar a pesca esportiva e por considerar a garoupa um dos maiores troféus da atividade”.
Fica evidente o caráter conservador e prático das restrições, assim como suas consequências sobre o “retrato do país” obtido nas cédulas. Questionada sobre a construção de um imaginário que reforce determinada identidade de interesse oficial, a projetista Thereza Fidalgo respondeu em entrevista a Amaury que “a identidade é uma coisa política”, abrindo assim a interpretação sobre quais critérios e instâncias decisórias de fato determinaram o tema, as efígies e os demais elementos visuais das cédulas. Assim, apesar da preocupação de muitos funcionários de criação da Casa em retratar visualmente no papel-moeda aquilo que melhor reflete o discurso dos “próprios brasileiros sobre a brasilidade”, essa concepção é visivelmente abandonada no Real – tanto na primeira quanto na sua segunda versão.
Tratar o dinheiro como objeto de design traz outra perspectiva para o papel-moeda, que se torna, mais do que representação de valor, expressão de aspectos culturais, políticos e sociais. Diferentes visões de brasilidades – populares ou elitistas – fazem da cédula um espaço de construção de narrativas da identidade nacional. Esse espaço é algo que precisa ser ocupado, ao menos enquanto o dinheiro impresso continuar a existir.
Lila Gaudêncio
Artista gráfica, pesquisadora e curadora, realizou a pesquisa Identidades Suspensas, que baseia o artigo publicado nesta edição.
Aloísio Magalhães
Pintor, designer, gravador, cenógrafo e figurinista, foi um dos fundadores da Escola Superior de Desenho Industrial, no Rio de Janeiro, e diretor do IPHAN.
Como citar
GAUDÊNCIO, Lila. Poder ilustrado. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 10, p. 76-83, mai. 2017.