POÉTICAS DA
REGENERAÇÃO
Texto de Renato Sztutman
Nada que é dourado permanece, obra de Denilson Baniwa, fotografada por Isabella Matheus
Em sua análise da obra do artista Denilson Baniwa, Renato Sztutman evoca um mundo vegetal que, assim como os povos indígenas, brota e floresce em meio à devastação e à ruína.
O incêndio do Museu Nacional, ocorrido em setembro de 2018, foi um evento paradigmático. Às vésperas da eleição de Bolsonaro, ele encarnava a política de desmonte em curso – e por vir – da cultura e da educação no Brasil. Em especial, a destruição de um rico acervo de objetos arqueológicos e etnográficos constituía mais um ato de apagamento da memória indígena no país. Apagamento indissociável da violação de direitos dos diferentes povos e da devastação de suas terras. Esse incêndio replicava também as inúmeras queimadas promovidas por agentes ligados ao extrativismo predatório e ao agronegócio. Objetos, histórias e matas ardiam – e continuam ardendo – juntos.
Não por acaso, artistas indígenas – expoentes do que Jaider Esbell chamou de “arte indígena contemporânea” – debruçaram-se sobre esse evento e seu horror. Gustavo Caboco propôs um diálogo com o meteorito Santa Luzia, um dos poucos sobreviventes do incêndio do Museu Nacional, em Kanau’kyba ou Caminho das pedras, instalação montada na 34ª Bienal de São Paulo em 2021. Composto de ferro e de níquel, o meteorito figurava no espaço expositivo da Bienal como um ícone de resiliência. Diferentemente dos objetos indígenas – em sua maioria compostos de madeira, sementes, palha, plumas e barro – esse corpo que não pertence à Terra manteve-se intacto.
Tomando como mote a destruição de uma borduna wapichana que compunha o acervo do Museu Nacional, Caboco uniu a trajetória de sua família no território ancestral dos Wapichana, em Roraima, a relatos míticos que fazem referência a pedras moldáveis que vão criando os caminhos que ligam a terra ao céu. Fazendo uso da imagem do alienígena para tratar do testemunho indígena, ele vislumbrou, com a ajuda da imagística mitológica wapichana, a possibilidade de transformação – de metamorfose – do que foi destruído.
Denilson Baniwa, em Nada que é dourado permanece, apostou no contraste entre uma vitrine que guarda frascos com as cinzas de objetos indígenas carbonizados no incêndio do Museu Nacional e um jardim cultivado no estacionamento da área externa da Pinacoteca do Estado de São Paulo, no qual plantas de vários tipos e espécies brotavam e floresciam por entre os paralelepípedos. Composta por três trabalhos interdependentes – Hilo, Amaaka e Terra preta de índio – a obra criava uma tensão entre interior e exterior da Pinacoteca.
Hilo era um site specific localizado no estacionamento, acessível ao público não pagante, que transformava o local, antes ocupado por carros, em um jardim. Enquanto a vitrine evocava os museus etnográficos e de história natural e permanecia restrita a um público pagante, o jardim pôde ser visto e visitado, entre 2020 e 2021, por todos os que ali passavam. Em botânica, hilo é a cicatriz encontrada na semente, ponto de emergência do broto. É a fissura, a brecha por onde uma nova vida se faz notar e desabrocha.
O mundo vegetal que irrompe do asfalto e dos paralelepípedos oferece uma imagem intrigante da possibilidade de regeneração. Em vez de um objeto resiliente (o mineral alienígena), imune ao fogo, algo novo surge das cinzas. Apesar de o título da obra de Baniwa vir do poema, de 1921, Nothing Gold Can Stay, de Robert Frost, é difícil não lembrar A flor e a náusea, de Carlos Drummond de Andrade, no qual uma rosa rompe o asfalto. “Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio”. Drummond escrevia o poema no final da 2a Guerra Mundial, tempo de incerteza e de reconstrução.
O jardim de Denilson Baniwa faz ecoar interrogações, ansiedades e receios que atravessam o tempo em que vivemos. Tempo de catástrofes, como sugeriu a filósofa Isabelle Stengers; mas também, segundo ela, tempo para imaginar saídas criativas, para recuperar saberes marginalizados, para reativar uma inteligência coletiva. A exposição Véxoa, nós sabemos, com curadoria de Naine Terena, que reunia o trabalho de Baniwa e de outros artistas indígenas, foi aberta ao público em um momento crítico da pandemia de Covid-19 e de forte ameaça à integridade física, às terras e aos direitos dos povos indígenas. No final de 2020, contavam-se muitas mortes de indígenas causadas pelo vírus, sobretudo de anciãos, detentores de conhecimentos irrecuperáveis. Tempo das catástrofes, tempos de luto.
Como fazer brotar e florescer novamente numa paisagem de devastação e ruína? Como responder a ameaças repetidas de destruição – a um só tempo física e moral – do mundo que habitamos? Como recriar museus que não mais reduzam a arte (e a vida) indígena a vitrines fechadas e a um discurso melancólico sobre um passado que não volta mais? O trabalho de Baniwa não busca respostas definitivas a essas vastas questões. Parece-me, antes de tudo, um chamado para pensar junto com ele, para nos deixarmos levar por sua poética, para provocar conexões das imagens oferecidas com reflexões que vêm se mostrando cruciais no enfrentamento da crise que vivemos.
O mundo vegetal é prenhe de imagens de regeneração. Em A revolução das plantas, livro de 2017, o botânico Stefano Mancuso salienta que as plantas suportam a remoção de partes de seus corpos, pois não possuem, como boa parte dos animais, órgãos especializados, tampouco um centro nervoso. O corpo vegetal seria por definição descentralizado – cada parte podendo se tornar um novo organismo, podendo “pegar de novo”. O filósofo Michael Marder, autor de Plant-Thinking, de 2013, afirma que a ideia de um ser plenamente individuado é estranha ao mundo das plantas, que precisam ser muitas vezes despedaçadas para poder brotar novamente.
As plantas nos obrigariam a repensar a própria ideia de morte e de indivíduo. Mancuso comenta ainda que muitas plantas têm a capacidade de sobreviver a condições adversas – por exemplo, a incêndios. Algumas delas, como a palmeira Chamaerops humilis, na Sicília, ligam o próprio ciclo vital às chamas, voltando a brotar vigorosamente depois de uma queimada. Exemplos como esse poderiam ser encontrados alhures, como no Cerrado brasileiro, bioma pirofítico por excelência.
A antropóloga Marilyn Strathern, no artigo Regeneração vegetativa, de 2021, comenta o gosto dos povos ameríndios e melanésios pela dita reprodução vegetativa, método de plantar por estacas (por mudas) e não por sementes. Muitos desses povos lançam mão de uma analogia entre plantar talos de tubérculos e raízes tuberosas (por exemplo, inhame e mandioca) e enterrar cadáveres de parentes. Plantar seria, assim, como gerar pessoas a partir das partes de outras pessoas; seria uma forma de produzir parentesco, não por um ato de reprodução sexuada, mas por um ato de regeneração. Regeneração que não é exatamente uma replicação do mesmo, uma simples clonagem, mas o desdobramento de si em outro. Como dizem os Macuxi do norte-amazônico, um talo de mandioca produz algo que ele não é, cria uma vida nova, gera uma diferença. Assim, tubérculos, raízes e pessoas, enredados como estão, diversificam-se conjuntamente.
Nada do que é dourado permanece parece mesmo evocar esses sentidos da regeneração vegetal. O poema de Frost remete à imagem da efemeridade trazida pelo vegetal – o brilho do “primeiro verde” que logo se perde, culminando no amarelar das folhas. No entanto, essa mesma efemeridade pressupõe uma possibilidade de regeneração: aquilo que fenece se transforma em outra coisa. Na obra de Baniwa, as cinzas do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, dão lugar a algo novo na área exterior de um outro museu, agora em São Paulo. Elas renascem – desabrocham – na forma de plantas delicadas, que se espalham por entre os paralelepípedos e capturam o olhar de quem passa. E elas vão atraindo outros seres, como borboletas, abelhas e outros polinizadores que garantem a continuidade e o espalhamento desse cultivo.
Vale notar que a imagem vegetal do desabrochar aparece em uma série de cantos xamânicos do povo Guarani – as “belas palavras” ou ayvu porã –, que fazem referência ao engendramento de tudo o que existe por meio da palavra da divindade primeira, Nhanderu Papa Tenondé ou Nhamandu. Ao falar, a divindade se “desdobra” nas demais divindades e assim vai compondo os diferentes patamares do cosmos. “Desdobramento” é o modo como Pierre Clastres traduz, em A fala sagrada, de 1974, o termo ombojera, que de modo mais literal remete ao ato de brotar, de abrir-se, de desabrochar. As palmas, dedos de Nhamandu, são descritas nos cantos como ramos floridos, que vão se desdobrando. “As palmas celestes arvorando o cetro, / as mãos celestes com os brotos floridos / abriu Nhamanduî, desabrochando / do caos obscuro do começo”: eis alguns versos do Ayvu Rapyta, na recente tradução de Josely Vianna Baptista. Cada parte de seu corpo vai dando origem a novos seres, como no caso da reprodução vegetativa. Tudo se passa como se Denilson Baniwa unisse a poética de Drummond – a flor furando o asfalto da capital do Brasil – à dos Guarani – o desabrochar como possibilidade de engendramento do cosmos. Como os dedos de Nhamandu, o jardim de Baniwa localizado no centro de São Paulo vai se ramificando e florindo.
Os outros dois trabalhos que compõem Nada que é dourado permanece ocupavam o interior da Pinacoteca. Amaaka – que quer dizer “coivara” em baniwa (arawak), língua materna do artista – era a vitrine que abrigava os frascos contendo as cinzas dos objetos indígenas incinerados no Museu Nacional. A referência à coivara é o que permitia a conexão entre as cinzas e o jardim. Afinal, essa técnica agrícola milenar baseada em queimadas, tão característica dos modos de cultivo indígenas, exige a itinerância das roças e impede o esgotamento dos solos, propiciando a regeneração da flora e reservando o lugar para usos futuros. O fogo da coivara não é destruidor, como advogam tantas vezes os inimigos dos povos indígenas, estes, sim, responsáveis direta ou indiretamente por grande parte das queimadas que assolam a Amazônia e o Cerrado. O fogo da coivara é, antes de tudo, um fogo reparador, passível de ser controlado, antecipando um período de regeneração da terra e da vegetação. Fogo reparador capaz de despertar sementes que se mantêm latentes no solo.
Terra preta de índio, trabalho que pôde ser visto por trás dos vidros das vitrines de Amaaka, consistia em dois vídeos. O primeiro, captado por uma câmera de vigilância, reproduzia o que estava se passando naquele momento no estacionamento onde se encontrava Hilo. O segundo, mantendo a mesma estética da câmera de vigilância, apresentava simultaneamente quatro diferentes etapas da elaboração de Hilo. Mais uma vez, o título não é fortuito e remete ao universo agrícola indígena. “Terra preta de índio” é o nome que se dá ao solo altamente fértil que resulta da longa e contínua ocupação humana, compondo-se de resíduos orgânicos e restos de artefatos. É também uma consequência da coivara, forma de manejo que evita o esgotamento da terra. O vídeo exibia, para quem estava diante das cinzas, a construção do jardim. Apresentava ao visitante da exposição um “fora” que de certo modo o libertava da sensação de sufocamento propiciada pela vitrine e pelos frascos, que serviam de testemunha da tragédia do Museu Nacional e de tudo o que ela representa.
A agricultura de coivara, baseada na itinerância e na recusa do confinamento (sufocamento), contrapõe-se fortemente aos modos mais intensivos de agricultura, que exigem fixidez e estabelecem uma separação estrita entre os campos de cultivo e a floresta. Ao privilegiar a produtividade e impelir o desmatamento, a agricultura intensiva, comumente associada à produção e ao estoque de grãos, desembocou no modelo colonial da plantation – monocultura associada à exploração e à alienação do trabalho (e, historicamente, à escravização de povos africanos e indígenas) – e, mais recentemente, no chamado agronegócio, que vê nas terras e nos modos de vida indígenas um obstáculo para sua expansão desenfreada.
A violência do agronegócio contra os modos de vida indígenas foi tema de uma obra anterior de Denilson Baniwa, a série, de 2016, Terra Brasilis: o Agro não é pop. Tematizando situações de luta pela terra e homenageando líderes indígenas assassinados, Baniwa reagia ao slogan infeliz da Rede Globo, “O agro é pop”. O agronegócio é, antes de tudo, assassino; ele tira vidas e modos de viver e de habitar o mundo. No vídeo A-gente laranja, de 2019, o artista alterna imagens de ataques químicos a aldeias Guarani-Kaiowá no Mato Grosso do Sul, durante os anos 2000, e imagens de arquivo de aviões norte-americanos lançando herbicidas nos campos e florestas vietnamitas. Herbicidas e outros venenos, elementos constitutivos da indústria do agronegócio, convertem-se em armas de extermínio tanto de ecossistemas como de povos. A analogia deixa evidente que vivenciamos no Brasil uma guerra, e é sobre essa guerra que Baniwa está disposto a falar e a se posicionar.
Contra o slogan da Rede Globo, a coivara – amaaka – se faz signo de resistência e possibilidade de regeneração em um mundo em ruínas, erodido por máquinas de destruição. Manuela Carneiro da Cunha relaciona essa técnica, que faz uso do fogo, à produção contínua da biodiversidade. As roças de povos que praticam a coivara costumam ser caracterizadas pela diversidade e diversificação dos cultivares, o que significa que a diferença é, antes de tudo, um valor a ser defendido. Isso as distancia de um modelo de domesticação – e de controle – que tende a privilegiar determinadas espécies e a perder de vista a possibilidade de gerar novas variedades. A antidomesticação – ou contradomesticação – seria uma forma de impedir a homogeneidade.
Outro ponto importante da agricultura de coivara é a itinerância. As antigas roças não são simplesmente abandonadas, convertem-se em capoeiras, cobertura vegetal que se torna área de coleta e caça. A itinerância impede, aliás, que certas pessoas estabeleçam um domínio exclusivo sobre determinados territórios, age como uma espécie de antídoto para a constituição de algo como a propriedade privada, os cercamentos. O território vai se constituindo, assim, por movimentos de idas e vindas, pela circulação, pelo repúdio à fixação. A insistência na técnica da coivara em um mundo dominado pelo agronegócio é, para dizer o mínimo, um ato de resistência.
Como viver em um mundo dominado pela ecologia do Antropoceno, uma ecologia que converte organismos em meros recursos, removendo-os de teias de relações multiespecíficas? – pergunta-se a antropóloga Anna Tsing. Antropoceno é o nome dado por cientistas para a época geológica em que o ser humano se torna uma força decisiva, colocando outras espécies em risco de extinção e alterando a constituição do planeta. Tsing, de sua parte, nomeia de “ressurgência holocênica” a possibilidade de criar “refúgios de habitabilidade”, nos quais a cooperação multiespecífica pode ser restabelecida. O conceito de ressurgência aparece como uma possibilidade de pensar movimentos de regeneração, que subvertem a linearidade da história, natural e humana. Para Tsing, é preciso abandonar de vez uma visão evolucionista, que impede imaginar a coexistência de diferentes temporalidades e a reversibilidade de certos processos.
Anna Tsing está interessada em pensar a regeneração de ecossistemas caracterizados pela colaboração multiespecífica. O maior exemplo disso são as florestas. Ela lembra que florestas só são possíveis devido às relações simbióticas entre árvores e certos tipos de fungos micorrízicos, que se instalam em suas raízes e constituem algo como uma rede de comunicação subterrânea. Como ela pontua em O cogumelo e o fim do mundo, livro de 2015, fungos são via de regra seres que proliferam em paisagens perturbadas pela ação humana e que contribuem fortemente para a ressurgência de florestas. Eles ampliam a capacidade regenerativa das plantas. A chave para a regeneração estaria dada, segundo Tsing, na mutualidade, não apenas entre espécies, mas também entre reinos distintos.
Segundo ela, a ecologia do Antropoceno caracteriza-se pela separação radical entre florestas, marcadas por relações de simbiose multiespecíficas, e campos de cultivo, caracterizados pela simplificação ecológica. Numa agricultura de coivara, pelo contrário, as roças estão diretamente conectadas à floresta, reintegrando-se a ela depois das queimadas, submetidas a um movimento de alternância.
Expandir os campos tornou-se sinônimo de desmatamento. O preço dessa destruição e dessa simplificação é, dentre outras coisas, a suscetibilidade a novos tipos de pragas e de patógenos, sortes de entidades “ferais” que proliferam de maneira inesperada e descontrolada por efeito das infraestruturas humanas. O vírus da Covid-19 seria, aliás, mais um exemplo dessa feralidade. Estudos recentes, como os do biólogo Rob Wallace, autor de Pandemia e agronegócio, de 2020, têm evidenciado a estreita relação entre destruição ambiental, criação de animais em escala industrial e o surgimento de epidemias. Evitar novas pandemias passa indubitavelmente pelo questionamento das ecologias do capitalismo liberal.
Tsing nos ensina a ver – por exemplo, por meio do mergulho no mundo dos cogumelos e de suas associações com as plantas – como novas formas de vida podem brotar em um mundo em ruínas. Se ela insiste no conceito de “ressurgência” é porque tem razões suficientes para crer que a destruição não é um fato consumado e pode ser, em alguma medida, revertida.
Ressurgência é justamente o que os povos indígenas têm mostrado com seus incansáveis movimentos de retomada – de terras e de roças, sobretudo, mas também de línguas, de festas e de guerras. Retomada, antes de tudo, de modos de vida e de existência. A arte de Denilson Baniwa não poderia ser pensada como dissociada desses movimentos de retomada, algo, aliás, que ele jamais deixou de enfatizar. Trata-se de uma arte que não se separa das lutas indígenas, buscando extrair delas uma estética potente, capaz de produzir efeitos e afetos num público não indígena.
Nada que é dourado permanece aposta, em suma, na possibilidade da regeneração e da ressurgência. É, antes de tudo, uma resposta ao atual tempo de catástrofes – tempo de incêndios e de pandemias – que contribuem para apagar memórias e paisagens, subtrair vidas e lutas. A resposta consiste em fazer brotar ramos e flores a partir das cinzas de objetos aprisionadas em vitrines de museu, em subverter a vida no asfalto e o fechamento das instituições culturais e educacionais. Sob o pavimento, a vida que insiste em se perpetuar. Sob os paralelepípedos, uma floresta pulsante.
Artista “re-antropófago”, “cabano do presente”, “pajé-onça”, como ele mesmo já se definiu, Denilson Baniwa afirmou, em diferentes entrevistas, que seu objetivo é o de hackear o mundo dos brancos, isto é, decifrar e adentrar o sistema para identificar nele brechas que permitam subvertê-lo, transformá-lo. Brechas como os espaços entre os paralelepípedos do estacionamento da Pinacoteca, de onde crescem e florescem plantas. Como “re-antropófago” que devora a antropofagia quase centenária de poetas como Mário e Oswald de Andrade, interessa a Denilson aproximar as tecnologias do hacker digital às do xamã amazônico – mais especificamente, do pajé-onça rio-negrino, figura perseguida e demonizada pelos missionários cristãos e hoje presença rara nas aldeias. Xamãs – muito já se escreveu sobre o assunto – são tradutores de mundos, diplomatas cosmopolíticos. Assim seria Denilson: pajé-onça que se instala temporariamente entre os não indígenas urbanos, figura capaz de traçar pontes entre os mundos, buscando nesse trânsito constante o fortalecimento das lutas e dos modos de pensamento e de criação indígenas.
Não à toa, o pajé-onça é também a figura que povoa diferentes performances do artista, como quando, na 33a Bienal de São Paulo, reivindicava a presença da arte feita por indígenas. Em vez de uma São Paulo bandeirante e cafeicultora – com seus monumentos celebrando a conquista dos povos indígenas pela elite de origem europeia –, uma São Paulo que é terra indígena, com sua capacidade de regeneração. (A ideia de São Paulo como terra indígena – e do guarani como língua indígena da megalópole – foi, aliás, bastante explorada na mostra “Moquém Surarî”, exposição paralela à 34a Bienal, ocorrida no MAM, sob a curadoria de Jaider Esbell e com participação de Baniwa). Uma experiência bem-sucedida de retomada e regeneração da terra nos limites da Paulicéia pode ser encontrada na aldeia Kalipety e em outras aldeias da Terra Indígena Tenondé Porã, como tão bem narrou Jerá Guarani em Tornar-se selvagem, texto publicado em 2020 na Piseagrama.
Na carta que circulou na internet, escrita por Baniwa na ocasião da morte de seu amigo e companheiro de arte e de luta Jaider Esbell, ele reclama do assédio de não indígenas que, desesperados diante da crise de (seu) mundo, buscam no mundo indígena uma espécie de salvação. Baniwa diz não querer ser obrigado a dizer como descolonizar o mundo: “Como se isso fosse nossa responsabilidade, salvar o mundo sozinhos. Como se não fosse uma responsabilidade de todos. Ah, não! Nós somos obrigados a salvar um mundo que nunca nos quis, mas no momento que precisam recorrem e exigem que estejamos à disposição”.
Nada que é dourado permanece poderia ser lido à luz dessa afirmação: não se trata de salvação, ideal por demais cristão, mas da recuperação de uma imaginação atenta para fenômenos como a potência de regeneração das plantas e a teia multiespecífica que elas mobilizam. Uma imaginação de ressurgências, pouco conformada com uma ideia de evolução linear e de fim iminente. O que artistas indígenas como Denilson Baniwa parecem estar dizendo é que isso só será possível com alianças afetivas e efetivas com não indígenas.
O jardim no estacionamento da Pinacoteca não foi apenas o ato dadivoso de um artista indígena para uma cidade entristecida e castigada pela crise sanitária e econômica, ele foi também um chamado de colaboração, um pedido para fazer valer a potência da regeneração e impedir novos fogos ferais, capazes de viajar longe e encobrir todo o céu da cidade de São Paulo – e de outras cidades mais – com nuvens de fumaça cada vez mais carregadas de destruição e desalento.
Renato Sztutman
Antropólogo, professor da USP e autor de O profeta e o principal (2012). Atualmente, é o coordenador do Centro de Estudos Ameríndios CEstA/USP.
Denilson Baniwa
Artista, curador, designer, ilustrador e ativista indígena. Participou de exposições no CCBB, Pinacoteca de São Paulo, CCSP, Centro de Artes Helio Oiticica, Museu Afro Brasil, MASP, MAR e Bienal de Sidney.
Como citar
SZTUTMAN, Renato. Poéticas da regeneração. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, edição especial Vegetalidades, p. 92-97, set. 2023.
Esta edição especial da revista foi produzida colaborativamente pelos editores Felipe Carnevalli, Fernanda Regaldo, Paula Lobato, Renata Marquez e Wellington Cançado e pelas editoras convidadas Anai Vera, Bianca Chizzolini e Karen Shiratori.