PORTO
DE BOTES
Janaína Chavier
Ainda nem amanheceu e ele já está de pé. Acorda todos os dias às 3:30h da manhã. Só assim consegue deixar tudo em ordem na propriedade onde mora sozinho.
Cuida de tudo: corta a lenha para esquentar o seu pão com manteiga e fazer um café; põe comida para os porcos; semeia no quintal arroz dormido para as galinhas; apara o capim que insiste em invadir o terreiro; lava as vasilhas do dia anterior que deixou na pia da cozinha; come o seu pão com o café que acabou de coar; toma um banho frio.
E, quando o relógio em cima do fogão a lenha marca 5:30h, é hora de sair para o trabalho.
– Bom dia!
– Bom dia!
Como é o nome do senhor?
Roberto Carlos, mas eu não canto.
Prazer, Sr. Roberto, eu sou a Janaína. Aqui é o ponto de botes?
Você está chamando o meu barco de bote? Não, Janaína. Aqui não é o ponto de botes, aqui é o
PORTO DE BARCOS
Num ponto do Rio Piracicaba está situado o Porto de Barcos, local onde trabalha Seu Roberto, de 65 anos, barqueiro encarregado de levar e trazer pessoas que, por vários motivos, precisam cruzar o rio. Em um dia são mais de 200 travessias (ida e volta). Ao invés dos tradicionais remos, é utilizado um longo bambu que ele apoia na areia no fundo do rio, fazendo o barco deslizar. É assim durante todo o dia e início da noite, pois sempre tem gente querendo atravessar. A mini-embarcação, feita pelo próprio barqueiro com a ajuda de um amigo marceneiro, carrega no máximo sete pessoas e, a cada viagem, um dos passageiros se prontifica a retirar a água acumulada no casco – já bem gasto pelos 15 anos de uso diário.
– Pense bem, Janaína. Se eu paro o meu barco aqui neste exato local, a gente está num meio-lugar.
– Como assim?
– É que aqui estamos exatamente no meio do rio. Se remarmos um pouquinho para cá, estaremos no centro de Coronel Fabriciano mas, se remarmos um pouquinho para lá, estaremos no meu bairro, o Nova Esperança, que faz parte da periferia da cidade de Timóteo.
– Que ótimo! Essa é a primeira vez que estou em um meio-lugar!
Coronel Fabriciano e Timóteo são cidades do interior de Minas Gerais, a cerca de 200 km da capital Belo Horizonte.
Coronel Fabriciano possui 105.000 habitantes e ocupa uma área de 221,049 km². A cidade foi emancipada em 1948 e seu desenvolvimento recente se deu graças à presença de duas indústrias: a Usiminas e a Acesita. Em 1964, quando houve um redesenho do mapa administrativo da região, a cidade deixou de sediá-las. Hoje, a principal atividade econômica é o comércio.
Timóteo é uma cidade planejada e foi idealizada e construída para atender às demandas da Acesita, atual ArcelorMittal, uma siderúrgica produtora de aço que é a principal responsável pela economia do lugar. Possui uma população de 79.813 habitantes e ocupa uma área de 145,159 km².
Cidades vizinhas separadas por um rio, o Piracicaba, local de trabalho de Seu Roberto.
– Que eu sei, Janaína, são apenas 3 pontes ligando as duas cidades. É por isso que existe esse porto aqui. Para dar acesso aos moradores do Nova Esperança.
O Porto de Barcos, onde trabalha Seu Roberto, tem aproximadamente 50 anos e foi “conquistado” por José Rocho, um dos primeiros moradores do bairro. José Rocho é até hoje o dono do ponto. O proprietário não tem escritura e tampouco paga qualquer tipo de imposto por estar ali, já que se trata de uma ocupação. O mesmo acontece por todo o bairro Nova Esperança.
Seu Roberto conta que o terreno do bairro, por ter sofrido inúmeras inundações no passado, foi abandonado pelo proprietário – a Acesita, e logo em seguida pessoas vindas de outras cidades começaram a construir suas casas ali. Foi assim, a partir de sucessivas ocupações, que o Nova Esperança foi se formando.
– Aqui é terra de ninguém. Não é minha, não é dos meus poucos vizinhos, não é mais da indústria, e tampouco pertence à cidade. Além de nós, moradores, e umas pequenas empresas que estão situadas aqui, ninguém mais se interessa por esse bairro. É por isso que não há ruas, pontes ou passarelas. Estamos ilhados pois, de um lado, está o rio e, do outro, está a BR 381, que acabou de ser duplicada para melhorar o fluxo dos carros, que passam a mais de 120 Km/h, razão dos muitos acidentes que ocorriam por aqui. Ninguém mais atravessa a pé ali. Se este barco fica um dia parado, o acesso é só por avião ou a nado. Ou a pé, se você andar muito para chegar à ponte mais próxima.
– Você acha que algum dia vai ser construída uma ponte aqui?
– Ponte, nunca. Passarela, talvez. Mas quem iria fazer isso? Um morador? A prefeitura de uma das duas cidades? De quem é o interesse? Ninguém quer saber desse lugar aqui não… Não damos lucro, estamos literalmente à margem.
– Você é importante por aqui, Roberto.
– Sim, eu sou.
Para fazer a travessia a barco é preciso pagar uma quantia de R$0,75, mas dinheiro mesmo só no final da semana ou no início do mês, quando o salário dos passageiros sai. Como todo mundo é conhecido, os acertos são sempre feitos em dia, não há atrasos.
– Galinha de casa não foge da panela. Aqui todo mundo se conhece. A relação é de amizade.
– Você tem algum caderninho onde anota as travessias?
– Não. Guardo tudo na cabeça. Aqui não tem papel assinado, tudo funciona na base da palavra e do acordo. Se você fala que vai me pagar no final do ano, eu acredito! E ponto final. Somos vizinhos e, na maioria das vezes, parentes e amigos. Tem vez que acontece de alguém perder a viagem, aí eu não cobro a passagem.
– Como assim?
– Sabe aquele camarada de blusa alaranjada que acabei de levar? No mês passado ele precisou ir quatro vezes à cidade receber o salário. Da primeira vez esqueceu a carteira de identidade, da segunda esqueceu um outro documento, na terceira ficou um tempão na fila recadastrando o CPF e aí o banco fechou. Só na quarta vez conseguiu receber sua aposentadoria. Não achei justo da minha parte cobrar esses três primeiros deslocamentos. A Madalena, por exemplo. Ela mora aqui no bairro e trabalha no centro de Timóteo. Só para deixar claro para você: ela mora e trabalha no mesmo município. Para ela chegar até o trabalho, precisa ir para Fabriciano de barco e de lá pegar um ônibus para chegar no centro de Timóteo!
– E você cobra a travessia dela?
– Na maioria das vezes.
O início do mês é o período mais cansativo, já que é hora de muitos moradores receberem seus salários no centro de Coronel Fabriciano. O trabalho é dobrado. Em média são feitas umas 250 travessias e Seu Roberto chega a receber até R$180,00 por dia, dos quais R$80,00 ficam para ele, enquanto os R$100,00 restantes vão para José Rocho, o dono do ponto. Esse é o acordo.
– E nos finais de semana?
– Sábado e domingo o fluxo é bem pouco por aqui: um ou outro que vem visitar os parentes e poucos são os moradores que vão trabalhar em Fabriciano.
– O senhor não trabalha esses dias, né?
– Final de semana não é dia de um senhor de 65 anos pegar no batente. Nesses dois dias quem está aqui cuidando de tudo é um rapaz mais jovem. Só trabalho dia de semana, e de 05:30h às 19:30h. Depois vou para a minha propriedade e fico quietinho lá. Mas, se ficou alguém para trás, é só me gritar que saio de casa na hora para atravessar a pessoa. Mas uma coisa é certa: tem que ser gente boa, porque, se não, pode gritar a noite inteira aqui na margem. Eu não saio da minha casa para atravessar gente de índole duvidosa. Não mesmo.
No final do dia, Seu Roberto vai para sua propriedade ter o merecido descanso. Mas, antes de dormir, faz uma coisa que aprendeu com seu ídolo, Mazzaropi. Enterra todo o seu lucro do dia. Fica tudo lá, debaixo da terra.
– Sabe, Janaína, esse vai ser o primeiro registro do Porto de Barcos! Até hoje não tem nada, nenhuma foto, nenhum escrito, nada.
– Que bom! Agora sou eu que estou me sentindo importante.
– Nossa! Já são sete horas da noite?
– É, menina! Aqui é assim: o tempo passa e a gente nem percebe.
Janaína Chavier
Artista e designer. Vive no Vale do Aço.
Como citar
CHAVIER, Janaína. Porto de botes. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 1, p. 12-16, jan. 2010.