QUEM QUER
DINHEIRO?
Bruno Cava e Ana Luiza Lopes
Com a renda universal, cada um teria direito, do momento em que nasce até a morte, sem qualquer outro requisito, a uma remuneração mensal, financiada por um fundo comum. Uma aposta na capacidade das pessoas de criar riqueza.
Oscar Wilde, o sempre espirituoso escritor britânico de origem irlandesa, provocava ao dizer que, quando jovem, achava que o dinheiro era a coisa mais importante do mundo. Depois de velho, porém, teve certeza! A brincadeira tem mais do que um fundo de verdade. “Quem quer dinheiro?!”, pergunta Silvio Santos. A bem dizer, quem não quer? Pois hoje, em vários cantos do mundo, já existe uma política que se baseia justamente em distribuir dinheiro às pessoas. Há programas de transferência de renda em operação no estado americano do Alasca, na província indiana de Madhya Pradesh, e também no Canadá, México, Quênia, em Uganda e na Namíbia. Com exceção do Alasca, todos são programas experimentais de remuneração direta e vêm colhendo bons resultados entre as populações contempladas, como a melhora de indicadores sociais e a intensificação da atividade econômica. Mas nós não precisamos ir longe. Aqui mesmo, no Brasil, vivemos uma experiência consolidada. O Programa Bolsa Família é, disparado, o maior programa de transferência direta de renda do mundo, tanto em volume de repasse quanto em número de inscritos. A transferência é dita “direta” porque não está intermediada pela relação salarial (como no aumento do salário mínimo) nem está vinculada ao ressarcimento futuro (como na abertura de crédito popular). Ou seja, aparentemente, o programa não envolve qualquer tipo de contraprestação. E é justamente isso, essa carga utópica, que tanto incomoda.
Esse incômodo vem da tendência que temos de enxergar a renda transferida como “dinheiro grátis”. Ora, como assim, receber uma renda do nada, sem merecê-la? Essa questão pode ser abordada por três vias. Uma delas, a mais superficial, é embrulhar todo o esquema no pacote do “combate à pobreza”, reduzindo o programa a uma assistência dirigida aos mais pobres, como remediação da miséria e da fome. Nessa abordagem, as pessoas fariam jus a uma quantia de “dinheiro grátis” em virtude da dívida histórica que nos legou um panorama social de desigualdades entre classes, raças e regiões. Seria uma retribuição a título de correção de injustiças, assegurando uma renda mínima para a existência digna. Enfim, uma saída fraca para um problema de grandes proporções e muitas ramificações que, apesar dos impactos positivos pontuais, se presta mais a aliviar culpas do que mexer com uma relação sistemática de desigualdade e exploração.
A segunda via, um pouco mais abrangente, reserva à transferência de renda o papel de promover a distribuição da riqueza. Num país marcado por uma estrutura socioeconômica desequilibrada, nada mais justo do que induzir um reequilíbrio, transferindo a produção de riqueza aos historicamente desfavorecidos. Diferentemente da abordagem anterior, neste caso a renda não implica a mera assistência, justificada quase por caridade. Em vez disso, representa uma política distributiva perene e estratégica para mitigar a distância entre ricos e pobres. Contudo, essa solução ainda é limitada e, em última instância, visa a lubrificar a máquina estruturalmente disfuncional de produção, circulação e consumo de riquezas. Como num dos contos de Kafka, A colônia penal, ao sofrer com a ação de uma máquina perversa, nos limitaríamos a pedir “menos gritos, por favor!”.
A via realmente revolucionária, e a que nos interessa encarar francamente, corresponde a uma terceira abordagem, que começa a ganhar momento nos debates e lutas ao redor da renda. Nem benefício social contra a miséria nem renda mínima de correção social, a terceira via se orienta por uma renda universal e incondicionada, uma renda de existência. Com ela, cada um teria direito, do momento em que nasce até a morte, sem qualquer outro requisito, à remuneração mensal, financiada por um fundo comum.
Mas que é isso? Dinheiro para todo mundo como no programa do Silvio?! Para começar a entender a lógica da renda universal, o primeiro passo é pôr em xeque o próprio entendimento do dinheiro como produto merecido pelo trabalho. Somos ensinados desde cedo que, do suor do rosto, comeremos o pão, isto é, dinheiro se conquista com labor e persistência, pois nada vem de graça nesta vida. Segundo esse catecismo do trabalho, receber dinheiro grátis nos tornaria acomodados. Pois, se dá pra levarmos na flauta, por que nos predisporíamos a pegar no batente? E quem bancaria essa boa vida? Uma resposta frequente é o chavão “eu não vou trabalhar para sustentar vagabundo!”. Aliás, mais ou menos elaborado, esse é um dos principais argumentos contra os programas de transferência direta de renda que não passam pelo salário ou pelo crédito. No entanto, a análise dos resultados dos programas existentes revela que esse “argumento dos argumentos” não passa de preconceito. Ao contrário, uma vez estruturada pela transferência de renda, a pessoa ou o grupo familiar reúne as condições vitais para se organizar, se qualificar e lançar-se prospectivamente para o futuro. Escapa da compulsão ao presente determinada pela lei da sobrevivência, para ganhar acesso aos planos, aos sonhos, a uma trajetória possível. Outro resultado interessante, verificado em praticamente todos os casos, é que a renda proveniente da transferência direta não substitui o envolvimento da pessoa contemplada noutras atividades produtivas (inclusive no emprego formal). A renda transferida atua mais como um complemento, um arranque existencial, ou melhor, um disparador para o desabrochamento das potencialidades. No caso brasileiro, por exemplo, se verificou um efeito de escala, que consiste num ciclo virtuoso de atividade produtiva nas regiões mais bem cobertas pelo Bolsa Família. Isso porque o dinheiro não se esgota no momento do repasse; ele continua circulando regionalmente, promove novos circuitos microeconômicos e acaba estimulando uma série de iniciativas, por vezes inesperadas, além do surgimento de pequenas empresas e da polinização de imaginação social. Nada mais equivocado do que pressupor que o dinheiro “fácil” será jogado fora. É como se, ao chegar a uma população desfavorecida, a renda provocasse um desbloqueio de energias criativas que estavam represadas pela condição endêmica de privação, insegurança psicossocial, pasmaceira.
Então por que tanta resistência quando o assunto é dinheiro grátis? Para responder, precisamos chegar às premissas do problema. Caso contrário, perderemos a visão de conjunto, indispensável se quisermos ultrapassar a capa de preconceitos e banalidades interessadas. O que é dinheiro, afinal? À primeira vista, ele é aquilo que mede a riqueza. Somos tão ricos quanto mais dinheiro temos à nossa disposição. Quanto mais uma coisa ou um serviço vale, mais dinheiro custa. Antes de qualquer coisa, o dinheiro se apresenta para nós como medida do valor. Com nosso salário, podemos adquirir bens e serviços que correspondem à sua quantia em dinheiro, configurando uma relação de troca indireta mediada pelo valor que este dinheiro mede. Haveria uma equivalência necessária entre o dinheiro existente e a “economia real”, por assim dizer. Em outras palavras, o conjunto total de bens e serviços produzidos numa economia, o que às vezes aparece medido pelo PIB, Produto Interno Bruto. Consequentemente, haveria que se manter essa equivalência bem ajustada, sob o risco de causar um desequilíbrio indesejado. Se o volume de dinheiro cresce mais do que a economia real suporta, o resultado seria a inflação. Daí a imprudência atribuída aos bancos centrais de que, numa situação de crise, simplesmente imprimissem papel-moeda para compensar as disfunções e paralisias econômicas. Por mais que resolvessem momentaneamente a falta de dinheiro, a vitória ainda seria de Pirro, porque, perdida a equivalência, o dinheiro valeria menos.
Nessa lógica da medida e da equivalência fundamentais, ao dinheiro cabe servir como meio de pagamento das transações, facilitador das trocas e medida comum para produtos e serviços. Em essência, foram essas as premissas adotadas historicamente, no início da Revolução Industrial, pela teoria econômica clássica, no que ficou conhecida como “teoria do valor”. Nós compreendemos intuitivamente essa teoria, na medida em que ela está implícita na ideia de que o salário mede o quanto vale nosso trabalho, isto é, as horas trabalhadas e o valor agregado a cada hora (qualificação, eficiência, produtividade). Assim, um salário é justo se equivale ao efetivamente trabalhado e injusto quando recebemos menos do que o merecido, contabilizada a duração e a qualidade do trabalho executado. Também haveria uma medida justa para o lucro do empregador, além do que estaríamos no terreno da exploração. O mesmo valeria para a economia nacional ou global: cada fator de produção existente deve ser remunerado por uma quantia correspondente de dinheiro, caracterizando-se como desequilíbrio o que faltar ou exceder essa justa razão. A prestação (trabalho, produção real) e a contraprestação (salário, receita monetária) precisam estar equilibradas, o que enseja a saúde econômica do conjunto.
Escudando-se nessa teoria clássica do dinheiro, os adversários da renda universal alegam que não havendo uma contraprestação de trabalho nem um fluxo produtivo correspondente, em relação ao fluxo monetário investido, se introduziria uma desrazão e um desequilíbrio no funcionamento da economia. Tal desrazão conduzirá a uma menor produção em relação ao máximo potencial, caso se racionalizassem perfeitamente os fatores de produção. A renda universal pressuporia, então, não só um desequilíbrio sistêmico ao romper a equação entre produção e dinheiro, como também levaria à ineficiência, o que, tudo somado, terminaria prejudicando os próprios contemplados pelos programas de renda, pois diminuiria a quantidade total produzida de onde o benefício seria deduzido em primeiro lugar. Num contexto de predomínio das teorias fundadas no crescimento econômico (desenvolvimentistas), um programa de renda sempre vai aparecer como deslocado ou, no melhor dos casos, um apêndice, uma política assistencialista ou distributivista às margens do projeto de país.
A melhor maneira de refutar tais argumentos é abordar as premissas do dinheiro, e como ele funciona na economia nacional e global hoje. Na segunda metade do século XIX, os economistas marginalistas provocaram uma verdadeira reviravolta nas teorias do dinheiro e da renda. Para começar, o funcionamento da economia nacional e global não é análogo ao funcionamento da economia pessoal ou familiar. Numa escala macroscópica, a maior parte de todo o dinheiro existe como crédito, não como papel-moeda. Se mesmo na nossa economia próxima, cada vez mais o dinheiro circula na forma de dívida, na forma de cartão de crédito, crédito consignado, financiamentos para casa, carro, bens duráveis; em maior escala a discrepância entre a presença do papel-moeda e o dinheiro como dívida aumenta tremendamente. O Big Money, o dinheiro grande, existe na forma de colossais volumes de crédito decorrentes dos títulos de dívidas emitidos por bancos, por fundos de investimento, pelo Estado (os chamados títulos do tesouro) ou por grandes empresas, que a seguir são lançados no mercado e nas bolsas de valores, podem ser trocados entre si e circulam indistintamente como qualquer outra forma de dinheiro. O dinheiro, tomado na forma de crédito, não se apoia numa “economia real” rigidamente fundada no crescimento econômico do PIB ou no setor produtivo industrial, como supõe a teoria clássica do valor e todos os desenvolvimentistas, mas na confiança.
O que aconteceria se todos acorressem aos bancos ao mesmo tempo para retirar seus investimentos e créditos? Não haveria sequer uma pequena fração do necessário para o saque generalizado. Não é de se admirar que, em momentos de crise, uma das principais preocupações dos governos seja impedir que a confiança baixe a níveis tais a ponto de provocar uma “debandada aos bancos”. Nesses momentos, os governos correm para salvar os bancos e, só depois, se preocupam com o resto da população. Se os bancos perdem credibilidade, todo o valor do dinheiro cai por terra e o sistema econômico – junto com os governos – imediatamente se precipita ao colapso. A confiança é fundamental. No caso dos títulos de crédito ou financeiros, é preciso antes de qualquer coisa confiar que eles sejam pagáveis, que o credor possa ir até o devedor e possa sacá-los como papel-moeda. Todo investimento envolve um crédito lançado sobre uma confiança num futuro solvável, isto é, num futuro que cumpra a expectativa nele depositada. O verdadeiro lastro do dinheiro é o futuro, a capacidade de produzir valor, riqueza, qualidades. As crises nacionais e globais hoje são mais um reflexo da incapacidade de assegurar o refluxo do investimento do que um desequilíbrio causado pela falta de correspondência entre dinheiro e produção, entre economia financeira “fictícia” e economia produtiva “real”.
Por que fizemos essa breve excursão sobre o dinheiro? Porque não há como falar na renda universal sem falar do dinheiro e sem mudar inteiramente o modo com que o abordamos. O pulo do gato da renda universal, o que a faz ser uma via revolucionária, consiste em virar do avesso o funcionamento do sistema financeiro para negar-lhe o monopólio de determinação do valor da riqueza, assim como Prometeu roubou o fogo dos deuses. Para isso, para que a renda universal seja mais do que uma quimera, é preciso inverter o foco da confiança capturada pelos bancos e fundos. Porque não são os governos nacionais ou o sistema financeiro que produzem a confiança por si próprios. Eles são, na realidade, seus meros captadores e fiadores e precisam incessantemente providenciar garantias ao sistema como um todo, sob pena de ter o seu rating rebaixado pelas agências especializadas. A confiança, no fundo, é produto do funcionamento virtuoso do ciclo produtivo integral de uma sociedade, ou seja, é resultado da nossa produtividade social combinada, das nossas capacidades de gerar riqueza, criar, imaginar soluções, fazê-las acontecer, de uma ressonância que põe para vibrar cada corda singular, como um gigantesco sintetizador composto de elementos distintos entre si. Bancos e governos são como o aprendiz de feiticeiro que manuseia forças perigosas que não pode, todavia, controlar totalmente.
Mas que forças mágicas são essas que movem a economia? Somos nós mesmos, ora! A nossa atividade produtiva em geral, a nossa vida comum, que cria os valores. É o que, no final das contas, faz girar a economia, que lhe confere vitalidade e dinamismo. A economia contemporânea é como o Facebook, que vale bilhões na bolsa de valores porque investimos diuturnamente nossos emaranhados de relações, afetos e desejos, nosso caleidoscópio de cooperação, nossa economia de possíveis, nossos sonhos e futuros. Se, do dia para a noite, saíssemos em massa do Facebook, amanhã a empresa não valeria absolutamente nada nas bolsas. Isso não significa que devamos desprezar a força do Facebook, mas, sim, reconhecer como participamos dela. Nós compomos a carne da maquinaria financeira, assim como, em contrapartida, o Facebook nos atravessa como seres socialmente ultraconectados, moventes e “líquidos”.
Por pelo menos dois séculos, a principal luta (luta em sentido amplo) dos trabalhadores girou ao redor do emprego, de sua conquista, garantia e melhoria de condições. Durante todo esse tempo, o emprego foi o seu norte, a meta existencial maior do eixo de uma vida bem-sucedida. Tornar-se bem empregado numa empresa estável ou no Estado, inscrito numa relação assalariada, era o padrão ouro para uma renda segura por toda a vida. Transpondo ao nível do Estado-nação, essa luta se dava em torno do estado de bem-estar social (ou welfare), que nada mais é do que uma sociedade organizada acerca das noções de pleno emprego e de “salário social”. Esse salário corresponde a uma renda indireta concedida a todos na forma de serviços públicos gratuitos e de qualidade, assegurados mediante o reposicionamento das instituições, dentro da lógica planificada e centralizada do Estado.
Essa organização da renda baseada na conjugação entre emprego formal e bem-estar social funcionou relativamente bem por pelo menos 30 anos, entre 1945 e 1975, em alguns países do hemisfério norte, especialmente na Europa Ocidental. Contudo, apesar do saudosismo aqui e ali, o welfare centrado no Estado está bastante defasado em 2017. Ainda mais no Brasil, que não viveu uma fase áurea desse modelo. As novas condições prevalentes atualmente resultam de alterações no funcionamento social e econômico, com o deslocamento da relação do trabalho da lógica rígida do emprego para a flexível da empregabilidade, isto é, da segurança do contrato estável e exclusivo de trabalho para a autoformação e a versatilidade de relações de produção, com vários empregadores e múltiplas fontes de renda, inclusive por projeto ou tarefa. Com isso, a luta tende a avançar por coordenadas organizativas mais abertas em relação àquelas do emprego formal, com contornos borrados e desejo de maior mobilidade, com mais autonomia para empreender e elaborar estratégias coletivas para além dos velhos muros de uma mesma instituição ou corporação, onde se pretendia passar a dita “vida produtiva”.
Tomemos o exemplo da Uber. A empresa é pioneira em unir dois desejos: de um lado, o desejo de maior mobilidade na metrópole que nos faz recorrer ao transporte mais barato, disponível e prático; do outro, o desejo de empreender por conta própria e obter uma renda adicional direta por parte dos motoristas, que dispensam a intermediação da relação assalariada, das diárias da indústria do táxi e da malha burocrática e clientelista implicada na participação nos pontos pagos e franquias. Sim, a Uber é uma empresa que explora a precariedade do transporte e do trabalho na metrópole. Ainda assim, é preciso identificar aí uma potência, propiciada por uma nova potencialidade da vida comum, que essa empresa soube captar. Essa é uma grande tendência. Há hoje uma série de empresas se especializando na desintermediação como o seu core business. Tal como a Amazon Turk, que põe qualquer demanda de serviço em contato com qualquer oferta. Tais empresas conectam diretamente as redes sociais produtivas e extraem seu lucro da sinergia induzida, aproveitando-se, claro, do constrangimento que nos leva a buscá-las como solução para os nossos desejos. Uma espécie de “uberização” da vida. Não seria o Tinder uma “uberização” tendencial da sexualidade?
O ponto aqui não está em interromper essa tendência, com vistas a regredir à régua do pleno emprego e do welfare. O ponto está em como superar a própria Uber, como “acelerar o processo” de desintermediação e virar do avesso a “uberização”, a fim de não dependermos de uma empresa que extrai seu lucro dessa nova vida comum ao mesmo tempo que se alimenta da precarização do trabalho e do transporte. A resposta não passa apenas por uma reengenharia de redes (ligando os pontos de outro modo) e por uma democratização de aplicativos que viabilizem os serviços diretos (pondo os pontos para funcionar com eficiência). Ela reside, sobretudo, numa condição de liberdade produtiva e circulatória que a transferência direta de renda propicia, para golpear em cheio a precariedade que nos empurra a aderir, como usuários ou motoristas, a esquemas como o da Uber. Quando o Bolsa Família alcançou as regiões mais pobres do Brasil, gerou-se um efeito imediato sobre o poder de barganhar as condições de trabalho por parte da população, o que alterou o modo como vivem a liberdade. Nesse sentido, lutas como a da tarifa zero, desatreladas da lógica do pleno emprego e do interligado “salário social”, ganham velocidade para se conectar à via mais criativa e libertária do “salário universal”. Assim a mobilidade pode ser vivida como liberdade, como mobilização. A renda universal não tem por objetivo criar, do nada, uma nova sociedade inspirada pelo ócio e a fruição. Isso seria requentar as marmitas do futuro. O caso é potencializar o que já é vivido, o que é uma experiência emergente que começa a delinear as próprias condições de ser enunciada e articulada, só que nas condições precárias, inseguras e espoliativas que nos são impostas.
Mas como viabilizar a renda universal? Se, na lógica do emprego e do bem-estar social, redirecionava-se parte do orçamento estatal para subsidiar o “salário social”, na forma de serviços públicos e gratuitos centralizados pelo Estado, o caso agora é reconhecer a produtividade disso que a Uber, o Facebook e, tendencialmente, todas as empresas já captam e exploram. Chamaremos de “Fundo Virtual Comum” (FVC), formado pela trama de capacidades produtivas, energias criativas, desejos e teias de relações que hoje nos constituem como sociedade conectada, movente e de muitas dimensões. A “uberização” nada mais é do que um modelo de negócios que aprendeu a capitalizar diretamente sobre esse fundo virtual. À pergunta acerca da origem do dinheiro para financiar as políticas públicas, os defensores do welfare respondem que deve se originar de mudanças no regime de tributação, de maneira a privilegiar os serviços públicos e os mais pobres. Para isso, é necessário conquistar hegemonia na sociedade para fazer brotar uma vontade política organizada que, uma vez tendo alcançado o poder do Estado pela via das eleições, aprove um programa de reformas que obrigue os ricos e as grandes empresas a pagar mais impostos. Para então, finalmente, distribuir essa fração recuperada entre os mais pobres e estruturar os serviços públicos. O “salário social” é, portanto, subsidiado pela produção da sociedade como um todo, depois de toda essa sequência de estágios que precisam acontecer concatenadamente segundo algum tipo de estratégia superior, tarefa geralmente atribuída ao partido. Por mais que esse raciocínio faça sentido em princípio, o cheiro de simplificação é muito forte para ser ignorado.
Em primeiro lugar, porque o dinheiro não aparece nessa equação como tal; ele operaria como um simples meio, um éter para as operações políticas. É como se fosse possível apenas tirá-lo do lugar x e colocá-lo no lugar y, através de uma vontade política suficientemente forte, como se estivéssemos alocando peças num tabuleiro. Contrapondo-nos a essa lógica, à mesma capciosa pergunta sobre a origem do dinheiro para a renda universal, nós responderíamos que viria de onde não deixou de vir: da confiança. Isso nos leva de volta aos fatores que produzem a confiança. Porque, hoje, ela não está mais atrelada aos aparatos de infraestrutura, aos parques industriais ou ao extrativismo desenfreado de recursos naturais e minerais. Que o diga o Brasil, que orientou a sua política estratégica na direção da construção de megabarragens, na indústria petroquímica, na siderurgia, no setor automobilístico, na cadeia do petróleo, no agronegócio, na mineração – todos sabemos onde isto deu. Em contrapartida, defendemos que a confiança vem do FVC. A renda universal está no início e no fim do ciclo virtuoso. Colho mais do que planto, se souber cultivar e polinizar. Se o próprio Bolsa Família é enxergado pelos teóricos mais arejados como investimento social, como não imaginar a renda universal como lançamento de crédito sobre a capacidade inexaurível das pessoas de criar mais riqueza?
É do FVC, aliás, que virão (como as empresas já perceberam) as melhores soluções para as questões em que o desenvolvimentismo brasileiro fracassou: geração de energia, agricultura, alimentação, cooperação, transporte, mobilidade urbana e urbanismo. Levar a tendência de interconexão do FVC adiante significa eliminar também a interposição do Estado e seu labirinto de burocracias e esquemas que, como hoje sabemos, está saturado de corrupção, clientelismo e mediocridade. Por isso, a luta pelo “salário universal” está associada à produção de movimentos que engendram soluções de novo tipo, como os grupos em prol da tarifa zero, as iniciativas de permacultura, os promotores do software livre, o questionamento dos transgênicos e das patentes, as ocupações e outros movimentos pelo direito à cidade, por pensar a cidade como ecologia, pelo cicloativismo e por aí vai. Todos esses grupos ativistas, cujo core business também é a desintermediação (da própria vida), sofrem com a ausência de um “salário” que não passe pela relação assalariada ou pelo distributivismo estadocêntrico, e terminam ficando sem saída diante da esmagadora precariedade. O desafio, então, é operar com essas experiências localizadas e sua capacidade estratégica própria, em ressonância com a tendência geral da vida comum que toda a população vivencia, para construir outros tipos de instituição ao redor da renda universal. Digamos, um commonfare no lugar do velho welfare, que fora construído no passado por lutas de outra natureza.
A renda universal significaria nada menos do que uma revolução profunda e duradoura, que nos libertaria dos óbices colocados ao “dinheiro grátis”. Esse é um debate mundial vibrante. O Brasil, com o modelo consagrado do Bolsa Família, está necessariamente dentro dele. Este breve ensaio visa apenas a despertar inquietações e, quem sabe, fazer estalar novas ideias num momento de crise da política, em que parece ser preciso reinventar tudo. Antes de dar por encerrada esta provocação, gostaríamos de mencionar duas propostas reais em debate hoje na Europa. De um lado, há o projeto esboçado pelo ex-ministro da economia grego, Yanis Varoufakis, que, para resolver os impasses da União Europeia, propõe o funcionamento da renda universal como uma gigantesca sociedade anônima em que cada cidadão será acionista de uma parcela do fundo virtual comum, como um miniproprietário de uma parcela do orçamento público. Esse modelo ainda nos parece insuficiente, pois lembra a realização do sonho da economia política clássica, ao converter cada cidadão num pequeno proprietário da riqueza total sem, contudo, inverter a lógica hierárquica e centralizada das instituições. Em suma, permaneceríamos sob o bastão do Estado e do mercado, dos governos e dos bancos, que seguiriam no comando político-econômico. De outro lado, temos o projeto do economista Yann Moulier-Boutang, que integrou a campanha eleitoral de Benoît Hamon à presidência da França. O candidato do Partido Socialista francês assumiu a renda universal como pivô de seu programa. Hamon venceu as prévias, com uma composição que agregou os verdes e a esquerda do partido, tendo sido indicado para concorrer na eleição – ainda que sua performance, em um tóxico Partido Socialista, não tenha sido expressiva, a renda universal esteve presente nos debates. Para Yann, em vez de um “capitalismo sem capitalistas”, como pressuposto no distributivismo de Varoufakis, a renda universal propiciaria a massa crítica para realizar a transição a uma nova era de criatividade institucional, o que ele vem chamando de “multidãoceno” (multitudocène). Uma proposta com potencial de escapar da relação perde-perde, pois reinveste o horizonte de expectativas de uma perspectiva positiva.
Certamente, muitos dirão que esse é um caminho impossível. Dirão que a luta é utópica e que estamos distantes demais de qualquer perspectiva minimamente crível para uma renda universal, ainda mais diante da crise geral da economia e da política. Mas como não pensar a crise como janela de oportunidade? Como ignorar a força que nos impulsiona a tentar coisas novas e ousadas, à altura do nosso desejo? A verdade é que somos tão obsessivamente desencorajados a isso que parece ser mais fácil encarar o fim do mundo… A crise é também crise da imaginação, incapacidade de elucubrar uma via diferente das receitas costumeiras. Do lado neoliberal, cortar direitos, impor austeridade fiscal e salvar os bancos. Da parte desenvolvimentista, retomar o crescimento (segundo o mito do crescimento infinito), promover empregos e salvar os bancos.
Contudo, um mapa do mundo que não inclua a utopia não merece sequer um relance. Sem a utopia como paixão revolucionária, a possibilidade de criação do novo se esfuma e não faremos outra coisa senão administrar a crise de cada dia, seremos os seus eternos e enfadonhos gestores. Nesse sentido, a renda universal não deixa de ser uma utopia. Muitas vezes, a distância entre o impossível e o óbvio é dada pela paixão com que nos entregamos a ela.
Bruno Cava
Engenheiro, filósofo e blogueiro, foi ativista nas jornadas de 2013 e nas ocupas brasileiras entre 2011 e 2012. Participa da rede Universidade Nômade e coedita as revistas Lugar Comum e Global Brasil.
Ana Luiza Lopes
Escritora, tradutora e revisora.
Como citar
CAVA, Bruno; LOPES, Ana Luiza. Quem quer dinheiro? PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 10, p. 62-67, mai. 2017.
Veja também
DINHEIRO PARA
UM NOVO MUNDO
Texto de Bernard Lietaer e Stephen Belgin
Moedas sociais, desenhadas por DoDesign Brasil