RESÍDUOS E RESQUÍCIOS,
RIO AMAZONAS
Bruno Walter Caporrino
Sobre as águas, simplesmente. Nunca contra as águas, e nem mesmo a favor delas, porque com elas, nelas. É assim que se constroem as vilas e comunidades que se espraiam pelas restingas, furos, voltas, paranás, lagos e rios da bacia Amazônica: sobre as águas, em função das águas, a ponto de ser possível dizer que a vida das populações ribeirinhas se define conscientemente em relação à água que contamina, liga e afeta tudo na Amazônia.
Muitos pensam, até hoje, que o universo amazônida é pautado pela escassez, enquadrando as imagens das casas ribeirinhas, seus jiraus e pontes em uma moldura simbólica que cai por terra (ou melhor, vai por água abaixo) quando confrontada com a realidade múltipla do jeito de se viver nesta região.
A história da ocupação da Amazônia está prenhe de provas de que o modelo urbano derivado dos feudos europeus e dos seus modos de produção – pautados pela sedentarização, centralização e domesticação de uma natureza entendida como matéria inerte – é apenas um modelo. Essa história mostra também que os retirantes nordestinos que deixaram a seca para sobreviver num universo pautado pela água são os mais hábeis artífices da adaptabilidade dialética.
A ruptura ocidental entre Natureza e Cultura, esse par cartesiano que é o mito fundador de nossa cosmologia, faz pouco sentido na mente dos valentes exilados pela seca, que, obrigados a conviver com tantos Outros (pessoas tão diversas, bichos que são gente, ou seja, animais que são animados e, portanto, agentes), aprenderam com os indígenas a entendê-los sob uma relação pautada pela ideia de que todo ser vivo é dotado de alma (animado) e que a alma é exatamente a capacidade de entender, apreender, perceber e interagir.
Essa capacidade se revela de forma concreta no modo como as pessoas constroem suas casas, produzem sua comida, plantam suas roças, extraem seu açaí, cobrem suas casas com palha de ovi ou buçu. Assim, a vida ribeirinha não é uma vida “à margem”, isto é, ela não está à margem do “progresso” e da “civilização”. Essa vida não é nem uma luta árdua contra a natureza, nem uma ode bucólica a ela, uma vez que tudo é cultura na vida ameríndia, cabocla e amazônida.
O caso das áreas de ressaca na cidade de Macapá é uma metáfora concreta de como o encontro entre cosmologias – e, portanto, de modos de produção da vida – é o real mote da história humana da Amazônia. Diante da diversidade dos jeitos de se ocupar o espaço, produzir e descartar a vida, é possível demonstrar que não há um modo universal de se viver, principalmente se pensarmos em adaptação e não em evolução.
Trazendo consigo a relação com o rio e com o universo amazônico, os ribeirinhos e caboclos que foram atraídos para Macapá a partir da década de 1950 passaram a habitar os rios, lagos e áreas alagáveis conhecidas como ressacas e, então, construíram casas sobre jiraus (palafitas). Porém, a vida às voltas com uma cidade pensada de acordo com os valores urbanos ocidentais exigiu que a população adaptasse o seu modo de vida tradicional – e o resultado é uma incrível interação entre modalidades de relação aparentemente opostas.
As áreas do território de Macapá regidas pelas marés do Amazonas são áreas baixas, por onde o rio adentra a cidade, como numa metáfora sorrateira do modo como a Amazônia sempre ri da tendência ocidental de dominar e domesticar o que seria a Natureza. Aos caboclos coube, portanto, a astúcia de adaptar a maneira de lidar com o espaço e, assim, edificaram, em madeira, vilas ribeirinhas sobre jiraus. Nessas vilas, o rio e o córrego são a rua, as palafitas se estendem ligando casas e formando praças sem qualquer planejamento que não o individual, num exercício pleno de cidadania que consiste em deixar que a cidade se faça através do engenho dos próprios cidadãos.
Em áreas como Congós, grandes extensões do Aturiá, do Igarapé das Pedrinhas e do Canal do Jandiá, populações ribeirinhas transpõem para o âmbito urbano um jeito ímpar de entender o espaço, o tempo, a vida e seu fabrico. Dessa maneira, construíram verdadeiras polis, onde interagem, de forma dialógica, homens e rio, com suas marés e vontades. Repletas de “pontes”, essas áreas são ocupadas por casas ribeirinhas ligadas e muitas vezes assistidas por um igarapé, canal ou baixio alagável (a ressaca) que permite a substituição dos carros e motos pelos barcos e canoas.
Todavia, há quem pense que as áreas de ressaca são um problema, como é o caso do Estado, esse leviatã estatístico e homogeneizante. No entanto, as comunidades das ressacas constituem um desafio por representarem justamente uma provocativa solução. Longe de serem invasões, como se alega, são práticas espaciais invadidas a todo momento pelo modelo urbanístico pautado pela expansão desenfreada, que é orquestrada pela “mão invisível” de concreto e de alvenaria e pela ignorância das necessidades e potencialidades do meio. Cercadas pela especulação imobiliária e por projetos que ignoram completamente outros modos de vida e formas de organização social, as comunidades habitantes das ressacas provam que é possível conviver com o rio em constante diálogo e interação.
Rodeadas por avenidas barulhentas e assoladas pelos problemas da aglomeração urbana para os quais ainda não se conseguiu encontrar soluções, essas comunidades são classificadas pelo Estado como problema ambiental, legal e social. Ao preconceito dos moradores de Macapá, que enxergam as comunidades de ressacas como atrasadas e primitivas, assomam-se a ausência de iniciativas públicas e a grave falta de autoestima dos moradores. Por conta disso, o modelo de apropriação do espaço coletivo das comunidades ribeirinhas, pautado pela interação com o meio, é gradativamente isolado e minado.
A relação com o que deve ser descartado ou que não se deseja mais, típica das sociedades ameríndias, passa de solução a problema: nas comunidades indígenas tradicionais, tudo o que se produzia vinha exclusivamente do extraído ou dado pelo meio. Lembremos os artefatos produzidos pelos membros dessa sociedade: a vida é produzida para si mesma, sem intermediários como o dinheiro ou o patrão, num compartilhamento de saberes e técnicas. Todos sabem fazer tudo o que precisam. Os produtos extraídos do meio, tais como peneiras, abanos, cestos, casas e barcos, eram facilmente deglutidos pelo próprio meio, pois era só jogá-los ao rio quando não fossem mais utilizados.
Tendo em vista esse costume de descartar no rio os produtos inutilizados, é normal visitar comunidades ribeirinhas e ver as pessoas eliminando toda sorte de coisas de suas casas e embarcações assim que a maré sobe. Nas comunidades de Afuá e de Gurupá, no Bailique, é comum encontrar praias onde o rio acumula artefatos, como matapis (estrutura de palha trançada em formato cilíndrico para aprisionar camarões), esteiras, cestos e tábuas serradas. As crianças se divertem nesses ambientes num exercício arqueológico: gritam “Olha! A panela da Velha Pobre!” e apontam para uma cuia quebrada que faz referência à Serra da Velha Pobre, próxima a Almeirim. Sobre a Velha Pobre é costume dizer que errava pelas vilas catando artefatos para recriá-los.
Não é de lixo que se trata, mas de objetos descartados que, por deixarem de ter uso para os homens, perdem seu encantamento e tornam a ser palha, fibra, madeira. O hábito de deitar resíduos orgânicos ao rio tem origem nessa mesma modalidade de relação e atrai os peixes para perto do jirau. A compreensão de Lavoisier realiza-se ali como em nenhum outro contexto: nada se perde, tudo se recria.
Entretanto, as pessoas estão distantes do gesto simples que devolvia o material confeccionado com a matéria do próprio meio. Em razão da presença dos produtos manufaturados, cada vez mais introduzidos na vida ribeirinha, agora, elas se veem obrigadas a acumular dentro de casa o material que antes era só descartar. “Fazer o quê, não é? Essas coisas são todas duras. Duram muito mais, mesmo quebradas. A gente joga do catrario, do navio, do iate, porque a gente não tem condições de levar a bordo. Veja o senhor: esses cestos todos que usamos para carregar o caroço do açaí… Eles se acabando, vão tudo para dentro do rio, mas é palha, se acaba na hora. O povo tem que aprender ainda a usar essas coisas de plástico, essa lixarada toda aí de cidade”, diz seu Inácio, que vem semanalmente a Macapá, a bordo de sua lancha, vender o açaí que retira da comunidade, no rumo da baía de Afuá. No caso, seu Inácio se refere ao azafamado porto do Igarapé das Mulheres, onde encostam embarcações de pequeno e médio porte que ligam a metrópole às vilas e onde o choque de modelos se revela no acúmulo de lixo no leito do pequenino estuário.
Quando objetos diferentes, que materializam diferentes modos de produção da vida, encontram-se com o comércio do tempo e do espaço, o lixo passa a ser um dos problemas imediatos postulados pelo processo de acumulação de pessoas nas áreas de ressaca e entorno dos baixios e igarapés.
Por iniciativa das próprias comunidades para coleta e tratamento de seus resíduos sem apoio algum do Estado, muitos se organizam em mutirões semanais, detectando e vedando com telas e grades os canais por onde o lixo entra mais. “Aqui no Jesus de Nazaré, a gente se organiza sem se reunir. Sozinhas, as pessoas sabem que têm que levar o lixo lá para a rua de acesso à ponte. É muito comum os vizinhos juntarem o lixo aos domingos, ouvindo música e assando um peixe… É uma questão de educação, não precisa reunir. Cada qual sabe do seu fazer. Mas o lixo que fica aqui não é a gente que joga não. Por isso eu falo: ele vem todo com o vento, no verão, e com as enxurradas, no inverno”, diz dona Nazaré, moradora da área desde que começou a ser ocupada, há mais de 40 anos. O seu depoimento foi colhido num ensolarado domingo em que, recolhendo as garrafas PET e as sacolas plásticas que flutuavam defronte e debaixo de sua casa, ela e a vizinha abateram uma moreia cuja gordura usariam para fazer pomadas.
“Aqui no Perpétuo Socorro a gente se criou desde menina. Meu pai pescava e meu avô era carpinteiro naval. Tudo aqui era bairro de pescador. Não era essa sujeirada toda não. Antes, tinha mato e aparecia até cobra dentro de casa. Tem o caso do Anísio, que dormiu no jirau e acordou abraçado com uma sucuriju. As pessoas ouviram-no murmurar palavras de amor e foram espiar, de gaiatice, porque ele era viúvo há muitos anos. O susto foi grande quando viram a bicha toda enrolada nele. Tinha bicho, tinha tudo, só não tinha era sujeira. Meu avô criou tracajá e jacaré na porta de casa até bem pouco tempo antes de morrer. Não tinha prefeitura, mas cada um cuidava do seu pedaço. Hoje isso aqui inchou, tem um em cima do outro, é barulho, briga e lixo. Antes não era assim não”, enfatiza dona Nita, simpática moradora do Perpétuo Socorro que prega o Evangelho todos os domingos na penitenciária estadual e faz parto nas comunidades do entorno de Macapá.
Vemos assim que grande parte do lixo que flutua nas áreas de ressaca vem das ruas, galerias fluviais e lixeiras da cidade seca que as envolve. O vento e as chuvas arrastam para os canais e igarapés o lixo que vem do asfalto. Por isso, o lixo acaba sendo um problema tanto ambiental quanto social, uma vez que as comunidades são obrigadas a conviver com os detritos sob suas casas. Para além das doenças e do desconforto provocados pelo acúmulo do lixo, as comunidades que criam tracajás e peixes no quintal de casa sofrem com o preconceito justamente daqueles que sujam suas áreas e os taxam de marginais.
“Teve um monte de estudante de uma faculdade que veio aqui querendo ensinar a gente a cuidar do lixo. Você tinha que ver as meninas de salto alto prendendo nas pontes, falando que a gente suja tudo, que querem nos ajudar a recuperar os impactos ambientais de morar aqui. A gente não é bicho não, isso aqui não é zoológico: a gente cuida do lixo. O asfalto é que não cuida do dele, e a gente que paga o pato”, diz seu Walmir, carpinteiro naval em Santana.
Talvez seja possível dizer que o lixo é o jeito como produzimos a vida nas modernas sociedades urbanas, pois ele não é outra coisa a não ser o que nós mesmos esforçamos para fabricar com empenho, engenho e técnica e depois descartamos. Desenvolvimento deveria consistir justamente em produzir a vida, e não o lixo. Nesse sentido, seria descartado aquilo que pudesse ser transformado sem se perder e reutilizado aquilo que nós produzimos e o meio não consegue absorver.
Sob essa ótica, não haverá dúvidas de que o jeito ribeirinho, indígena e caboclo de produzir a vida e de descartar produtos é mais eficiente e inteligente. Mas os produtos inorgânicos não serão abandonados: será necessário, então, fortalecer a organização local das pessoas, valorizar as práticas que já existem e, sobretudo, modificar radicalmente os paradigmas atuais que regem a produção das coisas, das cidades e do imaginário coletivo.
Bruno Walter Caporrino
Antropólogo de formação e indigenista por profissão (de fé) junto ao povo indígena Wajãpi, no Amapá.
Como citar
CAPORRINO, Bruno Walter. Resíduos e resquícios, Rio Amazonas. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 5, p. 30-33, jan. 2013.