ROJEROKY HINA HA
ROIKE JEVY TEKOHAPE
Texto de Tonico Benites
Hitupmã’ax, pinturas de Sueli Maxakali e Isael Maxakali
O antropólogo ava kaiowá Tonico Benites relata as histórias de violência e resistência que marcaram sua infância e que ainda hoje definem a experiência dos Guarani e dos Kaiowá que lutam pela reocupação de seus territórios tradicionais.
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Nasci no dia 12 de dezembro de 1971 no Posto Indígena Sassoró. Minha mãe é da etnia Guarani, pertencente ao tekoha Potrerito/San José. Meu pai é da etnia Kaiowá, originário do tekoha Jaguapiré. Segundo minha mãe, meu nascimento ocorreu de acordo com o ritual tradicional de parto natural kaiowá, sob o cuidado de uma parteira (ñandesy mitã mboguejyha) experiente e conhecedora de várias rezas (ñembo‘e) e plantas medicinais (pohã ñana) para a realização do parto. Ela assumiu a função importante de observar e acompanhar minha mãe e eu desde o primeiro mês da gravidez até o dia do nascimento. Essa parteira era minha parenta por parte da minha família paterna (cheru rey‘i gui). Além disso, ela já era parteira e comadre (comare) da minha mãe e de outras parentas há muito tempo, por já ter acompanhado e realizado outros partos da minha família extensa. Ela era, sobretudo, uma grande conselheira, detendo poder educativo e autoridade legítima.
Minha mãe e meu pai contam que com um mês de vida passei por um ritual de assentamento de nome/alma no corpo (mitã mongaraí), isto é, fui “batizado” por um rezador (ñanderu) de confiança que já havia realizado diversos mitã mongaraí na minha família. Esse ritual foi realizado durante a noite na casa do ñanderu, onde se encontravam os instrumentos requeridos para a realização do ritual, como o xiru marangatu. O nome/alma de uma pessoa (ñe‘e ayvu réra) só é trazido na presença desses instrumentos e após convocação repetida por meio da realização de cantos e rezas especiais (ñengary ayvu reruhá) para assentar a alma no corpo. Assim, na madrugada, após longas horas de cantos e rezas de evocação do nome/alma coordenados pelo ñanderu e pelo seu auxiliar, recebi o meu che ayvu réra.
Meu nome/alma é Ava Vera Arandu, que pode ser traduzido por Homem (Ava) Sábio (Arandu) Iluminado (Vera). Esse nome/alma pertence a uma família extensa que reside no Yvay Ypy, um dos diversos patamares do universo cosmológico kaiowá. Minha mãe conta que o processo preparatório do ritual de assentamento do meu nome/alma (jeroky mitã mongarai) começou a ser organizado um mês antes, envolvendo vários membros da minha família. Durante esse mês, meu pai, por exemplo, teve que procurar mel (eira) e cera (araity) da abelha jate‘i para confeccionar um tipo especial de vela. Três dias antes do jeroky mitã mongaraí, minha mãe teve que preparar a bebida fermentada de milho branco e batata-doce (chicha/kãgui) que seria consumida durante o ritual (jeroky) pelos participantes.
De forma geral, meu nome/alma e meu corpo (che rete), durante todo o processo do meu crescimento físico, tiveram que passar por diversos procedimentos educativos e religiosos em rituais tradicionais de cura e prevenção: um conjunto de cuidados transmitidos pelos mais experientes da família, como a parteira ñandesy mitã mboguejyha e o ñanderu, que orientaram minha família extensa sobre como deveriam se comportar comigo e como me educar.
No Estado de Mato Grosso do Sul há aproximadamente 45.000 pessoas que pertencem às etnias Guarani-Kaiowá e Guarani-Ñandeva e estão distribuídas em mais de 30 áreas, com tamanhos variados e em diferentes condições de regularização fundiária. Há áreas demarcadas, áreas identificadas, e acampamentos aguardando reconhecimento do Estado.
Esses indígenas são conhecidos na literatura como sendo Guarani-Kaiowá e Guarani-Nandéva, embora apresentem muitos aspectos culturais e de organização social em comum. Os Guarani-Kaiowá não se reconhecem como sendo Guarani, mas aceitam a denominação de Ava Kaiowá. Por sua vez, os Guarani-Ñandeva se autodenominam Ava Guarani.
Os processos de reocupação e retomada são resultado da territorialização que os Guarani e os Kaiowá vivenciaram com o processo de colonização e, depois, com a criação dos Postos Indígenas (P.I.s) no atual Estado de Mato Grosso do Sul. Pode-se dizer que houve uma paulatina política de expropriação dos indígenas de suas terras, movimento que os levou a serem transferidos e reservados, tanto por iniciativas diretas dos fazendeiros quanto pela atuação de funcionários do órgão indigenista e de missionários da Igreja Evangélica Caiuá e da Igreja Unida Alemã.
No decorrer das décadas de 1950, 1960 e 1970, várias famílias extensas guarani e kaiowá foram expulsas dos seus territórios e dispersas. Como consequência, os indígenas se “esparramaram” (sarambi) e se assentaram, progressivamente, nos “cantos” dos limites dos P.I.s que estavam localizados nas proximidades dos seus antigos territórios. Os membros das famílias extensas expulsos se encontravam em condições politicamente instáveis nos limites dos P.I.s, pois, não pertencendo aos locais para onde haviam sido transferidos, também eram obrigados a lutar por um lugar dentro destes novos espaços. Foi devido à situação de vida adversa nos P.I.s que lideranças e membros das famílias deram início a variadas estratégias para planejar o retorno e a recuperação dos territórios perdidos.
No final da década de 1970, as lideranças das famílias extensas expulsas de seus territórios tradicionais (tekoha) articularam iniciativas de luta pela recuperação de território que de fato passaram a ocorrer nas décadas seguintes. Na primeira metade da década de 1980, a luta pelo retorno (jaike jevy) aos tekoha começou a ser discutida e planejada em Grandes Assembleias – os Aty Guasu –, que tomavam corpo a partir da configuração de redes e de alianças constituídas entre as lideranças das famílias extensas.
Minha família extensa é originária do tekoha guasu Jaguapiré Memby-Jukeri, do qual foi expulsa no final da década de 1960 pelos não indígenas que adquiriram as fazendas Redenção, Modelo e São José. Com a pressão exercida pela chegada desses novos fazendeiros, minha família teve progressivamente que se dispersar e se assentar em uma pequena área denominada Galino Kue, localizada dentro do P.I. Sassoró, até a segunda metade da década de 1980. A partir daí, para recuperar parte do tekoha guasu de Jaguapiré Memby-Jukeri, as lideranças e os membros das famílias Benites e Romero realizaram uma luta intensa e se aliaram com as famílias Vargas e Ximenes. Os membros dessas duas últimas famílias não haviam saído definitivamente da área de Jaguapiré e continuavam trabalhando, até a década de 1980, dentro das fazendas que haviam sido constituídas sobre o antigo local de ocupação tradicional indígena. As famílias Vargas e Ximenes trabalhavam tanto na roçada como na derrubada da mata para a formação das pastagens.
Entre 1985 e 1988 teve início a expulsão violenta das famílias extensas Vargas-Ximenes e Benites-Romero da área de Jaguapiré. Testemunhei essa violência contra as minhas famílias promovida pelos fazendeiros. Esse período foi marcado por intensos conflitos com os fazendeiros do atual município de Tacuru.
As famílias demonstraram posição firme na defesa de seu tekoha e mais indígenas se juntaram no tekoha Jaguapiré. Foi no dia 2 de março de 1985, às 12 horas, que pela primeira vez as famílias indígenas foram atacadas e despejadas violentamente por 30 prepostos do fazendeiro José Fuentes Romero, como lembra o idoso kaiowá Silvio Benites, torturado a ponto de ter uma perna fraturada durante o despejo. Ele nunca mais se recuperou da violência sofrida.
“O fazendeiro José Fuente veio até a casa do Moreno. Ele ficou muito bravo com o ñamoi Moreno por ter articulado o retorno de nossos parentes ao tekoha Jaguapire. Fuente falou diretamente para nós que não vai aceitar a moradia de vários índios da reserva Sassoró na sua propriedade. Ele ordenou para todas as famílias sair e ir embora imediatamente da fazenda dele, mas nós respondemos a ele que a nossa decisão era não sairmos de nossas casas e nem íamos abandonar o nosso lugar. Diante disso, ele ameaçou que ele ia mandar queimar todas as nossas casas, que logo ia mandar polícia e caminhão para nos expulsar e transferir para a reserva Sassoró. Em menos de uma semana, chegaram ao pátio de nossas casas dois caminhões, tratores e vários homens e policiais armados. Ao cercar as nossas casas, ordenaram para nós subir imediatamente na carroceria do caminhão. Os policiais já dominaram e amarraram crianças, mulheres, homens, e carregaram na carroceria do caminhão. Além disso, começaram a lançar tiros sobre nós, chutaram nas pernas dos homens. Eles amarraram os nossos braços e pernas, nos carregaram na carroceria do caminhão. A minha perna foi fraturada pelos jagunços e assim fui jogado na carroceria. Enquanto isso, os dois tratores já começaram a destruir as nossas casas e nossas roças. Os homens karai já queimaram as nossas coisas. Assim, nos carregaram amontoados na carroceria do caminhão e nos deixaram perto da Missão Evangélica Caiuá, na entrada da reserva Sassoró.”
Em virtude desse acontecimento e da divulgação ampla que ele teve na imprensa, pela primeira vez diversas autoridades estaduais e federais (agentes superiores da FUNAI, comandantes da Polícia Militar, Polícia Federal, presidente da República, etc.) começaram a se envolver no conflito já estabelecido de modo generalizado entre indígenas e fazendeiros pela posse da terra.
Em 1988, os fazendeiros, por meio de advogados, conseguiram duas ordens de despejo judicial dos indígenas de seu território identificado, que foram executadas por agentes policiais. Os fazendeiros deixaram de contratar os pistoleiros para realizar despejos extrajudiciais dos indígenas, mas passaram a contratar o advogado para obter a ordem de despejo judicial da Justiça Estadual. Desse modo, os fazendeiros demonstraram que os indígenas podiam também ser despejados legalmente de sua terra tradicional pela ordem da Justiça. O modo como os despejos foram feitos não diferia muito. Vários indígenas do tekoha Jaguapiré que foram vítimas dos despejos extrajudicial e judicial, ao narrar histórias desses acontecimentos, nem conseguem distinguir com clareza se foram pistoleiros ou policiais os que agiram.
Fica evidente que o processo de despejo extrajudicial dos indígenas de seus tekoha e a dominação de territórios indígenas eram, desde então, não só permitidos como também fomentados pelo próprio sistema de poder político, judicial e econômico dominante no extremo sul do atual Estado de Mato Grosso do Sul. Nesse contexto, o direito indígena às terras de ocupação tradicional, já garantido na Constituição, vem sendo ao longo do tempo claramente ignorado e aviltado.
Após longos anos de luta, no dia 20 de maio de 1992, a Terra Indígena Jaguapiré foi reocupada pelas famílias extensas, apoiadas pelas lideranças do Aty Guasu. No dia 21 de maio de 1992, a Terra Indígena Jaguapiré foi oficialmente reconhecida pelo ministro da Justiça, possibilitando que as famílias extensas Benites-Romero e Ximenes-Vargas, reocupantes da área, permanecessem definitivamente no território tradicional de Jaguapiré, no município de Tacuru.
Entre 1982 e 1988, período em que eu ainda era bem jovem, acompanhei o meu pai e meu avô no tekoha Jaguapiré e frequentei com meu pai, minha mãe, meu avô e minha avó os rituais religiosos (jeroky) e profanos (guachire) que eram realizados com assiduidade no tekoha Jaguapiré. Recordo que durante esse mesmo período, por conta dos conflitos que acabo de narrar, ocorriam com muito mais frequência os rituais religiosos, sobretudo na casa do líder (tamõi) e rezador (ñanderu) da família extensa Ximenes, chamado Moreno Ximenes, e de sua esposa, também líder (jari) da família Vargas, chamada Tomazia Vargas. Na casa desse casal havia os instrumentos xiru marangatu necessários para a realização de tais rituais.
Um dos fatos mais determinantes da minha vida foi justamente relembrar a forma como os fazendeiros promoveram a expulsão de minhas famílias do tekoha Jaguapiré em 1988, me incentivando a buscar descrever as formas de lutar do Aty Guasu guarani e kaiowá pela recuperação de seus tekoha. Desde muito jovem percebi que as práticas de despejo geravam situações de reação, perplexidade, aflição e constrangimento entre as famílias indígenas, que por isso começaram a se articular para retornar aos tekoha.
Na reserva indígena Sassoró, as famílias expulsas de Jaguapiré encontravam-se na posição de subalternas e dominadas, sem condições de se manifestar e viver com relativa autonomia, como antes possuíam no tekoha Jaguapiré. Foi nesse contexto que cresci e participei do Aty Guasu. Ainda na minha infância ouvia e me deparava com determinadas perguntas e posições que eram recorrentes no seio da minha família e do Aty Guasu: “Karai fazendeiro kuera omanda, ñane mosemba uka ñande rekohagui” (Os fazendeiros mandaram nos expulsar de nossos tekoha). “Karai kuera ndoipotavei jajevy jaiko jevy ñadereko hague pe” (Os fazendeiros anunciaram que eles não nos deixariam mais voltar a morar, caçar e pescar em nossos lugares antigos). “Mba‘eichapa jajevyjevyta, jaike jevyta ñande rekohague pe?” (Como devemos recuperar e reocupar os nossos tekoha perdidos?). “Jaike jevy hanguã ñande rekoha pe tekõteve ñande aty, jajeroky, ñañopytyvõ joja. Upeicharõ jaipyhy jevyta ñanderekoha” (Para recuperarmos e reocuparmos os nossos tekoha, temos que começar a nos articular, reunir e realizar com frequência os jeroky guasu para discutir e planejar a reocupação de todos os tekoha).
Tanto as memórias das lideranças idosas guarani e kaiowá quanto a literatura historiográfica e antropológica, além da documentação oficial do governo brasileiro, sobretudo dos arquivos do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), demonstram uma presença dos Guarani e dos Kaiowá muito antiga nas regiões dos rios Brilhante, Dourados, Apa, Amambai, Iguatemi, Mbarakay, Hovy e Pytã. Os tekoha guasu atualmente reocupados e reivindicados pelos Guarani e Kaiowá estão localizados nas margens desses rios.
Nessas margens, até o final da primeira metade do século XX, diversas famílias extensas guarani e kaiowá ainda habitavam seus espaços territoriais de ocupação, os quais, a partir de alianças entre essas famílias, conformavam um território de uso exclusivo. Nos tekoha havia recursos naturais, como rios e córregos para pescar e fontes de água para o consumo. Na proximidade das habitações indígenas, além de suas roças (kokue), na floresta e no campo (vegetações distintas em sua composição) era possível encontrar diversos animais de caça, árvores frutíferas, plantas medicinais, mel, etc. Dessa forma, até meados de 1930, muitos Guarani e Kaiowá ainda habitavam de modo autônomo seus tekoha, onde viviam com certa fartura. Os depoimentos indígenas evidenciam que cada família extensa residia de forma autônoma, não tendo que disputar nem o espaço de terra e nem as fontes de recursos, como a floresta, os córregos, os rios e as minas d’água. Cada uma dessas famílias se mantinha separada das outras famílias extensas, com quem mantinham relações de troca por distâncias de uma dezena de quilômetros.
A colonização dos territórios guarani e kaiowá ocorreu, sobretudo, após a Guerra da Tríplice Aliança (1864-1870). Os documentos históricos evidenciam que a política oficial de povoamento da faixa de fronteira avançou, primeiramente, sobre os territórios guarani e kaiowá. Mais especificamente, no período posterior à guerra, na década de 1880, o Estado brasileiro começou a abrir a região para o capital privado e concedeu um enorme espaço de terras para a Cia. Matte-Larangeira, permitindo a exploração exclusiva da erva-mate nativa na região em que estavam localizados os tekoha guasu dos indígenas.
Assim, mesmo com a presença dos Guarani e dos Kaiowá habitando a região, foi assinado um contrato entre o Estado brasileiro e a empresa Cia. Matte-Larangeira. Iniciou-se uma “situação histórica” em que o contato com os Guarani e os Kaiowá era baseado sobretudo na contratação de mão de obra para o trabalho da extração da erva-mate. Para a realização desse extrativismo, não se expulsavam os indígenas do seu território tradicional, de forma que havia poucos conflitos entre indígenas e não indígenas. Até a década de 1920, a Cia. Matte-Larangeira acabou protegendo involuntariamente os territórios guarani e kaiowá, visto que, como tinha o monopólio da exploração da erva-mate, ela impedia a penetração de outros colonos na região.
A partir de 1915 as primeiras reservas indígenas no atual Estado de Mato Grosso do Sul foram instituídas pelo SPI, que desconhecia o modo de viver dos Kaiowá e Guarani. Entre 1915 e 1928 foram criadas oito minúsculas reservas. Nessas reservas o órgão impôs um ordenamento militar, educação escolar e assistência sanitária, e favoreceu atividades das missões evangélicas que se instalavam na região. Os funcionários do SPI e outros colonizadores não se conformavam com o modo espalhado dos indígenas de ocupar o espaço. Era preciso concentrá-los nas reservas para possibilitar a expropriação de seus territórios. Várias famílias extensas estabeleceram morada nessas reservas do SPI, mas muitas outras continuaram vivendo nas matas da região.
Os territórios indígenas passaram a ser considerados como “terra devoluta” e “terra vazia” e, por isso, se tornaram objeto legal de comércio. Para o Estado, as oito pequenas reservas indígenas criadas pelo SPI eram os únicos espaços oficiais destinados aos Guarani e aos Kaiowá.
Foi principalmente nas décadas de 1950 a 1970, período marcado tanto pelo fim do monopólio da Cia. Matte-Larangeira quanto pela intensificação do loteamento da região para a instalação de fazendas privadas sobre os tekoha guarani e kaiowá, que teve início uma nova situação histórica, um período de expulsão e dispersão das famílias indígenas de seus territórios.
Os novos ocupantes se apossaram das terras também por meio de relações com agentes políticos locais, contando com a atuação de missionários, militares e de funcionários dos órgãos indigenistas do Estado – tanto do antigo SPI quanto da FUNAI. Operava-se com grande violência para expulsar os indígenas. Foi dessa maneira que, ao longo de boa parte do século XX, o Estado brasileiro passou a comercializar os territórios tradicionais guarani e kaiowá localizados no atual Cone Sul de Mato Grosso do Sul. Diante da expulsão e da dispersão continuada dessas famílias indígenas, suas lideranças, constrangidas e indignadas, não assistiram paradas à expropriação de seu território. Pelo contrário, muitas começaram a resistir.
A experiência de expulsão de certa forma gerava uma identidade comum entre as famílias extensas dispostas a lutar para retornar a seus territórios. Nessa situação histórica, as famílias passaram a reativar seus saberes e praticar seus rituais com frequência.
Os grandes rituais religiosos, os jeroky guasu, foram e são fundamentais, envolvendo os ñanderu nas táticas de retomada dos tekoha. Eles são resultado das articulações das lideranças políticas e espirituais das famílias extensas guarani e kaiowá. Os jeroky realizados em situações de conflito pela terra expressam um pensamento indígena específico e desconhecido dos não indígenas, inclusive de antropólogos. Eles geram também diferentes reações entre as diversas lideranças das famílias extensas envolvidas em conflitos fundiários com os fazendeiros.
Na atual situação histórica, as famílias extensas guarani e kaiowá dos territórios recuperados e reocupados, em lugar de se desintegrarem, aperfeiçoaram estratégias, flexibilizando sua organização e produzindo, cada uma, um modo de ser peculiar (teko laja kuera). Elas conformam uma realidade contemporânea caracterizada pelo teko reta, que pode ser traduzido por “modo de ser múltiplo” de conjuntos de famílias indígenas. O teko reta continua sendo, no entanto, um ñande reko, “nosso modo de ser”, sempre contraposto ao karai kuera reko ou “modo de ser do não índio”.
O conceito de “fazer a luta” fundamenta e descreve o complexo processo de retorno das famílias. É possível dizer que enquanto se está “fazendo a luta”, os rituais religiosos levados adiante pelas famílias extensas e pelos ñanderu constituem práticas e ações concretas indispensáveis ao bom andamento do processo de reocupação dos territórios. O envolvimento dos líderes espirituais (realizando sínteses das decisões e expectativas de famílias extensas inteiras) foi fundamental nesse processo.
A partir do início da década de 1980, o Aty Guasu, ou Grande Assembleia, passou a funcionar como um grande fórum aberto às diversas comunidades indígenas para progressivamente discutir as estratégias de recuperação de partes dos territórios antigos. Também passou a atuar para reverter a dominação neocolonial dos territórios tradicionais e contestar os modos de ser e viver (teko) guarani e kaiowá impostos pelos não índios (karai): governo, missionários e fazendeiros. Assim, em conjunto com os Aty Guasu, os grandes rituais religiosos jeroky guasu foram fundamentais para instituir redes de articulação política das lideranças das famílias extensas para a luta pela demarcação de territórios antigos.
Na perspectiva das famílias guarani e kaiowá articuladas em torno do Aty Guasu, os dramas sociais vivenciados pelos moradores de cada um dos tekoha que foram objeto de processos traumáticos de despejo não podem de maneira alguma terminar na restauração de uma dominação colonial. Inclusive porque hoje os indígenas sabem que o paternalismo dos karai em relação a eles está há muito esgotado, substituído pelo racismo e pela intolerância abertos.
A única possibilidade que está colocada para as famílias indígenas é a reconquista de seus tekoha mediante a estratégia da luta e da reocupação ou retomada (jaha jaike jevy). A vitória já obtida através dessa prática de reocupações, bem como os vários casos de ocupações sustentadas por longos períodos, reforçam a decisão adotada e indicam que, apesar dos inúmeros sofrimentos, as ações do Aty Guasu continuam a ser apoiadas pelos protetores da natureza e do cosmos.
Tonico Benites
Liderança indígena e defensor dos direitos humanos, mestre e doutor em antropologia social pela UFRJ. Principal porta-voz da Aty Guasu, uma organização que representa os líderes indígenas guarani e kaiowá.
Sueli Maxakali e Isael Maxakali
Cineastas e desenhistas indígenas maxakali. Dentre seus filmes estão Xokxop Pet (2009), Yiax kaax (2011), Mîmãnãm: mõgmõka xi xûnîn (2013). Sueli é também fotógrafa e Isael atualmente é vereador no município de Ladainha em Minas Gerais.
Como citar
BENITES, Tonico. Rojeroky hina ha roike jevy tekohape. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 12, p. 18-25, ago. 2018.