SE ESSA RUA FOSSE MINHA TAMBÉM
Texto e fotografias de Adriana Galuppo
Como ganhar território e existir sem medo em cidades que oprimem e matam quem desvia da norma? Como fazer uma cidade queer?
Ela era um guarda. Um guarde. Uma pessoa de quepe. Usava uniforme e apontava com um sorriso largo a fila do ponto de táxi para quem desembarcava do ônibus que vinha do aeroporto. Óculos escuros, barba rala, volume dos seios sob a camisa de um uniforme “masculino”. E aquele sorriso largo. A primeira imagem da minha chegada à cidade de Nova Iorque fechava um longo ciclo de frustração e parecia imediatamente satisfazer minha maior busca: uma cidade que eu pudesse habitar. Uma cidade onde eu coubesse. Uma cidade queer.
Era 1998. Quase por acidente, fui parar nos Estados Unidos. Havia economizado para visitar uma amiga na Austrália, mas tive o visto negado por um motivo que eu diria óbvio. Óbvio dentro da engrenagem que sustenta a norma quando se trata de gênero, da expectativa que se tem para uma mulher solteira e jovem. Em uma carta de quatro páginas, resposta da embaixada à minha solicitação de visto, fui acusada de estar à caça de um marido australiano tendo em vista a imigração.
Toda uma vida adivinhada pelo envio de documentos que diziam que eu era solteira, do sexo feminino e sem trabalho fixo. Se usassem a imaginação, poderiam ter lido o contrário: eu fugia para não ser caçada por nenhum marido. Ou poderiam simplesmente ter acreditado na real motivação relatada no formulário: eu viajava em visita a uma amiga. Mas o imaginário de um mundo binário e heteronormativo tem um número limitado de imagens e esta não era uma delas.
Como tinha amigos em Nova Iorque, resolvi tentar o visto americano, já preparada para receber outro não. Naquela época era difícil conseguir o visto e a imagem hollywoodiana da terra prometida anunciava deixar de fora os forasteiros indesejados. Mas tive a sorte de cair no guichê de uma atendente razoável que, surpresa com a minha sinceridade, me concedeu o visto de turista.
Descer do ônibus no terminal de Port Authority e ver aquela guarda, a imagem de um corpo com o qual me identificava inteiramente, me libertou da clandestinidade de ser uma imagem indesejada em meu próprio país. Comprei roupas novas e cortei ainda mais os cabelos para passar 50 dias na cidade, mesmo que isto tenha me custado comer macarrão e espetinhos em Chinatown todos os dias.
Por quase dois meses vivi uma realidade que nunca tinha vivido antes: não precisava me esconder ou me ajustar, podia ser eu mesma sem me tornar um motivo de curiosidade, alarme ou violência. Passava os dias andando pelas ruas, dessa vez “vestida” de mim mesma, identificando meus pares e fotografando todos os detalhes de uma cidade que havia sido palco de tantas lutas – entre elas as rebeliões de Stonewall, no final dos anos 1960, provavelmente as mais conhecidas entre a comunidade LGBT.
Fui à minha primeira parada LGBT e chorei quando vi as Dykes on Bykes, grupo independente de motociclistas lésbicas que começou a abrir as Paradas do Orgulho LGBT nos Estados Unidos, primeiramente por motivos logísticos e, posteriormente, como sinal de desafio, empoderamento, liberação e orgulho. Fizeram sua estreia na Parada de São Francisco, em 1976, e seguem desfilando até hoje.
Aquelas mulheres abriam a parada sobre suas motocicletas, de cabeça erguida, sem nenhuma vergonha ou constrangimento. O cortejo, mais diverso do que qualquer imaginação poderia criar, passava ao som dos aplausos de turistas, cidadãos avulsos e famílias. Famílias inteiras chegavam cedo, abriam suas cadeiras nas ruas e assistiam à Parada do Orgulho LGBT de Nova Iorque. Não como se assiste a um desfile bizarro, mas como se acompanha uma marcha por cidadania e inclusão, com respeito e alegria.
A imagem daquela guarda nunca sairia da minha cabeça e eu voltaria à cidade de Nova Iorque muitas vezes depois para me sentir novamente em casa.
Como nós, os desviantes, os outsiders, os esquecidos, habitamos a cidade? Como uma pessoa não reconhecida ou um coletivo indesejado ocupa as ruas? Que histórias de vida são construídas, inventadas ou compartilhadas? Histórias sobre estar e não estar na cidade, visibilidade e invisibilidade no espaço considerado público. São essas as questões que me mobilizam.
Como seria uma cidade queer? Seria uma cidade construída por e para as pessoas que se desviam da norma? E que norma demarca quem pode ou não ser reconhecida? Quem são os clandestinos que se destacam ou somem na multidão justamente por serem quem são? Como lutam e se manifestam pelo direito de serem quem são? Que cidade imaginam para si? Que outra cidade a cidade pode ser para que nós, os desviantes, possamos caber?
Segundo a filósofa Judith Butler, gênero não é um substantivo, não é algo que as pessoas têm, nem tampouco um papel social. Gênero é um verbo, ou melhor, é um conjunto de atos. Não é o fazer de um sujeito que se supõe existir antes do verbo. Não há sujeito anterior. Gênero não pressupõe nem o sujeito anterior, nem tampouco o ato individual e voluntário. A performatividade, segundo Butler, é um conjunto de atos que se referem a um campo normativo, e que só existem compartilhados com o outro. Não se trata de indivíduos, mas de sujeitos sociais. As normas de gênero são imagens, valores e recursos construídos na cultura e mantidos todos os dias por meio da reatualização dessa construção na vida cotidiana.
Estamos, apesar de nós mesmos, vulneráveis e afetados por discursos que nunca escolhemos. As normas agem sobre nós e implicam sermos suscetíveis à sua ação. Somos vulneráveis a certa nomeação desde o início, e isto se registra em um nível anterior a qualquer possibilidade de vontade. No domínio da suscetibilidade, no entanto, algo diferente também sempre pode ocorrer, o que provocaria alguma flexibilidade nas normas. Alguma.
Apesar dessas normas nos precederem e agirem sobre nós, em sua reprodução, seu “colocar em ação”, há também atualização. É aqui que encontramos outras formas de vidas de gênero, que podem interromper o processo mecânico de repetição, desviando e ressignificando.
As normas de gênero estão em um terreno de articulação de elementos díspares que criam uma ideia de suposta coerência entre corpo, sexualidade, desejo e gênero. Mas essa relação é mal articulada. Pensar a identidade como consequência de um corpo material deixou de funcionar. A identidade não está baseada numa materialidade – ela é um pressuposto, uma prescrição, uma imagem.
Se consideramos a possibilidade de mudança da invariablilidade para a variabilidade, haveria também alguma chance de trânsito da invisibilidade para a visibilidade? As fronteiras são vigiadas incansavelmente e elas não são apenas materiais. Poderíamos nós, os desviantes, ter permissão para aparecer? Se a norma também se apresenta e se reforça por imagens, nossos corpos-imagem serão sempre invisíveis ou irreconhecíveis?
Quando nós, LGBTQI+s, lutamos por aparecer em público, demonstrar afeto, transitar em segurança, nos igualar em direitos ou sermos atendidos em postos de saúde e em lojas da mesma forma que outras pessoas, quando exigimos reconhecimento, estamos nos relacionando com as normas. De alguma forma, ainda pedimos permissão para existir de outra maneira, através de outra imagem.
Há um terrorismo cis-hetero-normativo-binarista sempre a definir, a marcar a hierarquia, o estado absoluto, a natureza indiscutível, a materialidade comprovada via genitália corporal. Apesar dele, e por causa dele, precisamos resistir, desobedecer. Dar de cara com a norma que nos mata todos os dias e impede que tenhamos uma vida é assustador. Se eles se assustam com nossa imagem, que apenas passa, imagine como nos assustamos com a imagem deles, que nos mata?
Resistência, procura, reconhecimento, atração, plenitude, pertencimento, olhar, atravessamento, corpo político, alegria, multidão, resistência, resistência, resistência, resistência, resistência, resistência, resistência, resistência. Essas são as palavras escolhidas por cerca de 50 pessoas LGBTQI+, com idades entre 20 e 41 anos e vindas de vários bairros da região metropolitana de Belo Horizonte, convidadas a definir em uma palavra sua experiência na cidade.
Rolê é o nome do projeto que traz uma série de fotografias e entrevistas que fiz com essas pessoas, buscando compreender como se dá a resistência através da ocupação e do trânsito nos espaços urbanos – que chão ela constrói. Elas escolheram os locais onde gostariam de ser fotografadas, aqueles em que se sentem mais confortáveis para transitar. Algumas delas participam de movimentos sociais, culturais ou políticos. Outras fazem o seu rolê ávidas por terem direito à circulação.
O assassinato de um corpo LGBTQI+ apaga a imagem subversiva que este corpo é. O medo ameaça essa imagem todos os dias, quando uma pessoa LGBTQI+ se disfarça para sair, evitando ser agredida. O corpo disfarçado continua lá, com desejos e verdades escondidas. Uma imagem não revelada, um segredo. Ao corpo-imagem “adaptado” é permitido o acesso. A imagem que mente é aceita, pois repete a lógica binária imposta pela norma.
A intenção não é fazer retratos da realidade “desviante”. Não se trata de retratá-la, mas de deixar um vestígio de imaginação, de sonho, de inacabado, de tempo presente em movimento. Fujo de uma imagem fixa (é irônico tentar fazê-lo através da fotografia), que remeta a um passado ou que congele episódios. Não se trata de uma imagem para guardar, ainda que possa ser memória. Trata-se de uma imagem para circular, para conversar com outras imagens, de outros tempos, para fazer o presente se estender.
Dedé acha inadmissível não passar por um lado da calçada porque o bar está aberto e há homens ali. “Eu vou passar porque eu vou, de cabeça lá em cima porque eu quero ver um cara mexer comigo. A minha atitude os incomoda, porque, para eles, o masculino e o feminino importam muito. A gente ocupa a cidade habitando, literalmente. Estar num lugar, fazer parte, integrar-se. O corpo militante para mim já vem antes de eu pensar nele, isto é o que me ajuda a habitar a cidade. É eu estar em um bar e, antes de saber que estão me olhando, eu já estou. Já estou fazendo o meu rolê. Percebo que estão me olhando e vou ter que lidar com alguma situação, mas não deixo de ir, não me rendo às faltas de acesso que temos.”
Vênus fala das duas estratégias que tem para sofrer menos. A primeira é a vestimenta. “Saio com a roupa que quero usar para sair e, por cima desta roupa, com a qual me sinto estupidamente confortável, vem a roupa que eu uso para ser menos assediada. Infelizmente, a estratégia é cobrir mais o meu corpo. A minha cara é a coisa de que mais tive que abrir mão. Militar com o rosto. Carregar uma máscara de resistência, do tipo ‘Não olha para mim e vai se foder’ com a cara mesmo, o que me tira a possibilidade de ser feliz, curtir e rir. Queria ter uma forma de salvar as mulheres, mas a única coisa que me salva é um mundo exclusivo feminino. Colar numa mesa com sete mulheres, num sábado, é a minha militância, o meu rolê.”
Nata sente-se mal em qualquer lugar. “Eu não consigo me identificar com uma porrada de coisas que são do feminino ou do masculino. Sou aquele ‘meio termo’. ‘Então você é bi’. Não sei se sou bi, não sei se sou lésbica, não sei se sou hétero. Não sei e foda-se. Como fazer para o lugar ficar menos desagradável? Se não for criticada por ser lésbica, serei criticada por ser bi; se não for criticada por ser bi, serei criticada por ser preta. Ou por ser moradora de periferia. Ou porque sou mulher. Sempre vão achar uma forma de encontrar um defeito em mim, sempre! Cresci com minha mãe me lembrando que, na prática, eu não era todo mundo: ‘Filha, não fale isso, porque você não é todo mundo, você não tem os direitos que todo mundo tem’. Cabe a mim procurar uma força que, às vezes, tem que ser conquistada sozinha. Você ocupa e você reeduca. Só de estar na rua a gente está reeducando as pessoas. Se a educação já foi dada, nosso papel, só por existir, é reeducar.”
A questão do conforto na cidade é diferente para Samu-rai. “Sou andrógena puxada para o masculino, e o masculino é respeitado. É muito mais fácil eu andar de madrugada e nada acontecer comigo. Raramente acontece assédio. Mas quando saio com uma mina, não volto para casa às três da manhã de ônibus, eu vou de aplicativo. E não é por mim, é por ela. Porque se alguém me descobre, fala: ‘Está querendo ser homem? Usar roupa masculina achando que é dona de si?’. Só homem pode fazer isso. Mas ocupar é não abaixar a cabeça nunca. Você vai levar pedrada, mas seja fiel a você mesmo. Falou A, você fala B, C, D com todos os direitos, com toda a sabedoria. Entenda como o espaço funciona, como você pode fazer parte dele.”
Sozinho, WILL está sempre desconfortável. “Em grupo, me sinto confortável em qualquer lugar, mas tenho medo quando saímos de bonde e a galera vai separando… A primeira coisa que veem em você é o corpo, a cor de pele, independentemente da roupa. Resistência, já saio de casa com essa palavra na cabeça. Homem, negro, alto. Não chegam perto de mim, mas caçoam de longe, riem por eu ser assim. As pessoas têm medo de mim. Temos que atravessar a barreira e ir. Não vai ser tranquilo, temos que enfrentar os olhares.”
Cristal sai de casa vestida, mas cuida das roupas. “Estou sempre com um short ou com uma saia e o body por baixo, depois eu tiro. É muito diferente para uma travesti branca, com passabilidade. No mundo hétero, é mais fácil ela entrar. Eu não tenho passabilidade. Quando as pessoas me veem, olham diretamente para meu pomo de adão. Então fiz até uma foto destacando meu pomo de adão. Lidem com isso! Não vou operar nada para o seu prazer.”
Quando morava na região da Pampulha, Gui se montava no ônibus. “Quando a pessoa do lado saía, eu colocava os adereços. Quando entrava outra, eu esperava. Quando ela saía, eu colocava a saia. Isso não por causa da família, mas por causa do meu bairro, para não ficar no ponto de ônibus montado. Sobre o relacionamento na rua, tenho um pensamento: a violência pertence a você e não a mim, é uma questão de medo seu, insegurança sua. Faço questão de tentar não absorver. Falo para a pessoa ir se tratar, faço evangelização da pessoa, falo: ‘Eu te amo!’ Ganho mais reprovação de mulheres idosas. Elas começam a rezar e eu digo: ‘Reza mesmo!’”.
Mariana gosta de andar pela cidade, mas diz que é “como se fingisse, de vez em quando, que estou completamente segura. Se ando de mãos dadas com minha namorada e vejo que vem uma pessoa olhando muito, a gente solta as mãos. Mas não deixo de ir aos lugares que quero. Se vou entrar em um banheiro público, me preparo porque é sempre um constrangimento. Na semana passada entrei no banheiro do shopping e tinha uma mulher com uma menininha. A garota falou: ‘Mãe, porque tem menino no banheiro de menina?’ E a mãe respondeu: ‘Não tem não, filha!’ E a filha continuou, apontando para mim: ‘Tem sim, mãe!’ E a mãe fez alguma coisa para ela ficar quieta. Mas a mãe podia ensinar e dizer que tem menina com cabelo curto também. Nem precisa entrar numa superquestão para a criança.”
Babi, para transitar confortavelmente na cidade, costumava usar fone de ouvido. “Mas me deu uma infecção de ouvido, então não posso usar mais. Se não sofro assédio, sofro transfobia na rua. Desde sempre, minha estratégia é também fazer minha macumba. Sair de casa benzida, protegida, com santo, com deus, com orixás, com buda, seja com quem for. O aplicativo também é uma estratégia, mas não saio de casa sem fazer a minha macumba.”
Idylla também usa aplicativos para voltar para casa na madrugada. “Para não ter que usar outras estratégias. Sou alvo de assédio machista o tempo inteiro, seja lá como estiver vestida. Às vezes saio de canivete, às vezes com desodorante aerossol, que é tão potente quanto spray de pimenta. Às vezes fecho a cara e fico dura para as pessoas terem medo de mim, apesar de ser mulher. Às vezes debocho, porque é sempre um escape. As pessoas ficam sem reação a partir do deboche. Já saí com chinelo de borracha na mão fazendo de doida. Já peguei pedaço de pau na rua para ir andando a pé para casa.”
Em busca de alianças instantâneas na madrugada da cidade, Marina conta que se sente muito confortável na região em volta do Mercado Central, nos bares perto da Praça Raul Soares, “onde está todo mundo fodido. Morador de rua, viados, desconstruidão, as tias, dona vendendo docinho ou mapa-múndi às três horas da manhã. Se rolar uma treta ali, vai todo mundo entrar no meio”.
Segundo um relatório do Grupo Gay da Bahia, em 2018, a cada 20 horas, um LGBT foi morto ou cometeu suicídio no Brasil. A esses números somam-se as mortes de quem vive escondido ou de quem passa diariamente por supostas curas religiosas e vive a vida pela metade, vagando sem sentido, como um zumbi.
Esgotados pela excessiva acumulação de imagens, as transformamos em likes. O embotamento visual parece ter atingido seu ápice na última década. Fadados a viver em bolhas virtuais, em um regime de imagens ainda mais restrito e repetitivo, somos dominados pela ilusão da autonomia e da livre escolha. Como sobreviver em um mundo de imagens quando a sua imagem sequer faz parte do repertório vigente? Repetir a sua imagem é resistir? Compartilhar mil vezes sua selfie não binária garantirá sua existência?
Não vivemos apenas no mundo virtual. De que forma se dá a experiência espacial e como ela se torna pauta desse movimento?
No final dos anos 1980, certa androgenia era tolerada em Belo Horizonte. Nunca me bateram. Era, no entanto, uma segurança falsa, já que ser andrógena não significava exatamente ser LGBTQI+ ou desafiar as normas de gênero. Era “coisa de gente à toa”, coisa de jovem. Mas exceder-se demais na vestimenta, beijar, abraçar ou mesmo andar de mãos dadas com alguém do mesmo sexo? Nem pensar, isso era perigoso. Bares e boates tolerantes já existiam, claro. Festas também. Aparecer à noite foi e ainda é uma estratégia de ocupação que, apesar de incompleta, traz alguma sensação de segurança. Entretanto, quando as imagens são pouco vistas, que mudança elas podem trazer?
Quando voltei para Belo Horizonte no final de 2005, depois de um período mais longo em Nova Iorque, encontrei outra cidade. Não que tudo tivesse mudado de uma hora para outra. A história da ocupação LGBTQI+ da cidade acontece desde sempre, mas, para mim, naquele retorno, ela me parecia mais visível e a vida, um pouco mais vivível. Vários movimentos e movimentações em ruas, praças e parques estavam começando e outros foram surgindo depois. Há a Praia da Estação, o duelo de Vogue, a Batalha do Passinho, o SLAM, a Gaymada, a Academia Transliterária, a Parada LGBT a cada ano mais forte, o 8 de março, o Dia da Visibilidade Trans, a Segunda Preta, o próprio carnaval, revitalizado por grupos da cidade, entre outros.
Ocupar a cidade marca o chão, de dia e à noite. Ganhamos território na reação coletiva das assembleias, passeatas, dos eventos culturais e artísticos que colocam em questão reconhecimento, aparecimento, condições iguais de vida e mobilidade. Também marcamos o espaço na desobediência de sair e andar pela cidade como bem entendemos. Reagimos à precariedade que enfrentamos por sermos diferentes daquilo que a norma estabelece. Há uma grande diferença entre não ser notada e ser respeitada.
Se os passantes não têm memória, as ruas têm. É nelas que me fio. No conjunto de experiências coletivas vividas no espaço. Na criação de novas ruas e caminhos imaginados, traçados no chão físico: o percurso de um bloco, o caminhar de uma pessoa, o trajeto de um grupo. Espaços que são ocupados hoje por nós foram ocupados, em outros tempos, por outras pessoas que, com coragem, desafiaram as ruas – que foram seguidas, tocadas, ameaçadas, presas e mortas.
Como resistir? Não existe uma única resposta. Gritar nas redes sociais que estão nos matando não impede que continuem nos matando, inclusive, através dessas mesmas redes sociais. Como subverter essa lógica? Denunciar é importante, assim como boicotar de modo estratégico. Mas talvez a resposta mais potente esteja em criar outras formas de socialização. E se a rua fosse nossa?
Como citar
GALUPPO, Adriana. Se essa rua fosse minha também. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 13, p. 86-97, mai. 2019
Por ordem de aparição: Cristal, Corsino, Breno (capa), Gui, Mayk, Babi, Mari, Nata, Jonatan, Marina, Ed, João Maria, Mariana, Darlene, Lázara, Samu-rai, Dedé, Vênus, David, Pierre, WILL.