SELVAGEM
DE NOVO
Texto de Caroline Fraser
Numa versão radical e acelerada da destruição que presenciamos na Amazônia, o desmatamento na Austrália gerou desertificação, extinção de espécies e agricultura inviável – mas também forçou a invenção de modelos urgentes de resselvagização no país.
Os mais tristes relatos sobre o meio ambiente de que se tem notícia são da Austrália. Um lugar de extremos radicais e o mais seco dentre os continentes habitados, a Austrália lidera o ranking mundial de aniquilação de espécies, exibindo as mais altas taxas de extinção de mamíferos do planeta. Parece apropriado que seja também a Austrália que possua as mais inspiradoras histórias sobre recuperação ambiental.
Plana e geologicamente mais estática do que qualquer outra massa de terra, praticamente não afetada pela ação das geleiras ao longo de 2,8 bilhões de anos, a Austrália tem algumas das mais antigas rochas do mundo, e seus solos são rasos e pobres. Varridos pelos salgados ventos oceânicos e queimados pelo sol, todos os seres vivos do continente desenvolveram estratégias peculiares para lidar com os baixos níveis de nutrientes e a escassez de água.
O continente é rico em espécies de flora e fauna estranhamente adaptadas. Com o bico semelhante ao de um pato, esporões venenosos nas patas, membranas interdigitais, cauda semelhante à de um castor e capaz de viver tanto em ambientes terrestres quanto aquáticos, o ornitorrinco, provavelmente o mais primitivo dos mamíferos, que sobrevive até os dias atuais, era tão grotesco à primeira vista que cientistas britânicos acreditavam que o animal era um embuste, uma coleção de partes coladas. O ornitorrinco é uma das três espécies existentes que formam sua própria ordem − os Monotremados −, únicos mamíferos que põem ovos. As outras são dois tipos de équidnas, encontradas apenas na Austrália e na Nova Guiné. As équidnas se assemelham a ouriços, cobertas de espinhos e pelos, e possuem uma espécie de focinho alongado, semelhante ao dos tamanduás, que pode funcionar como um snorkel quando nadam.
Além de coalas e cangurus, há marsupiais carnívoros: os quolls, que parecem ser um cruzamento entre doninhas e gatos, enfeitados com grandes pintas brancas ao longo de todo o corpo; dunnarts, marsupiais que se assemelham a ratos, mas sem pelos nas caudas; phascogales, que possuem caudas extraordinariamente eriçadas, como vassouras; bandicoots e bilbys, que são como um cruzamento entre cangurus e roedores. Há também gambás e planadores de todos os formatos, tamanhos e descrições.
A chegada dos aborígenes ao continente anunciou uma onda de extinções entre os grandes mamíferos. Um leão marsupial, um rinoceronte marsupial, um canguru predador e vombates gigantes, do tamanho de carros, todos desapareceram. A chegada dos europeus foi ainda mais letal, inaugurando a praga da dizimação de espécies nativas pelas espécies introduzidas: gatos domésticos, porcos, cabras, raposas, camelos, burros e, abominavelmente, coelhos. Desde 1788, esses animais têm sido os responsáveis, juntamente com a transformação dos habitats naturais em áreas agrícolas e urbanizadas, pela extinção de 61 espécies de plantas, 27 espécies de mamíferos, 23 espécies de pássaros e 4 espécies de sapos.
Talvez a mais patética das extinções australianas tenha sido a do tilacino, ou tigre-da-tasmânia. Maior marsupial predador a sobreviver à primeira onda de extinções, a espécie foi extirpada da Austrália continental e da Nova Guiné depois da chegada do lobo selvagem, mas sobreviveu na Tasmânia. Nas raras fotografias em que aparece encarando a câmera com seus silenciosos olhos escuros, o tigre-da-tasmânia assemelhava-se a um cão com listras em toda a parte traseira, embora a criatura também tenha sido comparada a gatos, lobos e hienas. O tigre-da-tasmânia era um caçador de wallabies, animais que se assemelham a pequenos cangurus. O zoólogo australiano Tim Flannery descreve sua extinção, acelerada por um programa de recompensas do governo, vigente entre 1888 e 1912, que oferecia uma libra pelo animal adulto morto ou dez xelins pelo filhote:
O último tilacino a passar sobre a Terra foi uma fêmea mantida no zoológico Beauxnaris, próximo a Hobart. Entre os anos de 1935 e 1936, o zoológico enfrentou problemas com a equipe de funcionários, o que significou que os animais foram negligenciados durante o inverno. (…) Na noite de 7 de setembro, a tensão se tornou grande demais para a última dos tilacinos e, abandonada pelos vigilantes, ela fechou seus olhos pela última vez.
Tantos foram os mitos que cresceram em torno dessa criatura − as pessoas são relutantes em acreditar que o tigre-da-tasmânia realmente se foi − que as buscas continuam. Se sua sobrevivência não é completamente impossível, uma vez que extensas áreas no sudoeste da Tasmânia ainda não possuem estradas e são praticamente inacessíveis, tudo indica que ele foi mesmo extinto. Em 1999, o Museu Australiano lançou um ambicioso projeto para tentar clonar a espécie, utilizando DNA extraído de amostras, incluindo de um filhote de 1866, preservado em álcool etílico. O diretor do museu caracterizou essa tentativa como sendo “o mais fascinante projeto de biologia que viria a ocorrer no milênio”, mas outros argumentaram que o dinheiro seria mais bem empregado salvando espécies ainda existentes.
No início da década de 1950, o governo australiano abriu o oeste para a agricultura, liberando um milhão de acres de terra por ano para os agricultores do War Service Land Settlement Scheme (Sistema de Assentamento de Terras do Serviço de Guerra), considerado o maior programa de loteamento do hemisfério sul. Em um movimento de apropriação típico da contemporaneidade, os agricultores desmataram um enorme pedaço do continente. Depois de apenas uma década, o desmatamento das terras no sudoeste árido da Austrália desencadeou processos cataclísmicos de seca, salinização e falência.
Essa extraordinária catástrofe ambiental e econômica foi registrada no documentário A Million Acres a Year (que corresponderia, em português, a Um milhão de acres por ano), exibido pela primeira vez na Austrália em 2003. Com entrevistas e cenas históricas, o filme relata como o governo australiano, sob slogans publicitários que ressaltavam o “milhão de acres”, liberou os veteranos da Segunda Guerra Mundial para explorarem as terras, ignorando os efeitos que estavam prestes a ser desencadeados. As terras nativas da Austrália ocidental foram as mais baratas. Sendo o hectare vendido inicialmente por 1,36 dólares australianos – e com 50 por cento de desconto para militares –, dentro de um prazo de seis anos, 500 mil acres haviam sido cercados e 250 mil já haviam sido empregados para plantação de trigo ou pastagem de ovelhas. Milhares de hectares foram desmatados pelo que um fazendeiro descreveu como “máquina terrível”, um disco cortante que rasgava a vegetação como um tubarão. Outros milhões de acres foram queimados para remover a mata nativa. Um chefe local do corpo de bombeiros lembrou que queimar 300 acres era considerado “um dia fraco de trabalho”. Um agricultor se recordou da terrível imagem de cangurus “tentando escapar por entre as chamas… Aquilo me fez passar mal… Era tão pouco natural. Não havia escapatória”.
Também não havia como escapar das consequências. O continente desenvolvera um frágil equilíbrio ao longo de bilhões de anos de chuva, vento e calor, e o desmatamento destruíra esse equilíbrio com um só golpe. Em 1969, veio a primeira seca. Entre 1971 e 1972, veio outra. Em 1981, as chuvas estiaram novamente. Entre 1982 e 1983, a área estava a ponto de se tornar um reservatório de poeira; 10% das terras agrícolas estavam literalmente indo pelos ares. As plantas nativas, de raízes profundas, adaptadas aos solos, aos ventos secos e à salinidade do continente, usavam água de maneira eficiente. Quando foram removidas e substituídas pelas raízes superficiais do trigo, a água penetrou em subsolos salinos, dissolvendo os sais e trazendo-os à superfície. A introdução de novas culturas havia alterado também o clima, afetando taxas de evaporação e minimizando a formação de nuvens. O desmatamento tinha destruído o solo e o ambiente que os agricultores esperavam controlar.
O plano de governo foi abandonado. Mas milhares de agricultores já estavam enrascados, sem condições de vender ou de se sustentar. Um fazendeiro disse: “Você mal podia ver uma centena de metros à sua frente com toda a poeira que pairava ao redor”. Outro brincou: “Se você deixar uma fazenda para um filho nos dias de hoje, ele pode te processar por abuso infantil”. As repercussões foram tão dramáticas econômica, emocional e visualmente que quase todos os agricultores entrevistados no filme reconheciam que a devastação havia sido causada por suas próprias ações.
Foi se tornando mais claro para aqueles que haviam preservado pedaços de “mato”, como é chamada a terra nativa na Austrália, que o próprio mato era o tesouro, e não as terras agricultáveis pobres em que ele havia se transformado. O mato não era, como o governo havia cinicamente avaliado, uma “planície de areia inútil”. Ele estava repleto de uma biodiversidade endêmica. No ano 2000, a região sudoeste da Austrália seria incluída em uma lista dos 25 “lugares de maior biodiversidade” do mundo, com mais de oito mil espécies de plantas, 48% das quais são endêmicas. O Parque Nacional Stirling Range, que faz fronteira com muitas terras agrícolas danificadas, abriga 1.600 espécies de plantas; o Parque Nacional do Rio Fitzgerald, ao leste, abriga 1.900 espécies, 75 das quais não existem em nenhum outro lugar da Terra. Na primavera e no verão australianos, esses parques nacionais, bem como as porções de mata ao redor deles, explodem em uma exposição exótica de formas e cores de florescências: hakeas, bâncsias, orquídeas, driandras, eucaliptos, flores-gatilhos, patas-de-canguru-anãs, verticordias, helicônias. Algumas flores evoluíram junto com seus próprios polinizadores marsupiais: o pequeno gambá-do-mel insere seu nariz afunilado em flores de angiospermas, particularmente aquelas das famílias Proteaceae e Myrtaceae, alimentando-se exclusivamente de néctar e pólen. A necessidade de lidar com um clima extremo ao longo de milhões de anos fez com que se desenvolvesse uma variedade extraordinária de mecanismos entre plantas e animais que estavam apenas começando a ser compreendidos.
Poderia esse ecossistema único se regenerar? Ninguém sabia.
Gondwana Link é a resposta de revitalização e “resselvagização” à realidade denunciada no filme. Sua ambição é vasta, objetivando proteger uma zona que vai desde a ponta sudoeste do continente, passando pelo sul da península, até o Grande Deserto Arenoso. Mas o projeto caminha a passos singelos, buscando restabelecer uma ligação física de mata nativa entre dois parques nacionais.
A partir de 2002, vários grupos ambientalistas nacionais e regionais começaram a juntar suas economias e suas equipes para criar Gondwana Link. O ambientalista e narrador do documentário A Million Acres a Year, Keith Bradby, coordenou o projeto. Sua equipe delineou uma estratégia global, direcionando o poder de aquisição e os conhecimentos especializados dos envolvidos para uma faixa de 70 quilômetros de largura entre os parques nacionais Stirling Range e Fitzgerald River, área que passou a ser chamada de “Fitz-Stirling”. O plano era comprar terra de forma direta, trabalhar com fazendeiros em medidas de proteção à mata nativa de suas fazendas, e encorajar pessoas a investir seu dinheiro na aquisição de áreas para conservação. Terrenos degradados seriam replantados. Terrenos intactos seriam protegidos.
No papel, o projeto parece um quebra-cabeça parcialmente finalizado. Do lado esquerdo do mapa, um grande bloco verde representa o Parque Nacional Stirling Range; do lado direito, um bloco maior, que se estende até o oceano, é Fitzgerald River. Entre os dois, em um campo branco – terra desmatada – estão espalhadas algumas peças. Algumas delas representam mata nativa remanescente, nunca desmatada. Uma grande peça verde-clara no meio representa um projeto de reserva natural. O resto – um punhado de propriedades que Gondwana Link tem conseguido comprar e replantar – é parte de um dos maiores esforços conjuntos já vistos para ressuscitar a natureza.
Conheci Keith Bradby em seu escritório em Albany, cidade costeira ao sul de Perth. Alegre, utilizando muitas gírias australianas, botas de fazendeiro e um chapéu de caubói típico, Bradby me mostrou duas imagens emblemáticas do território. A primeira era a capa de Men Against the Earth (que corresponderia, em português, a Homens contra a Terra), um romance de 1946 sobre uma família de agricultores no oeste da Austrália, uma imagem heroica do que Bradby chamava de “a velha e contraditória visão”: um homem arando a terra, cavalos, duas árvores que parecem meio sufocadas, desenhadas sob uma luz sinistra, o solo sendo revolvido. A segunda imagem era uma fotografia deslumbrante que ele congelou na tela de seu computador. Tirada do ar, ela mostrava a paisagem australiana do nordeste de Gondwana Link com uma linha gritante visível no centro. De um lado: uma extensão de verde escuro coberta por nuvens. De outro: campos de trigo e palha seca, com quase nenhuma nuvem à vista. Era a prova absoluta, incontestável, do poder da monocultura de causar a desordem.
A linha visível na fotografia era a famosa Cerca à Prova de Coelhos de Número 1, a cerca mais longa do mundo − 1.833 quilômetros −, construída em 1901, na tentativa desesperada de manter os coelhos longe da Austrália ocidental, depois que 24 coelhinhos foram soltos no continente por um certo Thomas Austin, um imigrante britânico que queria algo conhecido em que atirar. Desde o início, ficou claro que a cerca à prova de coelhos não era bem à prova de coelhos. Quando coelhos foram encontrados do outro lado da cerca de número 1, as de números 2 e 3 foram rapidamente erguidas. E elas rapidamente falharam (a astúcia inata dos coelhos).
Mas a cerca havia, inadvertidamente, criado um dos melhores experimentos climáticos do mundo, ao separar a terra virgem da agricultura. A vegetação nativa e as áreas de cultivo, como as de trigo, possuem diferentes características refletoras, o que é conhecido como “albedo”. Ao substituírem terra nativa por plantações de trigo, os agricultores haviam substituído plantas escuras e menos refletoras por outras mais claras e mais refletoras. E pior: haviam substituído plantas que transpiravam ao longo de todo o ano por uma vegetação anual que só transpirava durante os meses de inverno. Instantaneamente, quase que inconscientemente, eles haviam criado as condições para seu fracasso: as nuvens que se formavam rotineiramente sobre a mata nativa − refrescando e facilitando mais evaporação − literalmente evaporaram pelos ares. As secas que se seguiram foram produzidas pelo homem. “O que fizemos foi secar o solo”, afirmou Bradby. “Agora, estamos ressecando-o ainda mais, com as mudanças climáticas”. Gondwana Link, portanto, não é somente um esforço para salvar e restabelecer espécies nativas de plantas e animais, no sentido de preservá-los para o futuro. Sua importância é também a de ser uma proteção contra mudanças climáticas.
Visitei diversas partes de Gondwana Link: Chereninup, revegetada em 2003; Nowanup, local de revegetação e um novo centro de encontro para a população aborígene da região; e Yarrabe, uma grande extensão de terra que se estende para além do Parque Nacional Stirling Range.
Amanda Keesing e Paula Deegan, ambas da equipe de Gondwana Link, levaram-me até a reserva de Chereninup Creek, onde as plantas revegetadas já atingiam a altura de nossas cinturas. Elas me contaram sobre o dia memorável em que, no ano de 2003, parceiros, equipe e voluntários se encontraram na ladeira onde estávamos para plantar milhares de minúsculas mudas nativas e sementes de 50 espécies endêmicas coletadas em terras próximas. Vários anos depois, mais de 80% das mudas estavam sobrevivendo e, até mesmo, prosperando. As sementes plantadas em solos argilosos tinham se saído bem. Aquelas plantadas em solos barrosos haviam prosperado um pouco menos, mas cerca de 600.000 plantas haviam se firmado. Os arbustos foram proliferando, apagando os corredores em que haviam sido plantados. “É ilusório pensar que podemos restabelecer a mata nativa”, disse Keesing, referindo-se à mistura mais complexa de espécies em territórios intocados. “Mas é possível estipular diferentes alturas e obter configurações o mais próximas possível da mata nativa”.
Mais tarde, tive a oportunidade de conhecer Peter Luscornbe, do Serviço de Sementes de Nindethana, que tinha fornecido algumas das sementes nativas usadas nos projetos de Gondwana Link. Seu galpão, fora de Albany, é um repositório de uma das mais diversificadas e importantes coleções da flora australiana, mantida, em grande parte, em velhos potes de sorvete. O próprio Luscombe vem de uma família de agricultores, mas, ainda na adolescência, passou a desprezar os negócios dos parentes porque “destruíam tudo em nome do lucro”. Ao descrever o processo de revegetação, ele observa que, ironicamente, ele consiste em desfazer tudo aquilo que os fazendeiros fizeram. “Você tem que raspar toda a camada superficial do solo”, disse ele. “É o contrário do que você faria na agricultura convencional. A camada superficial do solo está cheia de sementes que foram introduzidas. É fértil demais, cheia de adubos, úmida demais, muito próspera”. As plantas nativas, disse ele, “gostam de respirar, de ter um pouco de ar. Então é só jogar fora todo esse lixo e fazer um pequeno rasgo para obter um canteiro estéril. As plantas nativas são tão eficientes que elas crescem como se fosse um solo perfeito”.
Bem ao lado de Chereninup, um agricultor chamado Brian Penna mantinha uma parte significativa de vegetação nativa para controlar a salinidade. Alto e bronzeado, ele piscava enquanto falava: “Todos aqui enfrentaram problemas de degradação por causa do sal, do vento e da água. Qualquer um com o mínimo de bom senso percebe as vantagens da mata”. Ele estava ajudando Gondwana Link com o controle de ervas daninhas nas áreas de revegetação e com a vigilância do fogo. Com mais de seis mil acres aráveis, Penna manteve 5.600 acres de mato nativo, a maior parte dele acompanhando o percurso dos riachos. “É uma porcentagem de mato maior do que a de qualquer agricultor que eu conheço”, disse ele, orgulhoso. “Há um pouco de personalidade por aqui. As flores silvestres são bem espetaculares. Eu não ligo de caminhar um pouco no mato”.
Foi uma viagem de carro curta de Chereninup para Nowanup. Havia revegetação em Nowanup também, mas o detalhe mais surpreendente era a base de um penhasco onde um modesto “ponto de encontro” noongar havia sido construído em 2007, numa colaboração entre Gondwana Link e a população local. Sob um telhado de palha aberto, placas de argila redondas e avermelhadas estavam fixadas em um semicírculo, cada uma exibindo o nome de uma das comunidades noongar dentro do contorno de um bumerangue: Albany, Warriup, Doubtful Island, Twertup, Borden, Fitzgerald, Ravensthorpe, Gnowangerup, Salt River.
Eugene Eads, um noongar que estava coordenando o programa Caring for Country (que corresponderia, em português, a algo como Cuidando da Terra), chamou o ponto de encontro de “universidade do mato”, um lugar onde os mais velhos podiam se encontrar para experimentar e relembrar as antigos hábitos e os mais jovens podiam aprender sobre as tradições aborígenes locais.
Na Austrália, os aborígenes só conquistaram o status de cidadãos independentes em 1948, apesar de muitos terem servido ao país em ambas as guerras mundiais. Eles não eram contados em censos − na verdade, eram considerados parte da “fauna” do país − até 1967, quando finalmente tiveram seus direitos legais e proteções garantidos pela Constituição. Desde então, uma onda de decisões da Alta Corte estabeleceu o direito dos indígenas à terra sem, no entanto, negar-lhes os direitos e os títulos de não indígenas. Os indígenas podem agora exercer atividades tradicionais − caça, pesca e comércio − nas terras onde tiveram estabelecido seu título de propriedade, mas a decisão com relação a que direitos adicionais de propriedade, se houver algum, lhes serão concedidos, continua em suspenso. Em 2006, um tribunal federal decidiu em favor do título do povo noongar, que abrangeria toda a região metropolitana de Perth, decisão atualmente em recurso pelo estado da Austrália Ocidental.
Nowanup é parte do esforço de Gondwana Link para colaborar com os noongars da região, respeitando sua história, sua cultura e seus direitos sobre a terra. Mas notei uma certa frieza entre os noongars e os agricultores, que logo se afastaram depois de terem bebido seu chá. Essa era a versão australiana do que acontece em todo o mundo, onde quer que proprietários de terras, conservacionistas e povos nativos tenham que lutar por necessidades e interesses conflitantes. Essa peça do quebra-cabeça não é visível no mapa. Mas talvez seja a mais significativa de todas.
Na Austrália, o aquecimento global não é uma teoria; ele já chegou. O que aconteceu com os agricultores do sudoeste do país está acontecendo agora em todas as regiões agrícolas. Em fevereiro de 2009, 173 pessoas morreram num dos piores incêndios florestais já vistos; na semana anterior, durante uma onda de calor em Melbourne, 200 pessoas morreram e 4.000 raposas voadoras − grandes morcegos frutívoros que se empoleiram em parques das cidades − caíram mortos das árvores. As taxas de suicídio aumentaram. As taxas de depressão aumentaram. Todas as grandes cidades decretaram restrições para o uso da água. Moradores de Brisbane estão bebendo água reciclada, parte de um programa chamado “toilet to tap”, ou “do vaso à torneira”.
A mais impressionante das realizações de Gondwana Link foi a de tomar esse desespero e canalizá-lo para ações que podem ajudar a Austrália a corrigir o curso de seu desenvolvimento ambiental. O movimento se fortaleceu por meio de um esforço de cooperação em toda a região. As relações que se estabeleceram, cultivadas com tanto cuidado quanto as próprias plantas e solidificadas através de confraternizações, encontros, reuniões e mesmo conflitos, criaram uma ampla rede comunitária de proteção para diferentes habitats, áreas ribeirinhas e espécies ameaçadas.
Pude verificar isso em todo o interior. Em Manypeaks, cidade situada ao norte de Albany, Doug Russel, um pecuarista politicamente conservador que possuía três fazendas e 900 cabeças de gado, tinha empreendido um extenso trabalho de restauração, cercando a mata nativa com ramos espinhosos e arbustos secos que funcionavam como quebra-ventos. Ele percebeu que a conservação da mata nativa poderia melhorar o microclima em sua propriedade, protegendo seus animais contra ventanias secas e adversas e reduzindo as taxas de evaporação em tanques de armazenamento de água. Orgulhoso, ele me mostrou sua protegida floresta particular de eucaliptos “karri”, um pedaço exuberantemente confuso de árvores e vegetação rasteira, cheio de eucaliptos, orquídeas e vinhas. Ele havia percebido a conexão entre a conservação e seu próprio futuro econômico.
Minha próxima parada foi em Yarrabee. Com 2.300 acres − 798 deles de mata nativa −, aquela era a maior propriedade já adquirida pelo projeto. Fazia fronteira com a borda nordeste do Parque Nacional Stirling Range e se estendia para além da área central, proporcionando excelentes maneiras por meio das quais a flora no Parque poderia gradualmente expandir seu alcance. Replantar 600 hectares de terra desmatada em Yarrabee seria a maior plantação de vegetação nativa já realizada na Austrália.
Keith Bradby descreveu Yarrabee como sendo um antigo “campo de batalha”, referindo-se ao fato de que os antigos moradores haviam lutado contra as forças da natureza. Estava claro que a natureza havia vencido, a julgar pelo barracão abandonado e arruinado onde os agricultores haviam montado acampamento. Bradby contou que não era incomum que os fazendeiros morassem e criassem suas famílias nas mesmas construções de metal que eram comumente usadas como celeiro, sem isolamento térmico, ventilação ou água corrente. Abaixo da casa, havia mais evidências de desespero: o sal começara a aparecer em manchas brancas e duras, próximas às margens da propriedade.
Bradby estava preocupado com Yarrabee: o replantio inicial, em 2006, tivera que ser cancelado devido a um período de seca. Então, até aquele ponto, havia pouco para ver, apenas uma dúzia de fileiras de mudas minúsculas lutando para crescer na terra seca. Ele também estava preocupado com o avanço do capim-sul-africano que, em ritmo invasivo e constante, chegava até a estrada e seguia em direção à propriedade recém-adquirida. Mas o potencial do terreno para restauração se mostrava de forma impressionante em extensas faixas de mata não devastada e corredores de mata nativa onde altas árvores de murta australiana balançavam ao vento.
“Não acho que estamos exatamente reflorestando”, disse ele. “Estamos controlando a salinidade, impedindo que o solo seja levado pelo vento”. Ele admitiu que era impossível recriar a enorme complexidade da biodiversidade: “Colocamos aqui 120 espécies, e na mata original existem 300 ou 400. Mas, em Chereninup, os répteis e as équidnas já estão reaparecendo. A maioria dos animais vai poder se mover nessas terras dentro de dez anos. Alguns, porém, não poderão habitá-las nos próximos cem anos”.
Havia um nítido contraste entre sua fala e a retórica superficial e promocional de iniciativas mais extravagantes de reflorestamento. Suas preocupações eram tranquilizadoras: ele era um realista. No entanto, muito fora feito. Até o ano de 2009, mais de 23.200 acres tinham sido protegidos na paisagem de Fitz-Stirling através da compra direta ou de iniciativas de preservação de proprietários privados. Em toda a faixa, mais de 2.400 acres haviam sido plantados com 120 espécies nativas. Houve também progressos significativos na redução em quase 40% dos espaços vazios entre áreas de vegetação protegida.
Dirigindo um pouco mais por entre o capim-sul-africano, Bradby franziu o cenho. “Ainda estamos naquela estreita janela de tempo antes de os problemas de recuperação aumentarem”, disse ele. “Uma coisa que não podemos perder é tempo”.
Caroline Fraser
Escritora e jornalista americana, foi repórter da revista New Yorker. Este ensaio foi extraído de seu livro Rewilding the World.
Como citar
FRASER, Caroline. Selvagem de novo. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 8, p. 114-119, set. 2015.
© Caroline Fraser. Todos os direitos reservados. Este trabalho não pode ser reproduzido.