TALVEZ
FLORESÇA
Texto de Marcio Gibram
No canteiro central da avenida
onde a arborização urbana
plantou árvores e grama
dona Rosália plantou
pimenta malagueta
o pedestre quando passa
atravessando
não liga
se o sinal abre para os carros
e ele tem que esperar
porque enquanto espera
ele colhe pimenta
para o jantar
no dia da entrega
dos jardins da praça
os jardineiros terminando
o plantio e a limpeza
ficam todos espantados:
um belo carrão para
e lá de dentro
desce uma senhora
com ares bem distintos
e enquanto o motorista
espera em fila dupla
atrapalhando o trânsito
ela arranca mudas
de flores dos canteiros
e mesmo diante
dos gritos dos jardineiros
ela não se faz de rogada
entra no carro e diz da janela:
“eu pago imposto”
área pública sempre foi
um problema
na gestão da cidade
o público ou é de todos
ou não é de ninguém
a cidade
toma posse dos espaços
e usa de acordo
com sua necessidade
o tempo passa
a cidade cresce
e vai mudando
o córrego com sua mata
viram bota fora
e ribeirão de esgoto
os ratos, baratas e outros bichos
incomodam as pessoas
que moram perto
que num movimento popular
exigem que aquele ribeirão
seja canalizado e transformado
em avenida sanitária
toda arborizada com pracinha
e fonte de água tratada
para a criançada poder brincar
tem casa na cidade
que é construída
de forma muito arriscada
são as chamadas
áreas de risco
algumas dessas casas
às vezes são demolidas
esse lugar que fica
é chamado
de área remanescente
não cabe
uma quadra
uma praça
nem pode outra casa
se ficar vazio
cabe muito lixo e entulho
e coube um jardim
mas não foi o ato de plantar
flores árvores e folhagens
que fez de um terreno baldio
um jardim
foi um abaixo assinado
que os vizinhos do novo jardim
enviaram para a prefeitura
exigindo que fizessem
a manutenção
antes área remanescente
agora jardim municipal
o município
não mandou jardineiro
e alguém jogou lixo
veio a limpeza urbana
e limpou junto com o lixo
as plantas do jardim
agora de tempos em tempos
tem que voltar e limpar
em outro canto da cidade
casas são demolidas
removidas da várzea do ribeirão
que quando enche
inunda e provoca acidentes
mas a moradora vizinha
dos escombros da demolição
no meio dos entulhos
coloca a piscina da filha
e faz daquele monte de pedras
o mais refinado clube
seu Osvaldo
mora do lado do córrego
ou canal de esgoto
mas sendo água
vale represar
e fazer no quintal
um açude para peixes
e de tardinha
ele pega o acordeão
e enquanto os meninos
com latinhas e peneiras
tentam pegar as piabas
ele toca para os amigos
e faz daquele
lago de água suja
uma praça de música e pesca
apropriar-se daquilo
que não é apropriado
parece ser bem mais fácil
acho justo
porque não posso eu
num pedaço de terra
cheio de lixo
fazer um jardim
a cidade continua crescendo
e não é por causa de gente
que vem do interior
cresce dela mesma
vai ocupando
os espaços vazios
as periferias
no futuro a crosta terrestre
vai ser uma só megalópole
toda coberta de cidade
mentira
para crescer uma planta
qualquer fresta serve
a cidade está cheia
de terra para se plantar
mesmo no centro mais urbano
tem sempre um canto
que cabe uma plantinha
quando a cidade cresce
às vezes as casas
chegam antes das ruas
antes dos quarteirões
dos postes e dos canos d’água
e vão se ajuntando
uma ao lado das outras
se encaixando
se apertando
na hora de passar avenida
tem que tirar muita casa
não pode ir fazendo
milhões de curvas
desviando das casas
porque na avenida
também passa
ônibus e caminhão de lixo
quando tiram as casas
jogam o entulho no aterro sanitário
e junto jogam os jardins
que existiam nessas casas
desses jardins
mais de 50 mil mudas
foram feitas
num parque da cidade
a tal madame com motorista
foi a grande responsável
ela paga impostos
eu e você também
se ela pode pegar as mudas
dos jardins das praças públicas
é porque
as praças e parques públicos
deveriam ser
viveiros de mudas
para todo mundo
poder pegar
um jardim
em local público
transforma a área
em espaço público
no meio das roseiras
debaixo da mangueira
bem que cabe um banquinho
para esperar o ônibus
de ponto de lixo
a ponto de ônibus
ideias para um futuro próximo:
em cada pedaço
um jardim
quem faz
o cidadão
as mudas
eles pegam
no viveiro do parque
quem faz as mudas
eles mesmos
como
eles pegam sementes
e brotos na cidade
quem não quiser plantar
planta na internet
fazendinha de jardins
o mapa da cidade
que você vai preenchendo
os espaços livres
com jardins
vai no google
pega a foto do lugar
aponta o espaço
e pronto
começa o jardim
chama os amigos
que ninguém sabe nada
de jardinagem
chama um jardineiro
um dia de jardineiro
é uma aula
a céu aberto
leva lanche
faz picnic
na hora do almoço
cada um traz
sementes, mudas, vasos
e pronto
coloca um pin nele
um greenpin
as beiras dos córregos
os canteiros das avenidas
os lotes vagos
as praças dos viadutos
todas com gramados mal cuidados
cheios de ervas daninhas
quando passo
já imagino
e se nesse lugar tivesse
quadra de basquete
brinquedos para crianças
convidando o cidadão
a ocupar aquele espaço público
sonhar mesmo
sonho alto
uma cidade em que
não só os jardins são públicos
mas que em cada jardim
tenha um pin
aquele greenpin
mas esse pin tem dentro
ferramentas de jardinagem
o cidadão chega
passa o cartão
pega a enxadinha
e começa a jardinar
depois devolve
e senta no banquinho
para ver email
porque do pin sai wifi
não é para ser moderninho não
é que praça é local
para reunir pessoas
e a internet faz um pouco isso
tem cidade que tem isso
mas com bicicletas
você passa o cartão
e depois devolve
bem que poderia ser
ferramenta de jardinagem
mesmo o jardineiro da prefeitura
não precisaria levar ferramentas
era só chegar e trabalhar
mas a prefeitura
ainda ia ter custo com a internet
ia nada
no meu sonho
quem ia distribuir a internet
era uma loja vizinha
um condomínio
agradecidos ainda
por agora ali
ter um jardim
algumas pessoas
quando tem que sair
de suas casas
ficam aborrecidas
porque em apartamento
não tem quintal para plantar
o jardim do condomínio
é um quintal para plantar
mas tem gente que mora em lugar
que nem no condomínio
tem quintal
a rua
é um quintal para plantar
tem histórias divertidas
como a da senhora
que fez um jardim na sala de estar
do apartamento da prefeitura
ou da senhorinha
que quando foi
para o novo apartamento
não conhecia vaso sanitário
e plantou ali um pé
de comigo ninguém pode
e a da dona Rosinha
que era muito boa com plantas
vivia de cesta básica
que ganhava
sua casa era apenas
quarto e banheiro
seu terreno ela alugou
para o moço
fazer ferro velho
no terreiro ela cozinhava
embaixo de uma coberta
de telhas velhas
e no pouco que restou
ela plantou
tanto
que da casa dela
nasceu um viveiro inteiro
tinham roseiras enormes
dentro de latinhas
de molho de tomate
tinha ameixeira
dando ameixa
em bacia de lavar roupa
tinha também muita flor
em caixinhas de leite
e garrafa pet
mas no peitoril
da única janela
enfileiradinhas
caixinhas de fósforos
cheias de mudinhas
Marcio Gibram
Biólogo que há mais de 25 anos cata sementes e brotos nos matos e cidades para transformar em mudas, é técnico ambiental do Programa Vila Viva da Prefeitura de Belo Horizonte.
Como citar
GIBRAM, Marcio. Talvez floresça. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 6, p. 60-61, abr. 2013.