TINHA,
MAS ACABOU
Texto de Xavier Bartaburu
Ilustrações de Leonora Weissmann
Como sobrevivem (ou não) o palmito-juçara, o berbigão, o arroz vermelho, o pequi, o piracuí, o babaçu, a erva-mate, o umbu, o licuri, a mangaba, a cagaita, o cambuci, o maracujá-da-caatinga e o jaracatiá.
Você há de ter notado: do nada, o palmito sumiu. O do tipo juçara, especificamente, aquele de carne tenra e saborosa, que se parte em rodelas ainda na primeira garfada. Das gôndolas de supermercado aos bufês a quilo, ele foi sendo sistematicamente, e sem alarde, substituído por toletes de outras palmeiras nativas, mais fibrosas, como pupunha ou açaí. Um ou outro ainda se acha, a preços nada modestos, uma vez que seu cultivo exige grandes investimentos. Se for barato, desconfie: é bem provável que o palmito tenha sido extraído de maneira ilegal em algum naco virgem de Mata Atlântica (o corte de espécies vegetais nativas é proibido no Brasil), como se fazia antes, no tempo em que se achava que nossos recursos naturais durariam para sempre. No caso da juçara, seria menos grave se o caule – de onde é retirado o palmito – rebrotasse. Mas não: ao contrário da pupunha e do açaí, cada juçara decapitada é uma árvore morta. E tantas foram mortas, por tantas décadas, que, de repente, um de nossos mais significativos tesouros culinários simplesmente desapareceu de nossos pratos. Tinha, mas acabou.
Como o palmito-juçara, outros milhares de alimentos no mundo correm risco de extinção – do queijo da Transilvânia à baunilha de Madagascar. Algo em torno de 2 mil produtos, segundo o catálogo de salvaguarda que vem sendo elaborado desde 1996 pelo Slow Food, ONG com sede na Itália, presente em 150 países. A essa lista, deram-lhe o nome de Arca do Gosto, e é mesmo um pouco como a de Noé, só que composta de frutas, grãos, raízes, peixes, moluscos e de tudo aquilo que a natureza providenciou e o homem transformou em comida. No entanto, sem uma nau – um armazém, que seja – onde estocar tudo isso, o que torna a empreitada um tanto mais trabalhosa. Para isso, o projeto articula uma rede mundial de produtores, pesquisadores e cozinheiros, empenhados em identificar e mapear, em nível local, quais sabores estão em vias de perecer sob o dilúvio da agroindústria ou da devastação ambiental.
Muito já se perdeu, vale dizer. Sobretudo a partir das trocas comerciais iniciadas na Idade Média e ampliadas durante as grandes navegações – quando a Europa se tornou o grande supermercado global, responsável por redistribuir, entre os continentes, ingredientes antes restritos a uma única região. Foi como o milho, o tomate, a batata, o feijão e o cacau das Américas chegaram às mesas do mundo, ao passo que, aqui, incorporamos em nossa dieta itens como o arroz, a banana, o coco e a manga – todos asiáticos –, além do trigo europeu. Se, por um lado, isso enriqueceu as receitas em todos os cantos do planeta, por outro, causou o empobrecimento das variedades locais. Dos 5 mil tipos de batata que os agricultores andinos lograram selecionar ao longo dos séculos, desde os tempos pré-incaicos, pouco mais de uma dúzia é comercializada hoje. Só no México, estima-se que 80% das variedades de milho tenham desaparecido em menos de cem anos.
Essas perdas se intensificaram sobretudo com o desenvolvimento do agronegócio, obcecado em desenvolver variedades cada vez mais produtivas, quando não geneticamente modificadas, capazes de gerar lucro com o mínimo investimento. Isso não só reduz a diversidade genética como também promove a extinção em massa de produtos artesanais, que perdem lugar no mercado em favor de alternativas mais baratas e de mais fácil alcance. Como consequência, assistimos ao abandono progressivo do campo, onde a falta de estímulo irremediavelmente impele as gerações mais jovens ao êxodo rural. Assim, alimentos que já eram pouco comprados passam a não ter mais quem os produza. Ao mesmo tempo, sendo parte integrante da biodiversidade, muitos desses produtos também se veem vítimas da degradação ambiental, seja por meio da poluição de rios e mares – que pode levar peixes, crustáceos e moluscos à extinção –, seja pela perda de vegetação nativa, decorrente do avanço das cidades, da pecuária e da monocultura. Foi o que aconteceu com a juçara, espécie da Mata Atlântica brasileira, bioma do qual restam apenas 7% da cobertura original.
Daí a importância de detectar as áreas do planeta em que a produção desses alimentos resiste às adversidades, o que muitas vezes significa, também, uma resistência cultural. No caso da juçara, a região de salvaguarda estabelecida foi a Terra Indígena Ribeirão Silveira, no litoral norte de São Paulo, onde os índios Guarani consomem o palmito conforme sua tradição: cru, com mel de abelha jataí, assado na fogueira ou ensopado, com fubá e carne de paca ou macuco. Sua reserva é o que restou do desmate empreendido pela voracidade imobiliária nas margens da Rio-Santos, outrora uma floresta repleta de juçaras – uma área a salvo da especulação, portanto, mas de tamanho insuficiente para garantir a segurança alimentar das aldeias. Assim, numa manobra ousada, os Guarani começaram a plantar, com a ajuda do Slow Food, seu próprio palmital no quintal de casa, em meio à vegetação da Mata Atlântica. Hoje são 15 mil pés espalhados pela área, que não só asseguram o palmito no cardápio da tribo, como ainda rendem um extra com a venda de toletes na beira da rodovia. Agora o desafio é o acesso ao mercado formal. Quando isso acontecer, teremos palmito-juçara de volta às nossas mesas.
Situação semelhante, mas em estágio mais avançado, é a do pinhão colhido nas serras de Santa Catarina, uma das poucas áreas remanescentes da Mata de Araucária – hoje o ecossistema mais devastado do país, reduzido a 2% de sua extensão natural. Ali não foi necessário plantar pinheiros: eles já estavam lá, como resultado da lei que, em 2001, proibiu o corte de árvores nativas no Brasil. Até então, mais de 100 milhões de araucárias haviam sido derrubadas para alimentar as serrarias do Sul e do Sudeste. Aos poucos, as comunidades locais foram percebendo que podiam extrair renda daqueles pinheiros que haviam resistido, ou rebrotado, em suas matas. Organizadas em uma cooperativa, hoje vendem seus pinhões em vários estados do país e também para escolas em Florianópolis, onde as sementes vão parar na merenda escolar. E a um preço cinco vezes maior do que era pago pelos atravessadores uma década atrás. Tudo isso com apenas três meses de trabalho. Como afirma Jaison Rosa, morador do município de Painel (SC): “A safra que tu faz dá pra viver o ano todo”.
Casos como o do pinhão catarinense, contudo, não são a regra entre os alimentos protegidos. Os produtos, em sua maioria, se encontram em situação extremamente vulnerável, sensíveis às mais diversas condições externas – incluindo as mudanças climáticas – e, geralmente, cultivados, coletados ou elaborados por famílias desmotivadas e mal remuneradas, quando não famintas. Na Baía de Florianópolis, por exemplo, está cada vez mais difícil coletar o berbigão, molusco nativo comercializado nas metrópoles como vôngole, dado o nível de poluição e assoreamento daquelas águas. O mesmo ocorre com o arroz vermelho cultivado no Vale do Piancó, na Paraíba, hoje reduzido a um terço de sua extensão original em decorrência da seca e da falta de estímulo. Ou com o pequi, fruto aromático do Cerrado e também pedra no caminho das lavouras de soja. Assim, mais do que uma lista de ingredientes exóticos, a Arca do Gosto tem um papel importante na manutenção da segurança alimentar dos pequenos produtores, hoje responsáveis por 60% do alimento produzido no mundo e que, não por acaso, coincidem em grande parte com a população que vive em condições de pobreza extrema: do 1,2 milhão de miseráveis no planeta, dois terços habitam a zona rural.
Além de instrumento de combate à fome, o inventário é também uma ferramenta de incentivo à proteção de práticas tradicionais, algumas centenárias, que não deixam de ser exemplos de uso inteligente de recursos naturais. É o caso do piracuí amazônico, uma farinha de peixe produzida pelas comunidades ribeirinhas como forma de conservar o pescado durante o ano todo e, assim, garantir uma fonte de proteínas mesmo na entressafra. Preservar sabores é também, nesse sentido, preservar saberes. E, em certos lugares, preservar até a própria memória da aventura humana sobre a Terra, por meio da salvaguarda de verdadeiros fósseis vivos, como o café produzido nas montanhas da Etiópia, seu lugar de origem, o único no mundo em que os cafezais crescem em estado selvagem. Uma espécie de museu em tempo real onde o grande tesouro é o modo milenar por meio do qual as comunidades locais preparam o café, secando os grãos ao sol, torrando-os com manteiga e servindo-os, numa infusão com água, em rituais de hospitalidade.
No Brasil, temos o exemplo do guaraná, cultivado pelo mesmo povo que o revelou ao mundo, os Sateré-Mawé, numa área do Médio Amazonas onde o fruto cresce de modo espontâneo, na forma de um cipó. A esses índios, coube o feito inédito de domesticar a planta e transformá-la em alimento – uma descoberta que remonta a muitas gerações, num ponto remoto do tempo em que a história dos Sateré-Mawé se confunde com sua própria mitologia: eles se consideram descendentes diretos do guaraná. Também ali se bebe o energético como no início dos tempos, muito antes da invenção do refrigerante: nesse caso, os grãos são torrados, defumados e moídos até atingir a forma de um bastão, que os índios raspam sobre uma cuia de água, dando origem a uma bebida amarga que chamam de çapó.
Mas não só de ingredientes nativos ou de técnicas milenares é composta a Arca do Gosto. O projeto abarca uma imensa variedade de sabores ameaçados de extinção, incluindo-se aí alimentos processados – como queijos, doces e pães –, raças autóctones de animais domesticados – como o frango da Alsácia e o porco de Okinawa – e alimentos de origem estrangeira assimilados por culturas locais – como o feijão-de-corda brasileiro, trazido pelos escravos africanos, e o já citado arroz vermelho do semiárido nordestino, remanescente de uma variedade cultivada no Brasil Colônia antes da introdução do arroz branco.
O que há em comum entre esses produtos é, além do risco de desaparecimento, a ideia de terroir: um conjunto de fatores, geográficos e culturais, que resulta numa maneira única de produção de um determinado alimento, quase sempre em pequena escala e de forma artesanal. Uma espécie de centro de produção de anti-commodities, levada a cabo por comunidades resilientes que trabalham na contramão da alta produtividade e do lucro fácil. Esses são os critérios básicos estabelecidos pelo Slow Food, que se vale do sistema de candidaturas para dar cabo da empreitada, de maneira semelhante àquela por meio da qual a Unesco define os Patrimônios da Humanidade: qualquer pessoa, em qualquer parte do mundo, pode sugerir um produto, mediante o preenchimento de uma ficha. Caberá, então, aos técnicos da entidade fazer uma visita de reconhecimento, na qual identificarão a cadeia produtiva, a relação com o mercado, as ameaças que pesam sobre o alimento e suas propriedades organolépticas, ou seja, a que se presta em termos de textura, aroma e sabor.
Até agora, já constam 46 produtos brasileiros na Arca. Metade disso é a genuína expressão da nossa biodiversidade, ou seja, espécies da flora e da fauna que, em algum momento, alguém teve a ideia de transformar em comida. Entre esses produtos, além dos referidos palmito-juçara, pinhão e guaraná, constam também o babaçu produzido no Maranhão, com o qual se produz um importante óleo de cozinha, a erva-mate – matéria-prima do chimarrão gaúcho e do tereré pantaneiro – e um punhado de frutas que, por azar, já correm risco de sumir antes mesmo de se tornarem conhecidas: umbu, licuri, mangaba, cagaita, cambuci, maracujá-da-caatinga e jaracatiá, entre outras. Há também um peixe, o pirarucu amazônico, e alguns moluscos, como a ostra nativa que habita os manguezais de Cananeia (SP). Além disso, nossa lista inclui também alimentos processados, como a marmelada de Santa Luzia produzida no interior de Goiás, a farinha de batata-doce feita pelos índios Krahô do Tocantins e doze tipos de queijo artesanal – do canastra mineiro ao coalho nordestino.
Mas, assim como ocorre com os patrimônios da Unesco, a ilustre presença numa lista de salvaguarda não é garantia de preservação. Será necessário mobilizar agentes externos – por meio de iniciativas públicas, apoio privado ou ação de entidades governamentais – para, aí sim, operar mudanças efetivas no futuro de uma comunidade produtora. Há casos em que o Slow Food contribui de maneira direta, oferecendo suporte para a criação das chamadas Fortalezas, projetos de estímulo à cadeia produtiva de um determinado alimento. Mas, no geral, a inclusão na Arca serve mais como forma de chamar a atenção da comunidade gastronômica mundial e de incitá-la à ação. E uma das formas de fazer isso é o Terra Madre, rede global de produtores e cozinheiros associados ao Slow Food que se reúne, a cada dois anos, em Turim, na Itália, numa grande caixa de Pandora alimentícia, onde os mais inesperados ingredientes surgem de lugares como o Quirguistão, e onde os pequenos cafeicultores do Laos, da Etiópia e de Honduras podem, finalmente, trocar figurinhas para, depois, voltarem para casa e porem em prática tudo o que foi assimilado nesse encontro.
No Brasil, diversos agricultores, extrativistas e pescadores se valem das políticas públicas, a maioria do governo federal, para aumentar a produtividade e assegurar a venda dos alimentos. Isso inclui as linhas de crédito do Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) e as garantias de compra da produção por meio do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) – este último voltado para o abastecimento da rede pública de ensino. Já outros produtores atraem ONGs que os ajudam a aperfeiçoar as técnicas de produção, a se organizarem em associações ou cooperativas e ainda a inserir o produto no mercado consumidor. Os quilombolas da comunidade do Mandira, em Cananeia, por exemplo, dispensaram os intermediários e obtiveram, com a ajuda de algumas entidades, o controle total da cadeia produtiva de ostras-do-mangue: do cultivo, cujo rendimento triplicou, à distribuição, feita por meio de veículo próprio em todo o litoral paulista.
Alguns foram ainda mais longe, como a Coopercuc (Cooperativa Agropecuária Familiar de Canudos, Uauá e Curaçá), que conseguiu levar geleias e doces de umbu produzidos no sertão baiano às gôndolas do Pão de Açúcar e aos supermercados da Alemanha, e como os Sateré-Mawé, que hoje vendem diretamente para a Europa seu guaraná, cujo destino é tornar-se ingrediente exótico de cervejas, chocolates e gomas de mascar. Esse feito em particular tem um quê de heroico, uma vez que, em apenas duas décadas, os índios conseguiram não só recuperar os pés de guaraná, que estavam em franco declínio, como também reinventar-se como povo. Graças, em parte, ao fruto redescoberto, fortaleceram sua identidade cultural, e hoje já pensam na implantação de uma universidade Sateré-Mawé. Sérgio Garcia, filho primogênito do cacique que idealizou a iniciativa, resume: “O consumidor precisa saber que ele não está comprando só um produto, mas um projeto político”.
Nem todos os produtos, é claro, são tão bem-sucedidos no momento de chegar às prateleiras dos supermercados ou aos cardápios dos restaurantes. Alguns esbarram em questões de ordem prática, como o pinhão que, além da pouca durabilidade, só existe durante o inverno. E, segundo Eliane dos Reis, diretora financeira da Ecoserra, cooperativa catarinense responsável pela distribuição das sementes, “os chefs gostam de produtos que podem usar o ano todo”. É o mesmo caso da castanha de baru, amêndoa nativa do Cerrado, que já foi parar em receitas de chefs como Alex Atala, Ana Luiza Trajano e Helena Rizzo, mas que, por razões que ainda ninguém descobriu – por falta de pesquisas –, frutifica de maneira irregular, a cada dois ou três anos.
Ainda assim, a despeito de quaisquer obstáculos que um produto venha a encontrar em seu caminho do mato à mesa, vale aqui a velha lei da oferta e da procura: quanto mais necessário ou desejado for esse alimento, mais fortalecidos estarão o ecossistema e a comunidade que o produzem. Ou seja: cada pote de geleia de umbu que você compra no Pão de Açúcar não só é um umbuzeiro a mais em pé na Caatinga como também um dia de alegria a mais na vida de pessoas como dona Perpétua Barbosa que, depois de décadas dependendo apenas da criação de bodes, pode finalmente dizer que “a sorte da gente é esse trabalho do umbu”. E é, também, a tomada de consciência definitiva daquilo que o autor americano Wendell Berry escreveu, e que os ativistas e pensadores da alimentação costumam citar, a título de manifesto: “Comer é um ato agrário”.
Xavier Bartaburu
Jornalista independente, também é músico e pesquisador das tradições populares brasileiras.
Leonora Weissmann
Artista plástica, artista gráfica, ilustradora, cantora letrista e professora de arte, é mestre pela UFMG, dirige a Jiló Design e integra o Coletivo musical ANA.
Como citar
BARTABURU, Xavier. Tinha, mas acabou. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 8, p. 86-91, set. 2015.