TRAMAS,
RIO SÃO FRANCISCO
Luciana Souza Bragança
Rio da integração nacional, o São Francisco tem esse título por ter sido o caminho de ligação do Sudeste e do Centro-Oeste com o Nordeste. Mas o status não honra mais o título. Desde as suas nascentes na Serra da Canastra, em Minas Gerais, até a sua foz, na divisa de Sergipe com Alagoas, ele percorre 2.700 km de relações socioespaciais conflitantes e excludentes.
O pensamento progressista hegemônico, cuja ideia de modernidade e progresso passa necessariamente pelas grandes vias asfaltadas, condenou à obsolescência o transporte que não o rodoviário no Brasil desde a Era Vargas. A navegação foi relegada ao segundo plano ou quiçá a plano algum… Além disso, o desmatamento para as monoculturas e para as carvoarias, a irrigação de grandes plantações que consomem água demais, as barragens e hidrelétricas que expulsam comunidades inteiras e impedem os ciclos naturais do rio São Francisco tornaram a navegação uma possibilidade rara. Os navegantes de hoje são aqueles que tiram seu sustento do rio, como pescadores artesanais ou aventureiros em busca de diversão ou conhecimento.
O caminho do rio está assoreado em razão da contínua exploração e dos maus-tratos. A decadência do rio como meio de transporte – principalmente de mercadorias, mas também de pessoas – fez com que os pontos modais, cidades que perderam sua urdidura histórica, tivessem que remodelar a própria tessitura. Remanescentes de um fluxo que não se articula mais, essas cidades estão agora fora da cadeia de produção e da relevância nacional outrora ocupada. O rio da integração nacional está desintegrado.
As transformações naturais alteraram também a microeconomia de subsistência baseada no rio. Os peixes começaram a rarear. Os solos não eram mais fertilizados pelas cheias, que ficaram mais pareciam com descargas de lixo. Tais transformações expulsaram e fizeram migrar os vazanteiros e pescadores, pois a pesca e a agricultura nas várzeas foram ficando difíceis. Januária foi um importante porto articulador de fluxo do médio São Francisco. As cheias e vazantes sustentavam os que dela dependiam. A organização espacial se modifica na medida em que o contexto e a organização econômica são alterados. A ocupação da cidade cresce hoje “de costas” para o rio. Os ricos estão no alto. As margens do rio são destinadas às favelas e às construções históricas. Esse mesmo abandono faz com que partes desse espaço permaneçam intactas em sua imponência decadente. Embora tenham sido marcadas pela vida, ainda ocupam seu lugar. É peculiar a mescla de urdiduras espaciais que se configuram no tecido urbano histórico.
Por um lado, a decadência do porto e o fim da grande circulação de dinheiro preservaram as construções coloniais e ecléticas do período de apogeu. As construções pouco se modificaram. Um ar de decadência permeia o centro com seus frontões de desenhos inventivos e sua horizontalidade. Os paralelepípedos de pedra, polidos ao longo do tempo pelo desgaste, completam essa ambiência delicada que permanece cheia de novos habitantes. Apenas a sede dos prédios públicos ainda está no centro, na praça principal.
Januária é uma cidade que está fora, que ocupa agora a periferia do fluxo. Não é mais peça fundamental ou utilizável, não tem mais sua função nas engrenagens produtivas: é descarte. A sua urdidura histórica encheu-se assim de permanência. O que se configura novo é a tecedura do habitar. A economia formal se deslocou para uma outra urdidura, ocupa o que antes seria o rio e o fluxo: as margens da rodovia que liga Januária a Montes Claros. Ali está hoje um ponto nodal do transporte e da economia da região.
Januária é agora uma cidade que se concentra num cotidiano singelo de ocupações despretensiosas, mas, nem por isso, menos representativas da cultura no médio São Francisco. O rio transformou-se e com ele toda a cidade. Tece-se assim um cotidiano e uma economia do possível, que, baseada no rio como sempre foi, ganha contornos singulares. Historicamente, o sustento de Januária vem do rio, e dessa maneira continua sendo até hoje. Não mais do seu apogeu no contexto da economia nacional, mas de sua decadência e degradação provocadas por esse apogeu gozado e construído dentro do ideário da exploração predatória.
Mesmo no contexto das discussões sobre o rio São Francisco, sobre a transposição e a revitalização, a projeção nacional não existe mais. Os micro-contextos são os reais e presentes, a integração é familiar e mínima. O tecer torna-se então uma estratégia de inserção no lugar das trocas. Tecer em uma urdidura restrita, micro-localizada, pontual. Tecedura do possível dentro do descarte e da cidade descartada. Esse tecer se dá a partir das fibras que são facilmente conseguidas, oriundas do lixo jogado à beira do rio. O descarte se torna o meio viável de contextualização, de teceduras – pequenas, porém realizáveis –, com urdidura terminante, palpável, genuína.
Dona Nair cata religiosamente o lixo do rio. Os meses de maio a julho, quando o rio está mais seco e há praia em Januária, são os de farta colheita. A matéria-prima é a mais improvável: cordões de nylon, pacotes de salgadinho, sacolas plásticas, embalagens de arroz ou açúcar. Com esses materiais, Dona Nair tece esteiras plásticas que, vendidas na praia e no mercado, garantem o dinheiro extra para a sua família e a insere na nova urdidura das trocas possíveis do mercado de Januária.
O processo de produção é simples, realizado de forma responsável e atenta. Ela assume seu ofício manual sozinha ou auxiliada pela família. Hoje em dia ela conta, vez ou outra, com aprendizes. Afastada da divisão do trabalho, importante na produção capitalista, Dona Nair está presente em todo o processo e faz questão de cuidar dos menores detalhes. Constrói, assim, sua tecedura sobre uma urdidura técnica criada e aperfeiçoada por ela mesma a partir de sua herança familiar de origem na cestaria e do material que lhe estava ao alcance. Para além da artesã que trabalha com matéria-prima natural, comum no médio São Francisco, Dona Nair trabalha com o descarte e constrói seu produto colorido e brilhante avançando sobre as novas possibilidades que se anunciam no seu contexto cotidiano.
Todo o material é levado para casa e distribuído no seu pátio de terra batida. Lá Dona Nair separa os plásticos por cores e texturas. Limpa com extremo cuidado e atenção a matéria-prima, antes de iniciar a feitura. Começa por enrolar as embalagens e juntá-las em fios compridos. Faz o mesmo com os plásticos transparentes e com os opacos. Depois ela define o padrão a ser seguido pela esteira, escolhe um “fio” e vai trançando-o na urdidura de cordas de nylon ou de barbante, dependendo da intenção. Fio após fio as esteiras vão se materializando.
Os padrões das teceduras são variados e cobrem o Mercado Municipal de Januária com as “esteiras que não apodrecem e que duram para sempre”, como anuncia o entusiasmado vendedor. No mercado, que ocupa um antigo galpão de armazenagem de mercadorias no centro da cidade de Januária, Dona Nair já fez fregueses e aprendizes. As esteiras – vendidas nas várias barracas que comercializam desde comida a roupas, passando por peças do artesanato local e utensílios domésticos – cobrem balcões, enfeitam mesas, fazem às vezes de divisórias e acabam sendo parte da construção da espacialidade do mercado. Ultimamente os comerciantes têm separado e coletado material descartado para a produção das esteiras.
Luciana Souza Bragança
Arquiteta e urbanista. Texto desenvolvido a partir da experiência de projeto do Parque Linear do São Francisco em Januária, Minas Gerais.
Como citar
BRAGANÇA, Luciana Souza. Tramas, Rio São Francisco. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 5, p. 28-29, jan. 2013.