TUTHI:
A FIBRA MÃE
Texto de Claudia Magnani e Roberto Romero
Canto da embaúba, desenhos de Eliane Maxakali e Maiza Maxakali
A arte de fiar e enlaçar a embaúba, operada pelas mulheres tikmũ’ũn, abrange dimensões que transcendem seu aspecto material. A extração da fibra, a produção da linha, a tecelagem da malha envolvem cantos rituais, histórias ancestrais, relações com parentes e espíritos, processos de aprendizagem e práticas xamânicas de cura.
A embaúba é uma fibra vegetal extraída da casca da planta homônima que, desde tempos míticos, as mulheres tikmũ’ũn enrolam delicada, mas firmemente, em suas coxas. A partir desse processo e mediante duas técnicas de enlace sem nós, a fibra é transformada em linha, rede e outras malhas que, por sua vez, viram cordas (de arcos ou de bodoques), bolsas, redes de dormir, redes de pesca feminina, tipoias, roupas e máscaras rituais, bem como colares e ornamentos corporais. O que podemos traduzir como embaúba, “fibra de embaúba” ou “linha de embaúba” é, na língua maxakali, expresso pelo termo tuthi, uma palavra que, como enfatiza a etnomusicóloga Rosângela de Tugny, é composta pela raiz tut, que significa “mãe”, e hi, que significa “fibra” ou “linha”. Nas palavras dela, tuthi, “mãe-fibra”, ou “linha encantada” é o nome da embaúba com a qual as mulheres ancestrais teceram objetos mágicos, capazes de grandes efeitos, remetendo às funções extra-ordinárias às quais, além das ordinárias, essa fibra é destinada. Olhar para a palavra é significativo para nos aproximar mais do entendimento da natureza dessa matéria-canto-conhecimento, já que a própria etimologia nos remete mais a uma relação (que, no caso, é uma relação de parentesco extra-humana) do que a uma noção de ordem meramente botânica.
As belíssimas palavras de Delcida Maxakali, grande mestre e pajé tikmũ’ũn da Aldeia-Escola-Floresta Verde, nos permitem enxergar um pouco dessas múltiplas relações entre cotidiano e ritual, entre homens e mulheres, entre parentes humanos e não humanos, que estão entrelaçadas nas práticas ancestrais de extração e tecelagem da “fibra-mãe” e nos seus inúmeros usos. “Mõnãyxop (o antepassado) matava passarinho com bodoque e o amarrava no pescoço com um cipó. Sua esposa foi no mato e encontrou um pé de embaúba. Estava lá, bonito e bom para tirar sua casca. Ela então falou para o marido: ‘Me leva lá e tira embaúba para mim!’. E o esposo respondeu: ‘Está onde, essa embaúba?’. ‘Está lá. Lá tem embaúba do olho bonito! Vai lá tirar para mim e vou fazer uma rede para você. E vou fazer uma bolsa para você’. O homem então levou sua esposa para o mato e tornou a perguntar: ‘Onde está a embaúba?’. E ela respondeu: ‘Está lá, vai lá cortar’ e indicou o local. O esposo foi, cortou a árvore, tirou sua casca e a trouxe para a esposa. Ela a raspou, fez a linha e com a linha fez uma bolsa para ele. O esposo pegou a bolsa e foi andando. Dentro dela colocava as pilotas de barro e os passarinhos que ia matando. Quando voltou para casa deu os passarinhos para que sua esposa os limpasse e assasse no fogo, e depois os comeram com batata-doce e mandioca fermentada dentro da água. Aí Popxop (o macaco-espírito) fez o canto da embaúba: ‘Me leva, me leva, e tira embaúba para mim / vamos tecer uma bolsa para você / que sempre amarra a caça com cipó.’”
Além de alimentar os vínculos entre os parentes vivos e os povos-espíritos da floresta, essa arte extraordinária, que é parte de um domínio predominantemente feminino, envolve de forma complementar a cooperação dos homens durante diversas etapas do processo produtivo (por exemplo, na procura das embaúbas e na extração da fibra). O papel dos homens é colaborativo e importante para a retirada das cascas, pois são eles que abrem os difíceis caminhos na mata e que cortam os altos troncos de embaúba, enquanto as mulheres se dedicam à escolha das árvores, indicando-lhes quais cortar, e à retirada das cascas dos troncos abatidos. A mulher chama o marido para ocupar-se dessa primeira fase de extração da fibra, comprometendo-se a dar-lhe em troca alguns produtos finais de seu trabalho. Essa complementaridade, expressa nos mitos e nos cantos da embaúba, está explícita na própria autodenominação, “Tikmũ’ũn”, cuja tradução literal é “homens e mulheres”.
Esses homens e essas mulheres são hoje cerca de 2.400 pessoas vivendo em cinco pequenos territórios no Vale do Mucuri, nordeste de Minas Gerais. Em suas diminutas reservas, quase completamente invadidas pelo capim braquiária, praticamente já não se encontram as embaúbas, outrora abundantes em toda a Mata Atlântica que predominava na região. Apesar disso, de tempos em tempos, os Tikmũ’ũn percorrem longas distâncias, muito além dos limites em que foram confinados, em busca da fibra-mãe.
Durante essas expedições, as melhores qualidades cromáticas, morfológicas e olfativas da fibra natural são elogiadas o tempo todo pelas mulheres, que se desafiam na procura das embaúbas mais bonitas (caracterizadas por uma fibra mais branca, mais fina e mais comprida). Um canto ritual evoca belamente o momento em que uma mulher encontra uma linda planta de embaúba, que a atrai e a emociona. Nesse encontro se estabelece uma relação intersubjetiva, sendo a planta outro ser com o qual a mulher interage.
ũg mõgã
(me leva)
nũy ã tuthi xak
(e tira embaúba para mim)
iga õ te xip tu pa mai xop
(aquela que está ali do olho bem bonito)
Se para olhares alheios essa arte da tecelagem pode parecer mera prática artesanal destinada à produção de artefatos, no mundo tikmũ’ũn ela constitui uma prática-conhecimento que envolve dimensões da vida cotidiana e ritual muito além de seu aspecto material. Extrair a fibra, produzir a linha, tecer a malha são ações que envolvem cantos rituais, histórias ancestrais, relações com parentes e espíritos, processos de aprendizagem e práticas xamânicas de cura. Desde as primeiras operações – a busca da planta da embaúba e a retirada da sua casca – estamos diante de práticas complexas, que implicam cuidados com o território e com os seres que o habitam, e que dependem de conhecimentos e de habilidades muito além das competências técnicas da produção das peças. Esses atos se configuram dentro de uma dimensão mais ampla do encontro com a planta, a partir da qual produz-se uma história e tecem-se relações de cuidado entre as mulheres e a fibra vegetal, assim como entre os Tikmũ’ũn e os yãmĩyxop, os povos-espíritos da floresta.
Apesar de não depender de interdições ou de procedimentos secretos, as operações de extração da fibra natural demandam, em primeiro lugar, uma boa relação com a planta, dependendo de condutas de respeito, sensibilidade e afeto. Maiza Maxakali explica que, na hora de tirar embaúba, a mulher deve conversar com ela, investir tempo e adotar cuidados, para que o processo criativo seja bem-sucedido, comprometendo-se a aproveitar a fibra para produzir linhas, colares, bolsas, redes de pesca, malhas destinadas à cura dos parentes ou às trocas com os espíritos. Desse modo, esses artefatos garantem as demais funções ordinárias e rituais da vida coletiva, garantem o sistema alimentar da comunidade e as relações de parentesco, de cura, de alianças humanas e não humanas, que se tecem a partir dele. “Porque a embaúba é espírito, é yãmĩy, tem canto”, explica Maiza, “se a mulher não respeitar, quando ela voltar ao lugar (onde tirou), não vai ter mais plantas e a linha também não vai sair”. A relação de afeto e respeito que a mulher é capaz de cultivar com a embaúba garante o sucesso de suas tecelagens e, num plano maior, contribui para ativar e manter boas relações com o território e os yãmĩyxop que o habitam.
Não só a extração da fibra, mas todas as etapas da produção e do uso das peças, dependem de alianças e trocas com os seres humanos e não humanos que compartilham o mundo com os Tikmũ’ũn, ou seja, os múltiplos povos-espíritos yãmĩyxop. Em todo o processamento da fibra é reativada a relação com as árvores-mães, entrelaçando-se, nas malhas que vão sendo tecidas, cantos, histórias e memórias. Assim, nas diferentes etapas produtivas, a mulher tikmũ’ũn vai alimentando a relação afetiva com o território e vai transmitindo para a fibra-mãe o seu koxuk (espírito), o qual passa para a malha através das mãos, da saliva e do canto, tornando-a ativa e capaz de produzir efeitos no mundo.
Inúmeras são, de fato, as relações cosmológicas nas quais as práticas de manipulação da fibra-mãe estão imersas. Por meio da manipulação da fibra vegetal, as mulheres tikmũ’ũn — mulheres-fortes, mulheres-artesãs, mulheres-cantoras e conhecedoras das histórias ancestrais — cuidam dos parentes e dos seres-yãmĩyxop, curam corpos, mediam conflitos, garantem alianças, alimentam o vínculo com o território e amansam espíritos ferozes, evitando possíveis rupturas no equilíbrio do seu mundo.
Uma história dos antigos conta que, em um passado ancestral, os homens ficaram presos no céu até que conseguiram retornar à terra por meio de uma linha de embaúba tecida por uma mulher: foi assim que se possibilitou uma passagem entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos, e se regulou o trânsito entre esta terra e a “terra outra”, hãmnõy, como os Tikmũ’ũn também se referem ao céu. Nessa mesma história narra-se, ainda, que foi pela mão de outra mulher que essa mesma linha foi cortada, deixando os homens pendurados nela, sem poder voltar para sua aldeia. A agência das mulheres, ora voltada a garantir, ora a ameaçar a socialidade tikmũ’ũn – mediante a tecelagem (ou pelo desfecho) da fibra de embaúba – assume, nessas narrativas, contornos bastante evidentes.
Em outra história, uma linha de embaúba trançada por uma mulher foi usada para deter espíritos ferozes que ameaçavam a aldeia dos Tikmũ’ũn. A história conta que uma mulher vingou a morte do marido, capturando o temido ser canibal ĩnmõxa com a sua rede de embaúba. Outra narrativa conta ainda como, engolindo uma linha de embaúba feita pela mãe, uma mulher ancestral se transformou em sucuri…
É essa a história de kãyãtut, a mulher que vira “cobra-mãe” ou “cobra grande” por meio de uma linha de embaúba, vingando-se do marido que se recusava a cuidar dela durante o resguardo menstrual. Em vez de cuidar de sua esposa e preparar sua comida, ele preferiu ir caçar antas. A esposa, enfurecida, pediu para sua mãe fazer uma linha de embaúba bastante grossa e comprida e se embrenhou na mata. Na floresta, ela enfiou a linha em seu corpo, fazendo-a entrar pelo ânus e sair pela boca. Amarrou a extremidade superior numa árvore e a esticou até se transformar – ela mesma – em sucuri. Ao virar cobra, a mulher atraiu o marido imitando a voz das antas e, quando ele chegou até ela, o cercou, o prendeu e o engoliu. Em seguida, imergiu-se nas águas profundas de uma lagoa. Quando ela saiu da água, o marido, ainda vivo dentro dela, cortou a pele da sua barriga com um caco de pedra e saiu voando, pois tinha se transformado em pássaro. A mulher-cobra, ferida profundamente, se agitou contra as árvores até morrer.
Essa narrativa mostra a relação mítica entre a mulher e a cobra ancestral, e a forma como é “atravessada” pela linha de embaúba. Se, na arte da olaria, a modelagem com o rolete da argila lembra o corpo da sucuri que vai crescendo em espiral “igual a uma cobra”, na tecelagem tanto a linha quanto a técnica lembram as feituras, a textura e o movimento da cobra. Tal analogia apareceu nas palavras de Sueli Maxakali quando, certa vez, referiu-se à técnica de tecelagem da linha: “Você não viu, quando está fazendo a linha de embaúba, que o finalzinho dela vai afinando, igual cobra? Tuthi é igual cobra, é por isso”. Essa correlação cosmológica entre a sucuri e a linha de embaúba revela ainda uma simultaneidade intrínseca ao próprio ato de trançar: enquanto se faz a linha, se atua, também, na metamorfose da fibra em cobra. Esse processo implicado na tecelagem produz uma agência do artefato e provoca seus efeitos no mundo cotidiano e ritual. A mulher que trança a linha de embaúba – a partir de seu domínio das técnicas de manufatura (processamento da fibra, torcedura da linha, técnicas de tecelagem), das qualidades estéticas que imprime na peça (formato, regularidade do ponto, tonalidades e grossura da malha) e das relações sociocosmológicas que estabelece com a planta – opera, ao mesmo tempo, a metamorfose da fibra em sucuri, tornando-a, por sua vez, uma aliada capaz de operar transformações tanto no passado mítico quanto no presente.
Dadas essas qualidades para agir e transformar da tuthi, não é de surpreender que as malhas de embaúba sejam usadas para tornar fortes os corpos das crianças e curar os parentes doentes. É por meio da saliva, empregada no processo de torcimento da linha e das técnicas de tecelagem, que as mulheres-mães-artesãs passam seus espíritos fortes (koxuk) e seu poder terapêutico para a fibra-sucuri. Desse modo, a malha carrega e transmite sua história afetiva e relacional com o espírito de sua mãe-criadora.
Como comenta Sueli Maxakali, “quando você vai fiando a embaúba e você vai molhando a linha com a saliva, você está passando seu espírito para ela. Quando uma pessoa está doente, a mulher vai esquentar sua tuthi (bolsa de embaúba) e o seu yãmĩy (espírito) que está lá dentro, forte, passa para a pessoa doente, porque o yãmĩy dela está fraco, doente. A mulher passa seu yãmĩy na pessoa e ele cura. Mas não é toda mulher que faz isso. Só mulher que respeita yãmĩyxop (os rituais), que dá comida para yãmĩyxop (os espíritos), que sabe muito canto, entende? Como Dona Delcida. Só ela que faz. Daldina fazia também. Só ũn ka’ok, só mulheres fortes. Mas é só a mulher que sabe usar para poder curar. A mulher esquenta, passa no rosto e espanta coisa ruim que está no corpo da pessoa.”
O poder de cura das malhas é, ainda, reforçado por um ato xamânico: antes de colocá-las em contato com o corpo da pessoa doente, as peças passam por cima de um fogo, ou melhor, de uma fumaça. O uso do tabaco também é central nas demais práticas terapêuticas, não podendo faltar nos rituais de cura voltados a expulsar os espíritos causadores do mal. Esse procedimento é muito perigoso, pois envolve o controle do fluxo dos espíritos e, portanto, é feito somente por mulheres fortes, mulheres xamãs, ou seja, por aquelas que conhecem profundamente os cantos, as histórias e os seres yãmĩyxop em maior grau que as outras. Se o espírito da mulher e o de sua malha de embaúba forem suficientemente fortes, vão poder surtir os efeitos desejados, mandando embora o mal.
Reconhecendo esse grande poder terapêutico das tramas femininas, os povos-espíritos yãmĩyxop, cuja palavra-canto é recebida pelos homens, falam-cantam para as mães, pedindo-lhes para fabricar colares de embaúba que contenham uma espécie de vespa extremamente resistente aos predadores naturais, conhecida como “formiga-onça” ou “formiga-feiticeira” (Dasymutilla occidentalis), e colocá-los nas crianças, para que seus corpos cresçam fortes como elas e não adoeçam.
xaxenãg pu ĩy panimãnãg
(vou fazer bolsinha do ponto frouxinho para as crianças)
ĩy panimãnãg
(bolsinha do ponto frouxinho)
nũy tu pu ĩy tagã
(colocar no pescoço delas)
pu ãhã tanuxok
(para elas se banharem)
nũy ã hã mõnõg nãmi
(e dormirem com ela)
É importante ressaltar que o papel feminino não é valorizado e invocado na manutenção do bem-estar do grupo conforme as capacidades naturais, fisiológicas ou maternais da mulher, mas, sim, por suas habilidades rituais e xamânicas, que se manifestam rica e diversamente em atividades diárias e rituais, sendo uma, entre elas, a tecelagem da fibra de embaúba com as transformações poderosas que ela possibilita.
Os cantos ancestrais da embaúba fazem parte desse processo xamânico que é, ao mesmo tempo, artesanal, relacional, terapêutico, cotidiano e ritual. Contam os Tikmũ’ũn que antigamente os po’op (macaco-espírito) lançaram um desafio para as mulheres e deixaram apenas a ponta de um tronco de embaúba — que abriga sua flor — despontar de dentro das paredes da kuxex (casa dos cantos). Os pajés, então, pediram que elas indicassem que árvore era aquela. Várias mulheres tentaram, sem sucesso. Até que chamaram a jovem Pukno, que àquela ocasião se encontrava em resguardo pós-parto. Pukno, mais conhecida como Isabel da Silva Maxakali, foi a única a acertar e, por isso, ganhou os cantos da tuthi, do macaco-espírito.
Em dezembro de 2018, um grupo de pajés, professoras e professores tikmũ’ũn ministraram uma oficina na Faculdade de Educação da UFMG, no âmbito do projeto Saberes Indígenas na Escola, que resultou na organização do livro de cantos, desenhos e histórias da embaúba, Popxop te tuthi tuktex: o macaco-espírito canta a embaúba. Organizada por Maiza Maxakali, neta de Pukno, a obra reúne alguns dos principais cantos desse repertório e foi apresentada como seu trabalho de conclusão de curso na Formação Intercultural Indígena (FIEI) da mesma Faculdade de Educação.
Na ocasião, Maiza, ao lado de sua mãe, Noêmia, comentou: “Eu fiz esse trabalho para quando eu morrer. Porque os mais velhos, eles vão morrer, e vai ficar vivo esse trabalho. E nunca vamos perder essa cultura nossa. Minha mãe ficou emocionada porque ela lembrou da minha avó. Porque através dela a gente aprendeu muita coisa. Porque quando ela fazia uma bolsa na perna, ela deixava assim uma linha e a gente fazia assim rapidinho para a gente aprender e depois eu tornava a desmanchar tudo e deixava no lugar que ela deixou. Eu também acompanhava ela para tirar embaúba e ela me ensinava, e foi através dela que aprendi muita coisa”.
Como afirmou Isael Maxakali, em sua introdução à essa publicação, “agora que este livro surgiu, também poderemos aprender os cantos da embaúba através destas folhas”.
No jargão etnobotânico, as embaúbas (Cecropia sp.) são tidas como “espécies pioneiras”. Isso porque são conhecidas por sua resistência aos ambientes mais variados, sendo encontradas em praticamente todos os biomas brasileiros. Embaúbas brotam nos terrenos mais degradados e, devido à interação que mantêm com as demais espécies companheiras, facilitam a dispersão das sementes e garantem as condições necessárias para o desenvolvimento de outras árvores mais longevas. Assim entendidas, é difícil não aproximar as embaúbas dos próprios Tikmũ’ũn, este povo que não cessa de nos surpreender com sua capacidade de fazer brotar e multiplicar a vida sob as condições mais adversas.
A seguir, reunimos três cantos que compõem o livro de cantos da embaúba. Nesses cantos, observamos cenas do cotidiano da floresta, como um homem que admira a embaúba que está prestes a cortar ou um pica-pau que bica o caule da árvore “onde passam as formigas”, além da descrição de todos os terrenos onde brotam as embaúbas, no meio da mata.
Iy pate xip mõ yã mãkãmãg nã xip
(perto de mim você está olhando para cima)
hook ha a i
hook ha a i
ha ii ya
ĩy pate xip mõ yã mãkãmãg nã xip
(perto de mim você está olhando para cima)
ĩy pate xip nũy ĩy yãy kunã nã xip
(perto de mim você está me olhando)
hax hax hoook hoook hooook miax
hax hax hoook hoook hooook miax
hax hax hoook
hax hax hoook miax
hax hax hoook
hax hax hoook miax
hook ha ha i hook ha ha i ha ii ya
ĩy pate xip mõ yã mãkãmãg nã xip
(perto de mim você está olhando para cima)
ĩy pate xip nũy ĩy yãy kunã nã xip
(perto de mim você está me olhando)
hax hax hoook hoook hooook miax
hax hax hoook hoook hooook miax
hax hax hoook
hax hax hoook miax
hax hax hoook
hax hax hoook miax
haaaax ha ii yaaaaaax
mãnmãn yã ũm te
(o pica-pau)
hooo a iii
hooo a iii ha ii ya
mãnmãn yã ũm te
(o pica-pau)
ĩy xaha xop tu
(onde passam as formigas)
ĩy xõhõg kahõg nãmi
(vai bicando)
mãnmãn yã ũm te
ĩy xaha xop tu
ĩy xõhõg kahõg nãmi
yak ha i ya hoook hi a i
yak ha i ya hoook hi a i
hoo a i hoo a ii ha ii ya
mãnmãn yã ũm te
ĩy xõhõg xop tu
ĩy xõhõg kahõg nãmi
mãnmãn yã ũm te
ĩy xaha xop tu
ĩy xõhõg nãmi
yak ha i ya hoook hi a i
yak ha i ya hoook hi a i
hoo i a i hooooooooox
hãmnã koma xip
(dentro da mata estou)
hooo a iii
hooo a iii ha ii ya
hãmnã koma xip
(dentro da mata estou)
hãmnãnãg koma xip
(dentro da mata rasteira estou)
ãgmuk ma ũg xip
(dentro da mata queimada estou)
takxet koma xip
(dentro do brejo estou)
hãmyokoma xip
(na ladeira estou)
hãmxata nõy ma xip
(do outro lado do morro estou)
ãmaxtap potu xip
(dentro do pau podre estou)
mĩmtap potu xip
(dentro do pau seco estou)
mĩmkox koma xip
(no oco do pau estou)
mĩmkoyãm koma xip
(no oco do pau grande estou)
mũnĩn koma xip
(em meio às formigas estou)
koxpat koma xip
(no meio do vale estou)
yõ’õy tu ũg xip
(na terra escorregadia estou)
kopnaxkox koma xip
(entre as pedras estou)
kopoxop ma xip
(na planície estou)
hãmxamuk ma ũg xip
(em meio ao vento estou)
hãmxanep tu ĩy xip
(no planalto estou)
ha ii ya
hook hax hok hax hook miax
hook hax hok hax hook miax
hok a ii e hok a ii ha ii a
hãmnã koma xip
hãmnãnãg koma xip
ãgmuk ma ũg xip
takxet koma xip
hãmyokoma xip
hãmxata nõy ma xip
ãmaxtap potu xip
mĩmtap potu xip
mĩmkox koma xip
mĩmkoyãm koma xip
kanet koma xip
kanet yãm koma xip
mũnĩn koma xip
koxpat koma xip
yõ’õy tu ũg xip
kopnaxkox koma xip
kopoxop ma xip
hãmxamuk ma ũg xip
hãmxanep tu ĩy xip
ha ii ya
hook hax hok hax hook miax
ha ii ya
hook hax hok hax hook miax
hooo i a i yaaaaaaax
Nos cantos aqui apresentados, muitas vezes é a própria embaúba quem canta, observando, de cima, o homem que a observa – quase como quem a seduz – ou listando os lugares na mata onde está (“eu estou”). Assim, a planta não é apenas objeto dos desejos e das façanhas humanas ou do macaco-espírito, mas sujeito inclusive da oração. O que se vai tecendo através destes versos, portanto, é um mundo de laços sem nenhum nó (isto é, sem nenhum centro), como as malhas das bolsas de embaúba, por exemplo. Um mundo, enfim, em que a posição de sujeito está distribuída entre os seres animais, vegetais, minerais e espirituais. É nesse sentido também que cada canto é um registro, uma memória, o fragmento de uma ação em curso, atualizados pelos Tikmũ’ũn e seus yãmĩyxop no ato de cantar. Marcados por uma profunda concisão e visualidade, os cantos evocam a tradição poética japonesa canonizada nos haikais de Matsuo Bashô, poeta andarilho (como os yãmĩyxop) que, no curso de suas andanças pelo interior do Japão, nos idos do século XVII, ia extraindo sua poesia “verbi-voco-visual” das cenas mais prosaicas do seu cotidiano.
Nas pequenas reservas onde os Tikmũ’ũn estão confinados atualmente já não há mata, nem rios, nem caça, nem peixes como antigamente. Até mesmo as embaúbas são raras de se encontrar. Não obstante, os homens e mulheres tikmũ’ũn mantêm vivas a memória e as práticas dos seus ancestrais e, tal qual essas árvores pioneiras, sempre reforçam que, se a terra voltar a ser grande para eles, também a mata e toda a diversidade que a habita o será.
Claudia Magnani
Antropóloga e doutora em Educação pela UFMG, pesquisa junto ao povo indígena Tikmũ‘ũn-Maxakali (MG).
Roberto Romero
Antropólogo, doutor pelo Museu Nacional (UFRJ), desde 2010 realiza pesquisas entre os Tikmũ’ũn (Maxakali). Co-organiza o forumdoc.bh – Festival do Filme Documentário e Etnográfico e codirigiu o filme Nũhũ yãgmũ yõg hãm: essa terra é nossa! (2020).
Eliane Maxakali
Artista integrante da Comunidade Tikmũ’ũn da Aldeia-Escola-Floresta, Vale do Mucuri, MG.
Maiza Maxakali
Artista integrante da Comunidade Tikmũ’ũn de Aldeia Verde, Vale do Mucuri, MG.
Como citar
MAGNANI, Claudia; ROMERO, Roberto. Tuthi: a fibra mãe. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, edição especial Vegetalidades, p. 114-123, set. 2023.
Esta edição especial da revista foi produzida colaborativamente pelos editores Felipe Carnevalli, Fernanda Regaldo, Paula Lobato, Renata Marquez e Wellington Cançado e pelas editoras convidadas Anai Vera, Bianca Chizzolini e Karen Shiratori.