TV PÚBLICA E ENTRETENIMENTO
Texto de Eugênio Bucci
Pinturas de Selma Andrade
A democracia precisa da comunicação não comercial, em rádio e televisão, exatamente para tê-la como um contrapeso em relação à mídia privada. Os dirigentes das TVs públicas não acordaram para a urgência do tema. Com isso, a TV pública demora a acordar para a sua razão de ser. As emissoras comerciais e as públicas deveriam funcionar como os dois pratos da balança, e essa balança é o espaço público democrático.
As emissoras comerciais se organizam com base nas demandas do mercado, que atuam por vários caminhos e se refletem, por exemplo, na preferência dos anunciantes em patrocinar um tipo de programa, e não outro – o que vai interferir no próprio formato das grades de programação. É bom deixar registrado que as demandas do mercado são legítimas e vitais na democracia, elas só não podem ser as únicas a definir o conjunto da comunicação social. Aí é que entra o papel das emissoras públicas. Essas não deveriam atrelar-se ao mercado, embora algumas, hoje, tenham desenvolvido, numa competição indevida com as comerciais, uma dependência preocupante em relação à receita publicitária. Em alternativa a isso, deveriam diferenciar-se, recusando-se a competir no mercado e buscando dar visibilidade às expressões francamente minoritárias da cultura e do debate público, que não têm aptidão para se tornar “campeãs de audiência” e não têm vez nas comerciais.
Exercendo funções complementares – não opostas –, as emissoras públicas e as emissoras comerciais, cada uma em seu campo, fortalecem a saúde da democracia. Se elas se igualam, se perseguem as mesmas funções e oferecem conteúdos análogos, ora, se for assim, a sociedade não precisa de TV pública.
O entretenimento e seus sentidos
O significado do termo “entretenimento” é chave para que essa distinção se faça com a profundidade necessária. A palavra vem do espanhol, entretenimiento, cujos primeiros registros datam do século XVI. O verbo entreter, originado do latim, intertenere (“inter” quer dizer “entre”; “tenere” quer dizer “ter”), significa deter, distrair, enganar. No senso comum, “entretenimento” é entendido, até hoje, como aquilo que ocorre no tempo do lazer – que não pertence ao tempo do trabalho –, nas horas vagas, no passatempo, no intervalo entre duas atividades ditas sérias.
A partir da segunda metade do século XX, o entretenimento deixou de designar o estado mental produzido no sujeito em desocupação, deixou de se referir a um atributo de atrações especializadas em distrair a audiência e virou o nome de uma indústria diferenciada. Mais do que uma indústria, um negócio global. Com o advento dos meios de comunicação de massa, a palavra, sempre que enunciada, traz consigo esse sentido material: o de negócio. Assim como a própria palavra indústria – que antes nomeava apenas uma habilidade humana – mudou inteiramente de sentido com a revolução industrial, a palavra entretenimento foi revolvida por um processo de ressignificação definitivo a partir da indústria do entretenimento. Quando uma TV pública diz que faz entretenimento, afirma que pertence a um campo – industrial e econômico – ao qual não tem vocação nem destinação de pertencer.
Não obstante, ainda vemos, em conversas entre os dirigentes das TVs públicas, o emprego do termo entretenimento como se ele se referisse a um adereço no repertório variado, como se a palavra pudesse conferir uma leveza inocente que ajudaria a tornar mais palatável a programação de suas emissoras.
A arte de vender os olhos da plateia
Para se ter uma ideia da envergadura do negócio do entretenimento, vejamos o modo como ele engoliu um campo antes autônomo, o jornalístico. Este, há cerca de 50 anos, era um negócio organizado em empresas independentes. Atualmente, a fórmula da empresa jornalística independente tornou-se minoritária no mundo das comunicações. Nos grandes conglomerados da mídia, que se proclamam como players do negócio do entertainment, o jornalismo se vê cada vez mais restrito à condição de mero departamento dentro das empresas que, além de muitos outros produtos, oferecem atrações que podem ser chamadas de jornalísticas. O campo autônomo do jornalismo é envolvido por um corpo que lhe é maior e que o subjuga, lançando desafios imensos para a sua qualidade e a sua independência. Lembremos que, hoje, um só conglomerado do negócio do entretenimento é capaz de faturar por ano 40 bilhões de dólares, mais do que o PIB de alguns dos países da América do Sul.
Qualquer negócio tem por finalidade o lucro, nenhuma novidade quanto a isso. O entretenimento também. Mas ele vende o quê, exatamente? A sua mercadoria é algo que muitos, até hoje, têm enorme dificuldade para admitir. A sua mercadoria não é uma telenovela, ou um DVD, ou um programa de auditório. O coração do negócio do entretenimento no campo dos meios de comunicação social e, em particular, no campo da televisão, que é o que nos interessa dramaticamente, se resume a vender… o seu próprio público. Basta ver a televisão comercial aberta. A sua mercadoria não são as atrações que ela faz crer que são suas mercadorias, mas os olhos para os quais essas supostas mercadorias se anunciam atraentes. Ela comercializa o olhar de quem a vê, o que, em boa parte, é verdadeiro também para os canais pagos. De vender o seu público para o anunciante vivem as televisões comerciais. A sua estruturação estratégica se dirige à captação de público, à manutenção da atenção do público e à venda do público. É isso que tem valor em seu modelo de negócio. O entretenimento, nos veículos de comunicação, resume-se ao ofício de captar o olhar social para vendê-lo, de acordo com a quantidade e com a suposta qualidade da plateia da qual ele se origina.
O mito da “natureza” da televisão
Existem aqueles resignados que olham para o alto e giram levemente a cabeça, em sinal de enfado, para lançar o argumento que pensam ser imbatível: “Não adianta, o entretenimento é da natureza da televisão”. Não é verdade, de jeito nenhum. Chamo a atenção para essa crendice que se instalou assim sem mais nem menos e que, para a televisão pública, é mortal. É muito comum darmos de cara com esse dogma. A TV Cultura andou fazendo grandes cursos de cultura que nada têm das receitas da indústria do entretenimento. São experiências fabulosas. Estaria então a TV Cultura atentando contra a natureza da televisão? Seria isso? Claro que não. A televisão não é um dado da natureza; é uma produção da cultura, da história, das relações sociais, da tecnologia, do gênio humano e da democracia. O seu sentido e o seu uso são determinados na planície da cultura – ou no mar profundo da cultura, como queiram.
Acontece que a gente lida mal com essa história de natureza das coisas. Fala-se muito, por exemplo, que “o voyeurismo é natural do ser humano” (uso aspas aqui porque só mesmo entre aspas eu posso escrever uma coisa dessas). O voyeurismo não é “natural do ser humano”; é natural, ou melhor, é próprio de uma certa idade da cultura em que o olhar assume um determinado papel na configuração das relações entre os sujeitos e na configuração das significações. O voyeurismo só tem sentido onde essa divisão se instala dessa forma – e também só tem sentido numa civilização em que a imagem adquiriu o estatuto que adquiriu.
A televisão, aliás, tem entre nós o estatuto de janela para o mundo, capaz de descortinar os fatos como eles são, como se os víssemos de perto com os nossos próprios olhos, porque vivemos numa civilização em que a imagem se tornou critério da verdade. A televisão desfruta dessa impostura que esconde o artifício para dar a ver a suposta realidade.
O voyeurismo não é natural no humano, assim como o entretenimento não é natural nesse aparelho de imagem eletrônica que as pessoas têm em casa.
É verdade que, uma vez absorvida pelo entretenimento, a televisão se torna propulsora e disseminadora do espetáculo como um modo de produção. No próprio telejornalismo das emissoras comerciais é assim. Não por acaso, uma das críticas que se fazem com mais frequência ao próprio jornalismo é que ele tem buscado mais entreter que informar. A cobertura telejornalística de episódios como o massacre de Eldorado do Carajás, a morte de Ayrton Senna ou mesmo o 11 de Setembro denota uma propensão acentuada à finalidade de chocar, de emocionar, de projetar o que há de sensacional no fato em detrimento do sentido do próprio fato. O telejornalismo se abastece do show business, em sua dimensão estética, pois foi engolido por essa indústria que lhe é superior.
A televisão talvez seja um dos motores mais ativos da indústria do entretenimento, tendendo a sujeitar tudo o mais à espetacularização com finalidade de vender – vender, sobretudo, o olhar do público –, mas a sua natureza cultural não se reduz a isso. Ela pode, sim, prestar-se a outros fins: o conhecimento e a comunicação, que têm fôlego para alcançar outras altitudes.
4 bandeiras estéticas para a TV pública
Há uma bandeira ética que a televisão pública do Brasil precisa empunhar agora: a bandeira da independência frente aos governos e frente ao mercado. Ela não pode se sujeitar ao papel subalterno de promover governadores, ministros ou presidentes da República. Da mesma maneira, não pode ser uma caixa de ressonância das demandas de mercado, dos interesses dos anunciantes, do jogo da publicidade. O seu caminho, o da independência, vai para longe disso. Mas eu gostaria de falar não de bandeiras éticas, e, sim, de bandeiras estéticas. Essa dimensão, a estética, talvez seja ainda mais grave e é igualmente urgente. Proponho 4 bandeiras estéticas para a televisão pública:
1. Almejar o invisível
O sujeito só vê o objeto ao qual sabe dar nome. No olhar, só ganha visibilidade o que tem lugar na linguagem. Não vou aqui me ocupar dessas determinações que podem ser entendidas como leis do olhar, embora ainda não sejam conhecidas. Passarei por isso apenas para dizer que o objetivo permanente da televisão pública deve ser o de furar o pano da visibilidade, que embrulha como um invólucro o que chamamos de realidade. Trata-se de uma bandeira que traz consigo o dever da experimentação de linguagem. Almejar o invisível significa não compactuar com a ilusão essencial do entretenimento, que é a de apoiar no visível o critério da verdade. O visível não é – e nem contém – o critério da verdade. O visível é algo que nos fala aos sentidos, mas o conhecimento, a razão, o entendimento, a expressão das ideias, necessariamente, só podem ser concebidas como um processo que se estende além das fronteiras do visível. Almejar o invisível é investigar o sentido de fenômenos que, por algum motivo, não se manifestaram.
2. Desmontar o gozo pré-fabricado
A televisão pública deve problematizar o ciclo do gozo do olhar, a oferta de gozo da indústria de entretenimento. O monitor fala aos sentidos de seu fiel “fique aí que eu lhe proporcionarei deleite sem fim”, de tal forma que até mesmo – ou principalmente – as propagandas são peças centrais de entretenimento: a publicidade, mais que mercadorias distantes, oferece o gozo próximo, o mundo além dos limites, o prazer do consumo subjetivo que se antecipa ao ato social, material, de consumir. Desmontar essa oferta de gozo é oferecer o diferente, é deixar de reiterar, de insistir na reincidência de doses maiores das mesmas sensações.
3. Buscar o que não cabe na TV comercial
O que a televisão comercial faz a televisão pública não deve pretender fazer; o que a televisão pública faz, se estiver centrada em sua missão, a comercial não consegue fazer. É preciso identificar onde está a forma de comunicação que a televisão comercial não pode fazer, porque é justamente aí, nesse ponto escuro, invisível, que está o pequeno farol da TV pública. Na televisão pública, é preciso temer a engabelação, a tapeação, a demagogia, o desserviço, o sensacionalismo. O primeiro dever da televisão pública é ser diferente disso. A experimentação estética, um dever que ela tem, não pode conviver com o medo da chatice ou com o imperativo de agradar às maiorias médias o tempo todo.
4. Emancipar em lugar de vender
A TV pública não pode sucumbir ao impulso de querer ser desejada. A sua vocação é problematizar essa modalidade primitiva de sedução – ou de mendicância afetiva. Ela quer, sim, desmontar esse jogo sem saída e desmascarar as armadilhas. A proposta de comunicação que ela faz é uma proposta mais incerta, mais ingrata, menos demagógica, mais provocativa – indispensável para a diversificação de linguagens. A televisão pública não quer público cativo como quer a televisão comercial. Ela não funcionará como cativeiro, mas como emancipadora e incubadora. O sentido da televisão pública é tornar o sujeito suficientemente autônomo para, no limite, poder prescindir da televisão. O sentido da televisão comercial é aprisionar o sujeito na sua forma retangular. O pesadelo que atormenta a televisão comercial é o de, um dia, as pessoas não precisarem mais dela. A realização da TV pública é o contrário – é a emancipação. A televisão comercial pode até ser educativa e encontrar caminhos para isso. A televisão pública é uma instituição que precisa produzir gente emancipada, liberta, crítica – e pode até se tornar um sucesso, se for radical no seu compromisso de emancipar. O negócio da televisão pública não é entretenimento e, indo mais longe, não é sequer televisão: é cultura, é informação, é liberdade. Para a televisão comercial, o meio é um fim. Para a pública, o meio é uma possibilidade em aberto.
Só assim o público virá
Voltando ao pânico dos administradores da TV pública: essas bandeiras trarão público para ela? Seguramente. Aliás, a falta de público não deveria assustá-los, pois tem sido a sua rotina. Para a TV pública, só um caminho é possível: não competir com a televisão privada. Fora disso, ela até poderá prestar bons serviços para a indústria do entretenimento, mas não terá valor nenhum para a democracia, para a cultura e para os olhos que se abrem diante dela.
Eugênio Bucci
Jornalista, professor e autor de vários livros sobre ética do jornalismo, televisão e comunicação. Dirigiu a Radiobrás entre 2003 e 2007.
Como citar
BUCCI, Eugênio. TV pública e entretenimento. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 3, p. 40-43, jul. 2011.