UMA ROÇA IMPEJ
Texto de Ana Gabriela Morim de Lima
Sem título, pinturas de Solange Pessoa, fotografadas por Daniel Pinheiro
Em contraste com a homogeneização e a desertificação provocadas pela monocultura de grãos e pelos pastos vizinhos, as roças krahô são “belas e boas” quando são diversas. Neste texto, que é também um passeio, observamos como as plantas são cultivadas pelas mulheres krahô como filhas e filhos – que possuem corpo, alma, vontades e histórias, e que demandam cuidados e respeito de suas mães para crescerem.
Os primeiros raios de sol penetram pelas frestas da palha que ergue a casa e alcançam a minha rede. A intensidade luminosa que me obriga a abrir os olhos também embaça minha visão. Aos poucos, enxergo com mais nitidez a luz refletida nos grãos de poeira que emergem da terra batida, brilhando suspensos na fumaça do tabaco da velha. Ainda acordando, como que voltando de algum lugar, me dou conta de que a velha Hacàc já partiu.
Com o neto Hicure a tiracolo, e seguida pela neta Caxêkwỳj, Hacàc atravessa o caminho radial que corta a aldeia circular, ligando a casa ao pátio central. Só tenho tempo de pegar o caderno de campo, a máquina fotográfica, o gravador e mal dar um gole no café. Saio apressadamente para não ser deixada para trás, alcançando-os no pátio. Sua irmã Pêequê também vem a passos largos para se juntar a nós. Prosseguimos em fila e, mais à frente, na saída para o mato, a outra irmã, Pỳtkwyỳ, sua filha Ajprỳ e seu marido Xàj, já estão à nossa espera. “Impej, Jàt Cahhi?”, me cumprimenta Xàj, fazendo em seguida a pergunta habitual de todas as manhãs: “Com o que você sonhou?”. Deixando a aldeia para trás, nosso grupo adentra o Cerrado rumo à roça das três irmãs, Hacàc, Pêequê e Pỳtkwyỳ.
Os Krahô, que se autodenominam mẽhĩ, habitam tradicionalmente o Cerrado e, mais recentemente, se fixaram no estado do Tocantins, onde tiveram seu território demarcado em 1944. Põ é como os Krahô chamam o Cerrado que, longe de ser um ambiente homogêneo, compreende um mosaico de diferentes paisagens. Nessa época do ano, os diversos tons de verde se destacam na vegetação ainda úmida. O tempo do Catãmjê – do inverno, das chuvas e dos plantios – se aproxima do fim, anunciando a chegada do Wakmejê – do verão, da seca e das colheitas – quando o Cerrado será transformado pelo vermelho-alaranjado das queimadas que abrasam até o poente, e então é tomado por uma aridez ocre, banhada pela luz quente da estação.
Logo que saímos da aldeia, continuamos por uma trilha estreita rodeada por árvores baixas, de troncos retorcidos e cascas espessas, que guardam as marcas do fogo ao qual estão bem adaptadas. As árvores se organizam de forma esparsa, nos convidando a sair de quando em quando da trilha e caminhar entre elas. Estamos no chamado “cerrado típico”, conhecido pelos Krahô como hacôt, lugar de horizonte claro e limpo, onde suas aldeias são tradicionalmente abertas. As três mulheres estão sempre à frente, com o cesto pendurado na cabeça e o facão na mão abrindo o caminho; Hacàc com a tipoia transpassada no peito, vai carregando a criança. O homem caminha mais atrás, num braço leva a espingarda e, no outro, o macó, a bolsa onde guarda seus pertences de viagem. Eu e as duas meninas os seguimos pela trilha.
Após algum tempo de caminhada, Xàj se dirige à árvore de nome Tôhcre e começa a rascunhar seu tronco com o facão, fazendo um corte muito delicado para a retirada de uma parte da entrecasca, o pĩ cà ou “casca de pau”, que é usada para enrolar cigarros. Noto que a árvore carrega várias cicatrizes, vestígios de seu histórico de relação com outros que por ali passaram.
Continuamos andando, quando, de repente, ele se abaixa e, vasculhando minuciosamente a gramática do chão, coleta as folhas de uma pequena herbácea. Além de renomado cantor, Xàj é um grandessíssimo zombador, sempre brincando com meu desconhecimento no intuito de, talvez, me fazer “aprender a aprender”. Xàj pede para esfregar as folhinhas atrás das minhas orelhas, dizendo serem “refrescantes”. De imediato, descubro se tratar de uma urticária que as deixa avermelhadas e com uma forte coceira, mas que arrefece depois de alguns minutos. Queria ele abrir minha escuta? As mulheres riem diante da minha infantilidade e da malícia do homem.
Em seguida, dizendo ser “ampo xô”, “docinho igual balinha”, Xàj me faz mascar o palmito amargoso de nome Hôtre, também conhecido como “Pati da chapada”, palmeira que dá resistência aos corredores e caçadores, limpa o sangue e ajuda a sonhar. Ao longo do caminho, Xàj me mostra algumas das plantas usadas nesses resguardos e que brotam no Cerrado: “Essa chama Cotre, o veado gosta de comer a folhinha germinando. Se você passar o líquido branco dela no corpo, o veado mateiro vai gostar de você… Olha lá o Acàti, o veado mateiro gosta de comer o fruto da favona dela. Você faz garrafada com a casca e vai ficar bom de correr igual a ele… Tem planta boa para correr forte, outras para correr longe, outras para correr rápido. Cada uma tem seu jeito…Você está me ouvindo, Jàtre?”
A certa altura avistamos de longe um monte de terra coberto de palha. Trata-se do túmulo de um ancião recentemente falecido, que foi enterrado na entrada da aldeia abandonada. As mulheres costumam visitar essa tapera velha na época da coleta dos frutos dos pequizeiros, das mangueiras e dos cajueiros, árvores plantadas outrora por seus antepassados. Fomos lá algumas vezes, sempre em grupo, pois trata-se de um lugar perigoso, também visitado pelos mecarõ, as almas dos parentes que voltam de tempos em tempos às suas antigas moradas. Com saudades dos vivos, os mortos desejam levá-los consigo.
Seguimos em silêncio até que vislumbramos uma vereda, ou harê como a chamam os Krahô. Nas veredas onde nascem os olhos d’água também crescem os buritizais e habita a grande Sucuri, a dona do mundo aquático e chefe de todas as cobras. Há muito tempo, foi nesse universo cheio de água que se ouviu pela primeira vez a voz da Mulher-Cabaça, como conta o mito dos demiurgos Pỳt e Pỳtwryre, Sol e Lua. De uma cabaça perfurada e lançada na água, Sol fez a primeira mulher mẽhĩ, sua esposa. Depois fez a esposa de Lua e assim se seguiu, cada tipo de cabaça dando origem a uma mulher diferente: grandes, pequenas, redondas, compridas, cada qual com sua forma. Nos tempos de hoje, as cabaças são cultivadas pelas mulheres em seus quintais. Algumas delas são perfuradas para virarem instrumentos musicais, outras para guardar e conservar as sementes para plantio.
Os buritis que ornam as veredas são as palmeiras-símbolo do Cerrado. Chamado de crow, o Buriti está no começo do mundo, só vive onde tem água e dele os Krahô apreendem tudo, até mesmo os cantos. De seus generosos cachos caem os frutos, que são transportados pelos riachos e rios ou ainda coletados pelas mulheres, bem como por araras, cutias, capivaras, antas e outros animais, que apreciam sua polpa e colaboram para disseminar suas sementes.
Com seu tronco, os homens confeccionam as toras com as quais realizam as corridas de revezamento que animam o cotidiano e as festas. Com a fibra das folhas, eles tecem esteiras, bolsas, testeiras e cordas; com a casca do talo, confeccionam tipiti e abanadores. Com as folhas inteiras ainda verdes, as mulheres tecem os cestos cargueiros femininos, usados pendurados na cabeça. O “cofo”, como é conhecido pelos sertanejos da região, é chamado càhà xà na língua krahô, que significa “útero”. O cesto, que é também uma extensão do corpo da mulher, corporifica a forma-recipiente feminina, guarda e transporta seus (suas) filhos(as) humanos e plantas.
“Hacu Jàtre, vem, vem!”, chamam Pỳtkwỳj, Pêequê e Hacàc, esta última sempre com Hicure preso ao seu corpo, me estimulando a entrar nos campos alagados e a ajudá-las a coletar folhas de buriti. Meus pés descalços sentem a textura macia do capim molhado, mas não se aventuram a ir muito longe, apenas observando o buritizal sem perder a boa distância. Por meio da voz grave de Hacàc, o Buriti canta sobre si mesmo…
Pê Croware
Pê Croware
Pê Croware
Pê Croware
Ha pram pe ma
ji tô hôre
Pê Croware
Pê Croware
Pê Croware
Pê Croware
Buritizinho
Buritizinho
Buritizinho
Buritizinho
Dos olhos nascem
folhas juntinhas
Buritizinho
Buritizinho
Buritizinho
Buritizinho
Saindo da vereda, atravessamos o Cerrado e o Cerradão, até que a trilha começa a perder seus contornos nítidos e a vegetação se torna mais densa com a proximidade de um novo curso d’água. Adentrando pelo irõm, nos sentimos imediatamente envolvidos pela umidade da mata verde-escura e pelo frescor que as sombras dos jatobás, dos escorregas-macacos, das aroeiras, dos angicos, entre outras árvores de grande porte propiciam, ao mesmo tempo que somos atacados por uma horda insaciável de mosquitos. O ambiente fechado da mata ciliar exige cuidado e atenção com os galhos espinhentos, com as folhas cortantes e, especialmente, com as cobras que se camuflam facilmente nesse ambiente.
Enxergando longe e com a escuta sempre atenta, Xàj se agacha para examinar alguns vestígios no chão, que para mim são quase imperceptíveis. Ao perceber uma pegada relativamente fresca, o cantor comenta que alguém passou por ali. Apesar de estar bem escondido, Xàj é capaz de ouvir seu canto vindo de longe, já de outro lugar…
Ipare crire to itẽ mẽ xà
Ipare crire to itẽ mẽ xà
Jacu kẽnẽre te Caprũmù
kôt tô ikre wỳrỳipare
Crire to itẽ mẽ xà
Rastro da minha perninha
Rastro da minha perninha
Cutiazinha pela chapada
em direção ao meu buraco
Rastro da minha perninha
Antigamente, os animais eram abundantes. No entanto, com a invasão do gado e da soja, a caça foi se tornando cada vez mais rara. Os jovens de hoje deixaram de caçar e não respeitam mais os resguardos, são poucos os que ainda conhecem as plantas do mato que preparam o corpo do caçador, dizem os velhos em tom de queixa. As queixadas, relatam eles, entraram no buraco da terra e desapareceram por completo da vista dos homens. O Cerrado é hoje uma ilha arrodeada pelo desmatamento, resistindo obstinadamente ao cerco colonial. “E se o mundo perder de vez a paciência, e o Cupẽ Xàj [o Pica-pau “branco, estrangeiro”] conseguir derrubar o Khoikwa krát, o pé de árvore que sustenta o céu?”
Continuamos pela mata, mas noto que a vegetação arbustiva e as espécies pioneiras começam a predominar na paisagem. Estamos dentro de um hipe, as capoeiras velhas. Diante do avanço da mata que insiste em retomar seu espaço, as capoeiras ainda guardam as memórias deixadas pelos antepassados que ali abriram e cultivaram seus roçados. Se a roça é como uma mãe, a capoeira é uma avó, dizem as mulheres krahô.
Nas capoeiras, as frutíferas se ajuntam, especialmente as palmeiras de inajá, bacaba, macaúba, entre outras tradicionalmente manejadas pelos Krahô. Bananeiras, mandiocas e inhames também continuam sendo cultivados por algum tempo nesses espaços, atraindo vários animais. E nessa simbiose sutil entre caça, coleta e cultivo, os Krahô seguem manejando o mundo e sustentando o Cerrado de pé com a força de seus cantos. Com mãos de cutia e de tatu-peba, as três irmãs se movimentam pela capoeira, caçando e cavando….
cumã hà hipe he
ca ha xwỳ hà hà
cumã hà hipe he
ca ha xwỳ hà hà hà
cumã hà hipe he
mã jôri jôri re jô jôri re he
cumã hà hipe he
ca ha xwỳ hà hà hà
cumã hà hipe he
ca ha xwỳ hà hà hà
cumã hà hipe he
pela capoeira he
caçando e cavando hà hà
pela capoeira he
caçando e cavando hà hà
pela capoeira he
cadê cadê cadê he
pela capoeira he
caçando e cavando hà hà
pela capoeira he
caçando e cavando hà hà
pela capoeira he
Com o facão na mão, Hacàc caminha desbastando o mato, os cipós e as lianas que sombreiam e obstruem a passagem. Em determinado ponto, ela retira Hicure da tipoia e entrega para Caxêkwỳj segurá-lo. Então se agacha e começa a cavar. De dentro da terra sai uma enorme cabeça de inhame, cujas ramas sobem vertiginosamente pelos paus, enramando em forma espiralada.
hê hapijarõ
hê hê hapijarõtê
hê hapijarõ
hê hê hapijarõtê
hê hapijarõ
hê hê hapijarõtê
hê hê mã Crehe Rõrõtê
hê hapijarõ
hê hê hapijarõtê
hê hapijarõ
hê hê hapijarõtê
hê hapijarõ
hê hê hapijarõtê
hê enramado
hê hê enramando
hê enramado
hê hê enramando
hê enramado
hê hê enramando
hê hê Inhame Sucuri
hê enramado
hê hê enramando
hê enramado
hê hê enramando
hê enramado
hê hê enramando
“Esse é o canto do Inhame Sucuri, você compreende?”, diz Hacàc. Sua rama se comporta como uma sucuri, crescendo em espiral. Somente as pessoas mais velhas podem comê-lo, pois sua raiz possui um líquido branco que envenena e adoece mulheres e homens, sendo por isso estritamente proibido para os que ainda estão em idade fértil. Ela acomoda gentilmente a cabeça do inhame dentro de seu cofo e replanta as ramas, cuidando para que um novo ciclo recomece.
Pergunto então quem era o dono da capoeira, quem plantara os inhames? Hacàc diz que aquele local é a antiga capoeira da falecida Tuhhôc, sua “mãe velha”. Antes de morrer, há aproximadamente 20 anos, ela plantou aquelas cabeças. Os inhames podem viver muitos anos debaixo da terra. E esses inhames, que só agora foram colhidos, possuem um andamento próprio que remonta à história da migração de Tuhhôc e de seus descendentes: “Veio acompanhando desde a aldeia Canto Grande esse andamento do inhame. Minha mãe velha, Tuhhôc, nasceu e cresceu lá, mas foi acompanhando as mudanças que foram acontecendo. As cabeças do inhame vieram junto com ela. Quando você sai para outro lugar, sempre leva um pedacinho de cada. Então, ela se mudou para o Terehkat, plantava lá também. Passou um ano e veio para a aldeia Ràmpàr. Depois mudou para o Pjêxônti. Depois veio para essa aldeia bem aqui, Ahkrỳkat, a Pé de Côco. E essa semente de inhame veio sempre junto. Fizeram a roça, e foram deixando esse inhame bem aí. Quem plantou esse inhame foi a Tuhhôc. Eu a vi plantando, sabia onde ela plantava, mas só hoje, que mexi nele, lembrei: ‘Ah! tá tendo ainda!’… Já estava no jeito de tirar mesmo! Então, vou plantar mais, para nunca acabar, deixando sempre esse inhame para os meus netos”.
Seguimos pela mata até um pequeno córrego, onde uma família de manivas fincadas na terra aguarda o momento certo para ser replantada. Um sinal de que, finalmente, chegamos ao nosso destino. Uma grande clareira se abre no coração da mata.
A vitalidade das roças krahô, em franca continuidade com o Cerrado, contrasta com a homogeneização e a desertificação provocadas pela monocultura de grãos e pelos pastos limítrofes à Terra Indígena. Uma roça impej, “bela e boa”, é uma roça diversa. A estética da diversidade reside no gosto pela diferença que move as mulheres krahô a cultivarem e manejarem muitas variedades de plantas, que se distinguem entre si pelo cromatismo singular de suas sementes, pela morfologia particular de suas raízes, seus frutos e folhas, bem como por suas inúmeras origens e formas de uso. A percepção dessa diversidade se manifesta igualmente na poética dos cantos, por meio dos quais cada planta conta sobre seu jeito de ser e de viver. O que é também inseparável de uma ética do cuidado e da precaução que permeia as interações com as plantas, com os animais e com os outros seres com quem os Krahô coabitam no Cerrado.
As roças krahô possuem diferentes desenhos de plantio, alguns padrões se repetem e outros variam, tendo em vista que, se os conhecimentos acerca do cultivo são transmitidos ao longo das gerações, eles também emergem das experimentações criativas e das relações específicas que cada agricultor ou agricultora estabelece com suas plantas. Na roça nova das três irmãs, as bananeiras e os mamoeiros marcam os limites entre o espaço socializado pelos humanos e a mata. As abóboras foram plantadas perto da tapera da roça, de onde é possível contemplar suas flores.
Um pouco mais para dentro do roçado, de um lado ficam as macaxeiras, do outro as mandiocas bravas, assim separadas para facilitar a identificação. Os pés de milho traçam linhas que atravessam a roça de uma ponta a outra, e as favas, por vezes, neles se escoram. A fava e o milho são bons companheiros, um ajuda no crescimento do outro. No centro da roça, as ramas das batatas-doces vão caminhando e tomando conta do espaço, abrindo a própria aldeia circular. Também no centro, foi plantado o amendoim, mas que naquele ano não vingou, levando à perda de suas sementes. Na parte mais baixa e alagada fica o arrozal e, um pouco mais distante, para não sombrear, os pés de andu.
Os cultivos humanos coabitam ainda com diversas outras plantas, entre palmeiras, árvores frutíferas, ervas daninhas e medicinais. Algumas delas, embora manejadas pelos Krahô, são percebidas por eles como cultivos de “outras gentes” não humanas das quais depende sua reprodução. Uma miríade de insetos brota por todos os buracos. Pássaros, cutias, catitus, tatus, muitos, enfim, são os animais que fazem constantes visitas às roças em busca de alimento, e alguns acabam virando eles mesmos a refeição do dia.
Nos abrigamos na tapera da roça, uma pequena casa sem paredes e com telhado já esburacado. Hacàc e Pỳtkwỳj adentram pelo roçado, deixando o pequeno Hicure sob os cuidados de Caxêkwỳj e Ajprỳ. Apanho o bujão de plástico jogado no chão e vou até o córrego pegar água, enquanto Pêequê junta a lenha necessária para reavivar o fogo da cozinha. Na sequência, ela pega o tacho de cima do jirau, lava e despeja dentro dele o arroz pilado da última colheita. De seu cofo, tira um bom pedaço de carne seca e joga direto na brasa. Sento-me na esteira e, o meu lado, Xàj enrola seu cigarro na casca de pĩ cà.
Após fumá-lo em silêncio, o homem pega uma vara de madeira e, nela apoiado, se coloca a cantar, caminhando roçado adentro em direção às mulheres. Seus cantos animam o trabalho feminino e alegram as plantas, estimulando-as a crescer fortes e saudáveis. Resolvo acompanhá-lo e logo encontro Hacàc junto às mandiocas bravas: “Essa aqui é a caprecre (vermelhinha), a gente pegou dos brancos que chamam de sutinga. Ela não é muito amarga não, é boa para fazer beiju. Já essa é a xỳhti (muito amarga), a danada é brava, boa apenas para fazer farinha de puba; igual àquela pojti (jatobá grande), que de tão forte até mata, só serve para farinha mesmo. A forma dela parece até o fruto do jatobá…”
Com uma força impressionante, a mulher segura na base da maniva e puxa toda a planta de uma só vez, arrancando-a por inteiro da terra e trazendo à luz suas raízes-filhas subterrâneas. Depois as coloca uma a uma dentro do cofo, mesmo aquelas pequenas e finas. Nenhuma raiz pode ser deixada para trás, pois elas sofrem e sentem dor, e o mesmo vale para as manivas. Se as raízes-filhas não são bem cuidadas, a planta-mãe sente raiva de sua dona humana e busca se vingar. Isso lhe aconteceu certa vez, conta Hacàc, ao esquecer as raízes da mandioca brava secando ao sol, em vez de deixá-las dentro do córrego, onde geralmente ficam pubando por alguns dias para a extração do veneno. Quando chegou em casa, sentiu-se cansada, com febre e dores pelo corpo. É preciso ter cuidado com as plantas da roça, no duplo sentido da palavra.
Com seus cofos já cheios, Hacàc e Pỳtkwyỳ resolvem voltar para a tapera. Equilibrando-me sobre os troncos derrubados, me ponho a descer barranco abaixo ao encontro de Xàj. “Mais uns dias e já dá para colher esses dois ligeirinhos aqui”, diz ele apontando para o cawar japy (rabo de cavalo), um tipo de arroz que rende muito, e para o caprecre (vermelhinho), variedade importante para o resguardo do pós-parto. “Isso se os periquitos não estragarem tudo. Periquito é igual criança, não tem juízo, só fazendo zoada e bagunçando o arroz…”
Mais abaixo do arrozal, avistamos Pêequê com Caxêkwỳj, Ajprỳ e Hicure colhendo as vagens de andu. Desço para ajudar as crianças, que aprendem a colher brincando e dançando com os cantos do Andu:
Hãmature hijê hã
Hãmature hijê hã
Hãmature hijê hã
Hãmature mã cycyre
mã hapurorore
hijê hã
Hãmature hijê hã
Hãmature hijê hã
Hãmature hijê hã
Anduzinho hijê hã
Anduzinho hijê hã
Anduzinho hijê hã
Anduzinho ligeirinho
do galho esparramadinho hijê hã
Anduzinho hijê hã
Anduzinho hijê hã
Anduzinho hijê hã
As crianças voltam para a tapera e eu prossigo pelas fileiras de milho com Pêequê e Xàj. A estação da chuva está bem avançada, quase virando para o verão, e os pés de milho começam a secar. O milho verde já fora colhido no último mês, restando no pé apenas algumas espigas, cujas sementes duras serão guardadas para o próximo plantio. Foi o velho Olegário Tejapôc, marido de Hacàc, quem plantou aquelas sementes de põhỳpej, o “milho belo e bom”, uma variedade tradicional muito apreciada pelos Krahô, embora bastante rara nos dias atuais. Onde se planta põhỳpej, não se planta o põhỳti, o milho híbrido e pesado que vem da cidade, pois o milho é namorador e os diferentes tipos se misturam facilmente. O põhỳpej é o principal alimento usado durante os resguardos de pós-parto e de iniciação dos jovens guerreiros: ajuda as crianças e os jovens a se levantarem rápido, à imagem do seu pé, bem como a terem os ossos duros e resistentes, como suas sementes.
Xàj me conta que aquelas sementes de põhỳpej vieram da Embrapa. Os Krahô tinham perdido várias de suas sementes tradicionais quando, nos anos de 1990, um grupo de velhos anciãos foi até Brasília e conseguiu recuperar algumas delas, “guardadas naquele geladeirão”, diz ele, referindo-se aos bancos de germoplasmas do Centro Nacional de Recursos Genéticos (Cenargen). Num salto entre o tempo histórico e o mítico, lembro que foi a Estrela-Mulher quem trouxe todas as plantas cultivadas do céu e ofereceu aos antigos, que naquela época comiam somente pau podre. Foi também ela quem mostrou a grande árvore de milho, que guardava todas as variedades de milho em si: tycre (pretinho), jakare (branquinho), catõc pejre (pipoca), toh capêere (rajadinho), tohrõmre (azuladinho), auxêt japy (rabo de peba), intepre (vermelhinho), ihtahtapre (amarelinho), caxati (estrelão).
Crescendo junto ao milho estavam as favas, bem ornadas com suas vagens penduradas. Algumas ainda verdes são deixadas no pé. As maduras são identificadas pela sonoridade produzida pelo chacoalhar de suas sementes multicoloridas: fava krorore (pintadinha), toh tycre (olhinho preto), ihtyc mrã mrã (preta falhada), ihtatapre (amarelinha), hiprore (cinzenta), auxêt pa (fígado de tatu-peba), ahtor kre (ovo de inhambu), a pohti (larga e achatada), capêêti (rajadona) …
nẽ nẽ hà hô jĩrê hê jĩrê
nẽ nẽ hà hô jĩrê hê jĩrê
nẽ nẽ ja hà Pànjĩkrỳtytê jaj
crocroco tê
jaj Pànjĩkrỳtytê jaj crocroco tê
hà hà jĩrê hê jĩrê hê
hà hà jĩrê hê jĩrê hê
colhendo e colhendo e hà hô
colhendo e colhendo e hà hô
crocroc barulhinho da
Fava preta
crocroc barulhinho da
Fava preta
colhendo e colhendo e hà hà
colhendo e
colhendo e hà hà
“Hacu Jàt Cahhi, vamos comer!”, escuto o grito vindo da casa. Atravessamos o centro do roçado, que estava todo tomado pelas ramas da batata-doce. “Veja, Jàt Cahhi, suas cabeças de batata… Você não vai mexer porque elas ainda não estão maduras… Então a batata vai dar para você… Quando ela vê você pela primeira vez… ‘Eita! Essa minha mãe que é boa para mim!’ Essas coisas não são bicho, são gente…”
Na minha última viagem de campo, eu havia ajudado as três irmãs a plantar aquelas batatas-doces. Foi também nessa primeira estadia na aldeia Pé de Coco que ganhei meu nome krahô, Jàt Cahhi, “Esqueleto de Batata-doce”, algumas vezes substituído por Jàtre, “Batatinha”. As flores da batata-doce olharam para mim, como que me lembrando das raízes-filhas sendo gestadas dentro da terra. Muito em breve as colheríamos para cantar no Jãtjõpi, a festa de colheita da batata, quando elas finalmente deixariam a roça materna para circular pelas casas de outras mulheres da aldeia. É essa circulação de filhos-plantas e de sementes que promove a diversidade, a fertilidade e a beleza das roças, permitindo às mulheres krahô, ainda hoje, incorporar diferentes variedades e enriquecer o legado deixado pela Estrela-Mulher.
As plantas são seres viventes que possuem corpo e alma, vontades, agência e pensamentos próprios, bem como histórias, cantos e danças. Elas são cultivadas como parentes, brotando e frutificando para as mulheres vistas como boas mães, generosas e respeitosas. Existe um ciclo de cuidados em movimento: as mulheres cuidam das plantas e, por sua vez, os(as) filhos(as) das plantas alimentam os(as) filhos(as) humanos(as), ao passo que estes continuam então a reproduzir e a cuidar das plantas. Essa relação de “aparentamento” mútuo garante a existência tanto das plantas quanto das pessoas, sendo a capacidade de fazer crescer crianças e plantas belas, fortes e saudáveis o que motiva essa dupla produção. Ao mesmo tempo, quando esquecidas por suas donas, são as plantas que as abandonam, deixam de produzir para elas e se vingam, jogando doenças e feitiços.
Quando chegamos à tapera, a comida estava pronta. Como de costume, sou a primeira a ser servida e ganho o maior pedaço de carne, o que sempre me deixa constrangida, mas certa de que pela etiqueta krahô eu deveria não só aceitar, como esperar o momento certo para retribuir. Trabalhar junto, cantar junto, comer junto e compartilhar esses momentos na roça fortalecem os vínculos de parentesco entre as pessoas, incluindo os laços entre mim e a família que me adotou. De maneira semelhante a uma criança-planta, ou a um xerimbabo, as três irmãs estavam aos poucos me aparentando. Deram-me um nome, me alimentavam com afeto e atenção, me ensinavam a falar na língua krahô e, quem sabe, um dia eu até aprenderia alguns de seus cantos. A diferença entre nós, entretanto, não pode ser jamais anulada. Eu permaneço outra e o bom manejo de nossas relações envolve cuidados, mas também uma certa precaução.
O “aparentamento do branco” é também uma forma de amansamento de sua agência predatória, de sua sovinice e de seu individualismo exacerbado. Para além do conflito direto, que leva inevitavelmente à ruptura, a estratégia krahô é a de cultivar relações produtivas, capturando e incorporando as diferenças das quais depende a reprodução de seu socius. É também uma maneira de subverter a assimetria que enquadra a relação de pesquisa e a herança colonial que ela carrega. Se os antropólogos, os “cupẽ de longe”, são mais facilmente convertidos em aliados na luta e na resistência desse povo, grande parte deles levaram seus conhecimentos e depois os esqueceram, não voltaram mais, dizem meus interlocutores krahô que, por sua vez, estão sempre lembrando…
Cansados do dia de andança, repousamos na sombra das árvores, esperando o sol baixar para enfrentarmos o caminho de volta para a aldeia. Naquele instante, de olhos fechados e corpo adormecido, entre o sono e a vigília, senti meu espírito sobrevoar por aqueles espaços-tempos, embaralhando passado, presente e futuro, lugares, pessoas e outras gentes que escapam daquilo que sempre me pareceu familiar. Talvez eu estivesse, em estado de sonho, entrevendo novos caminhos para acessar, registrar e recontar imaginativamente minhas andanças com os Krahô, deixando-me afetar pelos encontros com esses seres outros que humanos que povoam o Cerrado e, em particular, pela vida das plantas. Através da etnografia passo, então, a buscar novas possibilidades de conexão entre essa experiência particular e o cosmos mais amplo – talvez seja esse também o sentido do sonhar e, portanto, de conhecer.
Ana Gabriela Morim de Lima
Doutora em Antropologia pela UFRJ, é pesquisadora associada ao CEstA/USP, NAIPE/UFRJ e L’UMR PALOC (IRD/MNHN). Desde 2004 realiza pesquisas e projetos com o povo indígena Krahô.
Solange Pessoa
Artista nascida em Ferros (MG), é professora da UEMG. Participou de exposições no Museu de Arte da Pampulha, Palácio das Artes, Museu Mineiro, CCSP, Bienal de Veneza e Palais de Tokyo.
Como citar
LIMA, Ana Gabriela Morim de. Uma roça impej. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, edição especial Vegetalidades, p. 74-87, set. 2023.
Esta edição especial da revista foi produzida colaborativamente pelos editores Felipe Carnevalli, Fernanda Regaldo, Paula Lobato, Renata Marquez e Wellington Cançado e pelas editoras convidadas Anai Vera, Bianca Chizzolini e Karen Shiratori.