UTOPIAS RECREATIVAS
Texto de Wellington Cançado
Volta ao mundo, 475 Volver e Fonte 193, de Cinthia Marcelle
No domingo ensolarado e de águas tranquilas do dia 29 de julho de 1933, partia do porto de Marselha, no sul da França, o SS Patris II, um antigo transportador de carvão totalmente transformado num moderno navio de cruzeiro por Héraclès Joannidès, armador grego e dono da empresa de turismo parisiense Neptos. O destino final era a cidade de Atenas, na Grécia, com direito a paradas intermediárias para visitas a vários sítios arqueológicos e locais históricos, incluindo as ruínas neolíticas em Gozo, Khirokitia, Delfos, Delos, Olímpia e as ilhas Cicládicas.
O objetivo dessa odisseia revisitada era o acontecimento em alto mar, ao longo dos 15 dias de viagem, do IV CIAM – Congresso Internacional de Arquitetura Moderna –, cujo tema “A cidade funcional” sintetizava a convicção generalizada de que os problemas das cidades poderiam ser resolvidos através de uma nova técnica urbanística (precisa, utilitária e científica), baseada na segregação estrita das principais funções urbanas: habitar, circular, trabalhar e recrear.
A bordo, dentre os ilustres e animados passageiros, os arquitetos Le Corbusier e Alvar Aalto, os artistas Fernand Léger e Moholy-Nagy, o crítico Siegfried Giedion e o galerista e editor italiano Pietro Maria Bardi (que, anos mais tarde, se mudaria para o Brasil com Lina Bo e, juntos, fundariam o Museu de Arte de São Paulo-MASP).
Protegidos das agruras do mundo às voltas com a ascensão do nazismo e distanciados do “objeto” de análise, como rezava a cartilha moderna, os participantes trabalhavam seriamente sob o céu azul mediterrâneo. De trajes de banho à beira da piscina ou no deck, se divertiam, promoviam festas e jogavam no interior das cabines. Circulavam livremente pelo labirinto de corredores e habitavam todos os lugares do navio fretado, como que contradizendo, na prática, a setorização de atividades que viria a ser proposta como grande solução para as cidades “afundadas no caos”.
Uma década se passou desde a volta do cruzeiro à Marselha, no dia 14 de agosto, até a publicação por Le Corbusier das conclusões do encontro, em 1942, sob o título de A carta de Atenas. Influenciando várias gerações e logo ditando as diretrizes para a reconstrução das cidades europeias no pós-guerra, a Carta se tornou um dos mais controversos e populares documentos já produzidos pelo CIAM e, na prática, acabou definindo um modelo de eficiência urbana internacionalmente almejado.
Uma dúzia de skatistas aproveita a avenida fechada aos carros para fazer ollies por entre as manilhas de concreto espalhadas por toda parte, depois dos estragos causados pela tempestade. Vários bólides tunados e construídos com esmero pelos próprios pilotos se posicionam na pista da BR-381 para a largada da segunda etapa do primeiro e provavelmente único campeonato rodoviário de Fórmula Rolimã, depois que a carreta carregada de bobinas de aço tombou (a estrada só será liberada em dois dias). Um despreocupado bicicleteiro vagueia lentamente em zigue-zague e sem destino certo no Rodoanel completamente deserto devido à queda do viaduto, que sofreu uma falha estrutural na viga principal (a empreiteira nega), no quilômetro 43. Imobilizados pelo monstruoso, mas corriqueiro engarrafamento, o juvenil do alvinegro paraibano, em visita à capital e inspirado pelo slogan do patrocinador (“just do it”), aproveita o intervalo forçado para um “bobinho” na rotatória mais próxima, enquanto motoboys, comprometidos com a velocidade do just in time, não param de zunir por entre as nesgas deixadas por carros e ônibus.
Cada nova técnica inventa um novo acidente, e os acidentes, disfunções do “sistema”, não passam de demonstrações eloquentes dos limites dessa técnica, já havia ensinado o fiósofo do desastre Paul Virilio. Assim, a invenção do navio torna iminente o naufrágio e se estatelar contra o poste parece ser o destino de todo automóvel, a menos que o congestionamento (a disfunção primeira do sistema viário) proteja os motoristas das tentações da velocidade. A invenção da cidade como técnica possibilita a perpetuação do ideal do funcionamento perfeito e, de repente, no caderno “CIDADE” ou nas páginas policiais dos jornais, crianças, brincadeiras, jogos inofensivos, situações inusitadas e apropriações fora dos padrões aparecem como contravenções, disfunções malignas e desvios indesejados. Como se as cidades não estivessem, desde sempre, em pane.
78 anos depois dos 15 ensolarados dias em que a arquitetura mundial saiu de férias pelo Mediterrâneo, a enfadonha doutrina urbanística, seguida à risca por aqui desde a construção de Brasília, continua a tentar reger a cacofonia natural das cidades. Claro, não mais com o glamour do design moderno nem mesmo no compasso otimista da bossa-nova, mas subrepticiamente entranhada nas normativas disciplinadoras, nas prescrições administrativas mais corriqueiras e no urbanismo policialesco. A “cidade funcional”, com seu caráter segregador e higienista e seus infames zoneamentos, foi, e continua a ser, apesar dos revisionismos críticos e da violência que lhe é intrínseca, mais oportuna do que nunca para o “choque de ordem e progresso”.
Mas, felizmente, a cidade nunca foi e nunca será o cenário simplório imaginado pelos engravatados de plantão, nem a máquina precisa dos tecnocratas e muito menos o fluxograma perfeito dos engenheiros de tráfego. Incontáveis acontecimentos imprevistos estabelecem diariamente outras temporalidades, possibilitando o surgimento de situações, lugares e relações jamais imaginadas. Com a lentidão e o travamento inesperado das engrenagens urbanas, emergem, sabe-se lá de onde (como vendedores de sombrinha antes da chuva e sorveteiros no parque em dias de sol), uma miríade de possibilidades de invenção de outros urbanismos “estruturalmente disfuncionais”, mas surpreendentemente convidativos e desafiadores, mesmo que ocasionais.
Uma pá escavadeira – daquelas de demolir quarteirões inteiros, retificar as geografias persistentes e aplainar toda a diversidade em poucas horas – percorre ininterruptamente o traçado na forma do símbolo matemático para infinito que ela mesma constrói para si. Enigmático moto-contínuo (felizmente circunscrito ao seu espaço topológico próprio), esse “autorama” gigantesco é um monumento-movimento às possibilidades benignas de reprogramação das máquinas mais devastadoras e um exercício de exploração sensível dos limites das técnicas mais brutais.
“Abrir rua”: gesto primordial e sinônimo de urbanização por aqui. No caso, uma rua paradoxal, nem a linha reta do delírio funcionalista e nem mesmo o “caminho tortuoso das mulas” por aquele combatido, mas uma rua autossuficiente, como deveriam ser, idealmente, todas as ruas, um circuito fechado, sem saída, sem cruzamentos e sem interferências indesejáveis (pedestres, ciclistas, cães, carroças, pedintes, etc.). Uma rua que inaugura um mundo utópico, um mini-loteamento com o sistema viário mais que perfeito (insuperável, na verdade) e onde as funções urbanas – circulação, habitação, trabalho e recreio – foram reduzidos à sua essência funcionalista: uma trajetória, uma máquina, uma ação e o tempo infinito à disposição.
Nove kombis, veículo preferido de quem “FAZ CARRETO”, contornam repetidas vezes a mesma rotatória, esse fragmento de terra firme inacessível aos humanos, mas insistentemente chamado de praça. Transportam nada mais que o motorista e o próprio veículo vazio num gira-gira sem destino algum, como que aproveitando as possibilidades “lúdicas” proporcionadas por essa invenção urbana magnífica e pouquíssimo explorada para fins recreativos ou terapêuticos. A kombi, ícone popular da mobilidade utilitária, protagoniza um balé motorizado que encontra na banal rotatória o cenário ideal para sua arte inútil. E, então, o carrossel hipnótico se faz e se desfaz numa coreografia premeditada. Ah, como seria incrível se os congestionamentos pudessem ser desfeitos com tamanha precisão e beleza!
Um caminhão do corpo de bombeiros, o mais requisitado na hora de um incêndio de verdade, circula em sentido anti-horário e sem parar, como que engastado a um eixo líquido imaginário criado pela água que se esvai da mangueira até o centro geométrico de sua rota. Já não se faz mais necessária a rotatória para instalação da fonte, pois uma vez mais o território é conformado pelo fluxo: do caminhão que inventa a rua no ato de circular e da água que jorra, esculpindo o chafariz etéreo no centro da praça imaginária. Não há fogo, nem vítimas, apenas reprogramação engenhosa da máquina e refuncionalização momentânea da técnica de apagar incêndios. O caminhão pipa com mangueiras de alta pressão, inventado para evitar que prédios inteiros esturriquem, combatendo o fogo à distância e nas alturas, é temporariamente (até que acabe o combustível, a água ou o vídeo) transformado em land art cinética. A água, extintor estéril, retorna como elemento vivo, paisagístico, sugestivamente recreativo. Catástrofe feita catarse.
As 3 vídeo-coreografias da artista Cinthia Marcelle – “475 Volver”, “Volta ao mundo” e “Fonte 193” – são engenhosos experimentos construtivos de refuncionalização. Assim como as disfunções acidentais no imaginário da “cidade-máquina” noticiadas com alarde (nada além de simples e legítimas apropriações do espaço público), que, mais do que desafiarem o funcionamento perfeito das máquinas e da cidade, revelam modos de usar não previstos nos manuais disponíveis, ainda muito impregnados daquela moral gestada entre doses de absinto e banhos de sol na proa do SS Patris II.
Contudo, mais que isso, tais disfunções projetam possibilidades de futuro que indagam diretamente o passado. Afinal, e se o SS Patris II tivesse naufragado, naquele ensolarado verão de 1933, como seriam as cidades hoje? E se, ao invés do cruzeiro de ida e volta, o CIAM planejasse navegar num círculo imaginário e em velocidade náutica constante até que o navio ficasse completamente sem combustível? Depois, seguindo fielmente o plano original, se entregassem docilmente aos movimentos das marés, sem a pretensão de voltar ao continente? E se, durante todo esse tempo de convívio agradável e vida indolente, aprimorassem as propostas para a “cidade funcional” por pura diversão, sem nunca, obviamente, pretenderem a aplicação de tal doutrina? E se, finalmente, sem propulsão, o navio se transformasse numa espécie de ilha mediterrânea à deriva, pátria da primeira cidade hedonista flutuante? Seria esse o verdadeiro projeto moderno refuncionalizado numa utopia recreativa?
Wellington Cançado
Editor da PISEAGRAMA.
Cinthia Marcelle
Artista. Vive e trabalha em Belo Horizonte. Participou, dentre outras, da 29 Bienal Internacional de São Paulo em 2010 e da Future Generation Art Prize Venice em 2011.
Como citar
ANÇADO, Wellington. Utopias recreativas. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 3, p. 46-48, jul. 2011.