VALOS
Texto de Euler Andrés Ribeiro
Construídos no século XVIII, os valos são trincheiras de 1,5 a 2 metros de profundidade e largura, circundadas por árvores nas duas bordas. Junto com os muros de pedra e as cercas de madeira, também chamadas tapumes, constituíam as técnicas difundidas no Brasil colonial para delimitação de propriedades, separação de pastos e plantações. A vantagem evidente dos valos é a economia material: não requerem nenhum recurso a não ser a mão de obra para a retirada de terra.
Essa trincheira rural ainda separa no tempo as eras pré e pós revolução industrial. Claro que o arame farpado produzido na Inglaterra demorou mais de 100 anos para se tornar popular no interior do Brasil. Enquanto isso, durante todo o século XIX ainda se construíam valos, muros de pedra e tapumes. Esses últimos se popularizaram no semiárido com o uso do angico e da aroeira do sertão, madeiras de alta durabilidade: toneladas e mais toneladas de árvores foram derrubadas para que se cercassem os vizinhos, as vacas, as cabras, os jegues, os porcos e as galinhas.
No Sudeste, os valos ainda permanecem nas regiões que foram ocupadas após a corrida do ouro do século XVIII: arredores de Ouro Preto, Mariana, São João del Rei, Sabará e Caeté. Quem viaja pela região pode ver na paisagem linhas de árvores que sobem e descem os morros, quebrando a monotonia das pastagens de braquiária.
Angicos, araçás, araticuns, açoita-cavalos, aroeiras, braúnas, camarás, canelas, canjeranas, cedros, copaíbas, cutieiras, embaúbas, gameleiras, gabirobas, goiabas, ingás, ipês, jacarandás, jacarés, jatobás, jequitibás, licuranas, maçarandubas, macaúbas, mulungus, perobas, pindaíbas, pitangas, sangras-d’água, sapucaias, sassafrás, sete-casacas, sobrasis, sucupiras, tabebuias, tamboris e uvaias: coleção de nomes indígenas que trazem lembranças de um tempo em que numa mesma fazenda se produziam leite, gado de corte, porcos, milho, feijão, arroz, abóbora, cana-de-açúcar, inhame, mandioca, café e as mais variadas frutas.
Meu avô plantava café na mata e nos valos. O café sombreado não produzia muito, mas tampouco demandava custosas adubações ou muitos tratos culturais. A sombra protege da geada, as folhas das árvores e gravetos em constante decomposição reciclam o solo e contribuem para sua estrutura porosa, sua umidade permanente e sua vida diversificada em fungos, bactérias, minhocas e milhares de outros pequenos seres – um verdadeiro conforto para a planta que costuma resultar em vida longa e produção continuada. Pés de café com mais de 100 anos ainda são produtivos nos quintais antigos das fazendas mineiras, nas bordas dos valos e das matas.
Nesse tempo em que se desconheciam a especialização e a economia de escala, a biodiversidade da produção era obrigatória. O manejo da matéria orgânica e a convivência harmônica com as matas naturais produziam um equilíbrio do solo que se refletia não na produção máxima por área (sofisma atual, que não leva em conta o custo real da energia não renovável embutida nos insumos químicos), mas na produção ótima, diversificada, econômica e permanente. Era motivo de orgulho dizer que numa propriedade se comprava apenas sal e querosene.
Nos valos remanescentes nas fazendas mineiras ainda transitam caxinguelês, bugios, inhambus, jacus, micos, quatis, seriemas e muitos outros bichos. Assim como as folhas, os galhos das árvores produzem condições para a vida animal. Em fazendas produtivas de animais domesticados, dos quais se extraem leite, ovos e carne, e cuja rotina no espaço e no tempo é regida pelos horários de trabalho, os valos conformam linhas de contato com o ritmo arredio dos animais selvagens. Nesse sentido, eles separam (e colocam em contato) também duas naturezas: aquela que o homem dominou e da qual extrai alimentos e aquela que se move à nossa mercê.
Mas nos valos circulam também, vez ou outra, animais sem rabo. Atentas que são ao território e seus acidentes, as crianças enxergam nos valos possibilidades de aventura muito mais promissoras do que nas tediosas pastagens, hortas ou plantações. Não é difícil imaginar a quantidade de acontecimentos inesperados que podem surgir numa caminhada dentro de um buraco comprido, envolto por árvores centenárias, preenchido por galhos em diferentes estágios de apodrecimento, atravessado por eventuais e enganosos cipós. O problema é que a chance de se encontrar um mico ou um quati convive com a de se encontrar uma jararaca, o que faz com que a brincadeira não seja bem vista pelos adultos.
Dizem que cachorro de rabo cortado não passa em pinguela. Não sei se procede, mas sei que essa pequena ponte usada para transpor o valo, assim como sua versão automotiva (o mata-burro) impedem a passagem de cavalos, burros, vacas e porcos e permitem ao homem com um mínimo de equilíbrio transitar, sem que precise abrir e fechar porteiras ou tranqueiras. Essas últimas, por sinal, com seus arames farpados que teimam em se embolar, viraram sinônimo de coisa incômoda, invenção do capeta.
Em tempos de condomínios fechados, a versão monocultural do valo é a cerca viva de sansão-do-campo. Plantadas com espaçamento de vinte centímetros, as cercas vivas formam muros vivos e espinhentos que, embora não configurem abrigos para animais, têm a função principal de cercar a espécie humana. A diferença é que os valos evitam que os animais fujam, enquanto a cerca viva quer evitar, com a ajuda da escolta armada e das câmeras de segurança, que os humanos entrem.
Um ditado antigo diz que um cachorro vive dois tapumes, um cavalo vive três cachorros e um homem vive três cavalos. Talvez em razão da longevidade a perder de vista das nossas trincheiras de biodiversidade, o ditado não tenha sabido precisar quantos homens vive um valo
Euler Andrés Ribeiro
Agricultor biodinâmico e veterinário.
Como citar
RIBEIRO, Euler Andrés. Valos. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 6, p. 4-5, abr. 2013.