VIDA
PEDESTRE
Texto de Renata Marquez
Semáforos, stills do vídeo de Francis Alÿs
Francis Alÿs confere um poder fabulador ao pior inimigo da vida pedestre, autoritário ícone da cidade rodoviarista. Aquele que dá o detestável privilégio orquestrado aos automóveis.
Existe vida pedestre nas cidades. Essa afirmação não resulta tão óbvia assim. Em Barcelona, há alguns pares de anos, podia-se ler o seguinte texto estampado em stencil no asfalto de La Rambla: “Um em cada três mortos em acidentes de trânsito andava a pé. Atenção! Todos somos pedestres!”. Atenção, nem sempre somos esses seres híbridos que se locomovem sobre quatro rodas em alta velocidade. E a cidade nem sempre é esse filme ao qual assistimos através de vidros indefectíveis, protagonizado por personagens distantes e mediado pelo botão acionador da janela do carro. Fecho rápido e pronto, o passeio agora pode ser devidamente sintonizado na trilha sonora preferida e ajustado à temperatura perfeita, tudo muito agradável. Percorro a cidade como se fosse um passeio remoto. Estou lá sem estar. Vejo sem ver, conheço sem conhecer. Apenas suspeito que a cidade real parece ter resolução mais detalhada do que a imagem de GPS que tenho no painel à minha frente, mas, afinal, isso pouco importa.
Contudo, de repente alguém é atropelado. Foi em Barcelona, mas poderia ter sido em qualquer esquina do Brasil. “Se tudo pode acontecer/se pode acontecer qualquer coisa/um deserto florescer/uma nuvem cheia não chover/pode alguém aparecer/e acontecer de ser você/um cometa vir ao chão/um relâmpago na escuridão”, canta Arnaldo Antunes. Espero que me perdoem por omitir a parte feliz da canção, ok? Pode acontecer de ser você. A pessoa sai de casa para passear, passa antes no mercado municipal, compra cerejas perfeitas. Entra na livraria, confere as novidades da seção de revistas de fotografia. E resolve, sem mais nem menos, ir ao Teatre Grec assistir ao show da Laurie Anderson. Espera pelo ônibus no ponto da esquina. Sai de casa de blusa nova, comprada no dia anterior na Calle Tallers, que fica ótima combinada com a saia antiga preferida. E tudo escurece. Não tinha a menor ideia de que demoraria dois meses para voltar para casa. E, ao que parece, teve sorte.
O primeiro passeio, depois de quarenta dias de imobilidade total na posição horizontal, foi de ambulância. Ainda não voltando para casa, mas mudando de hospital: saindo de um hospital de urgência e indo para um hospital de reabilitação. Vê o céu – inacreditavelmente azul naquele dia –, o que há muito não tinha tido a oportunidade de ver. Do ponto de vista da sua imobilidade hospitalar não havia vistas ou perspectivas exteriores. Da cama do primeiro hospital não se via a janela – um problema arquitetônico elementar, pôde logo perceber. O planejamento de hospitais, de maneira similar ao planejamento de cidades, parece ser incapaz de enxergar a escala cotidiana. É desumanizado e desumano. Mas agora ela estava, finalmente, de volta às ruas. Uma folha de plátano entra magicamente pela janela da ambulância. Isso é meio piegas, mas foi verdade. A folha caiu sobre o seu corpo, ainda na horizontal, mas finalmente em movimento, sobre as quatro rodas que mencionávamos há pouco. Pararam no semáforo de uma avenida que não conseguiu reconhecer. Louca a cidade, pensou. O que a assombrava não era o ressentimento “que azar estar naquele lugar exatamente naquele instante em que o carro desgovernado irrompeu na calçada”, mas sim “quantas vezes escapei de momentos precisos como aquele? E quantas vezes mais escaparei sem que tenha a menor ideia de que quase aconteceram?” Depois de mais de um ano em recuperação, saiu da posição horizontal, reaprendeu a caminhar e voltou para casa. E, depois desse tempo todo sem entrar em veículos que não metrô, ônibus ou ambulâncias, desistiu de vez da vida motorizada.
Atenção! Todos somos pedestres! Um motorista torna-se uma pessoa perigosa por ser incapaz de perceber a vida pedestre. Ou o pedestre se torna, aos seus olhos, um empecilho ao desenvolvimento e ao progresso, um elemento abstrato e estatístico como num jogo. Uns nem enxergam, outros aceleram e há os que passam por cima e desaparecem em seguida, muitas vezes sem deixar rastros. Este último caso é considerado crime de homicídio culposo, sem intenção, com três elementos possíveis a serem avaliados: negligência, imperícia e imprudência.
Em um documento das Nações Unidas divulgado em 2013, metade das vítimas de acidentes de trânsito no mundo são as denominadas categorias vulneráveis (pedestres, ciclistas e motociclistas). No ano de 2011, constituíram 66,6% das vítimas do trânsito. No Brasil, hoje, a cada sete minutos ocorre um atropelamento. Dentre as 46 mil mortes anuais por acidentes de trânsito, 44% foram por atropelamento. Crianças morrem mais por atropelamentos do que por doenças. Portanto, os pedestres são, por definição, vulneráveis. A vida pedestre é arriscada. A cidade não parece ser feita para tal categoria – muito estranho, não?
Sempre achei inaceitável a falta de importância conferida, pelos analistas urbanos e planejadores, aos “percursos a pé” que aparecem nas tabelas das pesquisas estatísticas dos órgãos responsáveis pelo tráfego. Tais percursos são normalmente entendidos como precariedade: aqueles integrantes da categoria vulnerável são também precários, aqueles que não têm condição de usar o transporte público ou que não têm acesso ao carro próprio. Nas principais Regiões Metropolitanas, as viagens a pé, quando mencionadas, “puxam a média do tempo de viagem total para baixo”. Entretanto, elas podem alcançar cerca de 35% dos modos de viagem da população, que costuma andar a pé ou de bicicleta como meio de transporte diário. Mas o que o planejamento urbano faz com esse dado? Todos somos pedestres, mas os deslocamentos a pé são sistematicamente esquecidos nos planos e projetos dos governantes, enquanto poderiam, inversamente, ser entendidos como um dado decisivo para a construção da cidade. Uma outra cidade, naturalmente, na qual os heróis da vida pedestre, que sobrevivem diariamente sem que ninguém pense neles, transformar-se-iam em cidadãos.
“Nossas autoridades públicas não tomaram consciência ainda que andar a pé é transporte”, salienta a Associação Brasileira de Pedestres em documento crítico ao Código de Trânsito Brasileiro. O imaginário de cidade para caminhantes não se encaixa no que temos, não é mesmo? As calçadas são estreitas, irregulares e obstaculizadas, quando existem. Em São Paulo, segundo pesquisa do IPEA, o índice de quedas nas calçadas é de nove quedas por mil habitantes todo ano, o que resulta em cerca de 100.000 pedestres feridos por ano. E os semáforos que tentam reger o frequentemente desobediente movimento pedestre são para atletas da velocidade, não para idosos, moças com dezoito parafusos nas costas (a sobrevivente do atropelamento de quem eu falava há pouco) ou cães obesos. E a vida, tal qual observação dos próprios urbanistas nos Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna da década de 1950, é sobretudo feita dessas imperfeições – e não dos atletas.
Na capital espanhola foi lançada recentemente uma curiosa campanha pró-pedestres: “Ativa Madri. Sua academia portátil. As instalações mais completas da cidade. Aberta 24 horas por dia, 365 dias por ano. Apta para todas as idades. Ao utilizá-la, você melhora a sua saúde e a saúde dos seus concidadãos. Recomendado para a redução de gorduras, fumaça e ruído. EXPERIMENTE, É GRÁTIS!”. Vamos caminhar?
O semáforo está verde para nós, observou o senhor ao meu lado. Estávamos no canteiro central da principal avenida da cidade. Foi em Belo Horizonte mas poderia ser um semáforo de qualquer outra cidade do Brasil. O senhor levava um cão numa guia. Era um labrador claro e gordo, muito velho. Difícil saber qual dos dois era mais ancião. O animal andava com dificuldade, lentamente, suas patas tinham artrose e ele suava loucamente pela língua. Pois bem, eles desceram do canteiro e entraram na avenida, na faixa de pedestres, local oficialmente permitido para a categoria vulnerável. Deram três lentos passos e o semáforo abriu para os carros. Eles deram meia volta e retornaram ao canteiro central, na mesma velocidade. Os carros subiram a avenida levemente irritados com o atraso de dois ou três segundos. De novo: pisca o homenzinho verde, indicando que podem tentar de novo. Coragem! E lá vão eles, para retornar em seguida, ainda sem sucesso. Depois de observar o movimento da dupla por três vezes, retomei o meu caminho e desci a avenida, desolada.
Em outro itinerário, em uma esquina qualquer, o semáforo está vermelho para os pedestres. Enquanto espero para atravessar de um lado a outro, observo, na calçada à frente, uma senhora com visíveis problemas nas pernas. Ela chega e, resignada e pacientemente, abre um banquinho, posicionando-o na calçada. Senta-se com dificuldade e aguarda pela luz verde do semáforo. Um gesto executado sem que aparente nada de extraordinário, como uma simples e engenhosa prática cotidiana. Realmente: como é demorado!
No vídeo Semáforos, o artista Francis Alÿs aproveita a sua deambulação pelo mundo para colecionar pictogramas luminosos de pedestres dos semáforos de várias cidades, desde 1995. Espremidos em áreas e tempos cada vez mais diminutos, os pedestres são os personagens da crônica visual videografada por Alÿs, crônica ao mesmo tempo global e local, genérica e singular, trágica e cômica. Escrevendo com a colaboração involuntária de um instrumento controlador de tráfego, Alÿs confere um poder fabulador ao pior inimigo da vida pedestre, autoritário ícone da cidade rodoviarista. Aquele que dá o detestável privilégio orquestrado aos automóveis.
A tipologia pedestre é apresentada em Semáforos como uma coleção de imagens supostamente universais. Entretanto, reunidas em conjunto, elas acabam por demonstrar uma impensada diversidade e uma flagrante subjetividade, que recuperam a alma encantadora das ruas. Atenção, todos somos pedestres! E somos diversos. Uns andam sós (São Paulo), outros em grupo (Santiago); alguns poucos sobre cavalo (Londres), ou muitos de bicicleta (Amsterdam, Münster…). Outros são casais (Estocolmo) – claro que isso é apenas uma suposição – ou necessitam de uma bengala para acelerar os seus passos (Buenos Aires). Alguns carregam apressadamente maletas (Cidade do México), mas há também aqueles pedestres que são crianças, naturalmente (Berlim). Entretanto, como eu disse no início, essa afirmação tampouco resulta tão óbvia assim. E, não nos esqueçamos, há também os cães.
Em 1986, Francis Alÿs trocou a Bélgica pelo México e encantou-se com a quantidade de cães sem dono que circulavam livremente ali. É curioso lembrar que, antes de trabalhar como artista, Alÿs foi arquiteto. Mas um arquiteto, desde o início, desinteressado por acumular objetos no mundo. A sua tese de doutorado, defendida um ano antes de mudar-se para o centro histórico da Cidade do México, teve os cães urbanos como protagonistas. Discorreu sobre os esforços de erradicação, por decreto municipal higienista, dos cães e de outros animais erradios nas cidades pré-renascentistas e sobre a relação desse decreto com o imaginário e o papel simbólico dos animais na visualidade da mesma época.
“O cão me permite colocar um personagem por trás do sentimento de liberdade que encontrei aqui”, disse Alÿs certa vez, numa entrevista. Em 2003, havia cerca de 3 milhões de cães soltos na capital mexicana. Para o artista, eram ícones da resistência contrária à modernidade, caminhantes livres, oportunistas, anônimos exitosos no confronto com a ordem. A cidade dos cães era uma cidade dispersa, imprevisível, afetiva e profundamente humana, pois podíamos nos reconhecer em seus hábitos andarilhos. Essa observação não é pueril quando a história se refere a Francis Alÿs, um artista que fundamentou o seu trabalho na prática cotidiana de caminhar. Os pictogramas de Semáforos podem ser eles mesmos entendidos como uma espécie de autorretrato do artista.
Os cães que encontrou no México inspiraram Alÿs a construir, em 1990, um cão bastante peculiar, que chamou de O coletor. Feito de material magnético sobre rodas de patins, o cão é levado para passear e, no caminho, atrai coisas de metal que vão grudando-se ao seu corpo. Trabalho ao mesmo tempo científico (de “ciência visível”, como ele diz), fantástico e discreto. Discreto em vez de extraordinário, como outros tantos trabalhos do artista, pois se camufla facilmente em meio às incessantes práticas cotidianas de pedestres que puxam objetos, carregam caixas, acumulam e coletam detritos da cidade. Ao final de um dia de passeio com o coletor, pode ser que ele esteja completamente coberto com pequenos objetos de metal ou, nas palavras de Alÿs, com os seus “troféus”. O coletor foi seguido por Sapatos Magnéticos, outra caminhada imantada protagonizada por Alÿs em Havana, em 1994, na qual os seus próprios sapatos tinham o poder de atrair e coletar pequenos objetos metálicos encontrados nas ruas.
A tipologia das pessoas caminhantes que, anonimamente, constroem no dia a dia a vivacidade urbana e a iminência de encontros e desencontros é também objeto de interesse de Alÿs. A série Instantâneas, constituída entre 1994 e 2006, foi formada por fotografias achadas de caminhantes nas calçadas – sozinhos ou em pequenos grupos –, produzidas despretensiosamente por fotógrafos de rua retratistas no centro histórico da capital mexicana.
Com Turista – ação de 1994 em que Alÿs posa oferecendo os seus serviços como turista ao lado de bombeiros, eletricistas, pintores e outros profissionais ambulantes que fazem ponto em frente à Catedral Metropolitana –, o artista registra a sua condição inicial de “gringo” e a sua dificuldade óbvia de diluir-se no cotidiano da cidade que escolheu para viver. Superado o distanciamento da cidade imposto às suas feições de europeu, conquistou o seu lugar na nova vizinhança para desenvolver uma “cartografia horizontal-topográfica (em contraposição a uma leitura vertical-cronológica)” em suas obras.
“Tudo o que vi, escutei, encontrei, fiz ou desfiz, entendi ou não entendi, a dez quadras do estúdio no centro histórico da Cidade do México” é uma epígrafe que sintetiza, em 2006, sua prática artística caminhante. No raio de dez quadras do seu estúdio, o mundo se apresenta e é transformado sob os seus passos. Atualizando práticas precedentes na história da arte como a flânerie, a deambulação surrealista, a deriva situacionista ou mesmo a arte povera do caminhante inglês Richard Long, Alÿs performatiza o passeio, atravessando-o por uma política da cidade “como lugar de sensações e conflitos de onde se extraem os materiais para criar ficções, arte e mitos urbanos”.
“México é uma cidade que te obriga constantemente a responder à sua realidade, a te reposicionar frente a essa entidade urbana desmesurada”, postula Alÿs. Ao escolher caminhar como método de trabalho, empreendendo passeios entendidos como instrumentos simultaneamente de documentação e de ficção, Alÿs observa. Enquanto caminha, não acumula novos objetos no mundo. Enquanto caminha, ensaia métricas para o desmesurado da cidade.
No vídeo intitulado Se você é um típico espectador, o que está realmente fazendo é esperar que o acidente aconteça, feito em março de 1997, o artista observa, durante dez minutos, objetos displicentemente rastejando no chão do Zócalo, praça principal da Cidade do México. Primeiro, um engradado plástico amarrado a uma corda, puxada por um garoto com não mais do que seis ou sete anos de idade, é enquadrado pela câmera. A associação com a figura de O coletor, desenvolvido alguns anos antes, é inevitável. Em seguida, rouba a cena uma garrafa plástica vazia. A câmera acompanha com minúcia o caminho da garrafa pelos oito minutos restantes do vídeo. Levada pela ação combinada do vento e da topografia pavimentada da praça, a garrafa circula sozinha, esbarra nos pés de transeuntes que a ignoram, rola para lá e para cá até transformar-se em objeto de um rápido jogo para crianças. É novamente liberada por elas e finalmente alcança a avenida.
Rolando bem devagar, a garrafa é levemente atingida por uma bicicleta que passa logo na primeira pista da larga avenida. Heroicamente, vai resistindo intacta ao longo das demais pistas, atravessando-as com toda a sua monumental insignificância. A mudança dos ventos provocada pela velocidade repentina dos veículos que ali circulam acelera e desacelera o seu movimento rítmico. Essa travessia filmada da garrafa bem poderia ser interpretada como um ensaio metafórico de uma tentativa de travessia pedestre. Poderia assim ser uma metáfora se um pedestre real não estivesse a poucos metros da garrafa. Enquanto filmava, Alÿs, em carne e osso, é subitamente golpeado por um carro inesperado e o vídeo, obviamente, ganha o seu fim.
Renata Marquez
Editora da PISEAGRAMA.
Francis Alÿs
Artista belga radicado na Cidade do México. Inspirado por passeios na cidade, atua na fronteira entre arte, arquitetura e prática social.
Como citar
MARQUEZ, Renata. Vida pedestre. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 7, p. 50-59, jan. 2015.