VIVER
COM NADA
Texto de Wellington Cançado
Coisas que carrego comigo, pinturas de Selma Andrade
No mundo em que gostaríamos de viver, quais seriam os artefatos da malfadada lista da marcha do progresso escolhidos para serem imediatamente abolidos da face da Terra?
Diante de um Programa Planetário de Abolição de Artefatos Humanos que determine não somente o fim da produção e comercialização dos mesmos, mas também a destruição dos exemplares existentes, quais seriam os produtos que deveriam figurar na lista para serem abolidos imediatamente da face da Terra?
Carros, armas de fogo, plásticos, motosserras, asfalto, passaporte, salsichas, ar condicionado, refrigerantes, agrotóxicos, televisão, salto alto, cercas (inclusive as elétricas), viadutos, transgênicos, shopping centers, hidrelétricas, usinas nucleares, petróleo?
Parece bem mais fácil vislumbrar as possibilidades benignas e instantâneas da abolição dos artefatos do que definir os top ten a serem abolidos em uma desgraçada lista da marcha do progresso ocidental.
Mas, ao juntar as listas de toda a humanidade, teríamos milhares, quiçá milhões, de artefatos a serem recolhidos, destruídos, reciclados. O que significaria finalmente um trabalho relevante para bilhões de pessoas por décadas, incluindo a transformação e o desmanche das fábricas, dos parques industriais e das cadeias produtivas extensas e complexas outrora produtoras dos artefatos banidos.
“Uma humanidade libertada neste sentido defrontaria-se com um gigantesco deserto de escombros de conteúdos passados de todo tipo, a partir do qual ela teria de criar, igualmente impelida pela necessidade, em parte pela apropriação, em parte pela rejeição provavelmente acompanhada de um enorme esforço de ‘reciclagem’, um relacionamento diferente com a natureza e consigo própria”, diria Robert Kurz, filósofo alemão falecido em 2012.
O “programa de abolição de artefatos”, ao qual acrescentamos deliberadamente o caráter planetário e a condição humana evidente da crise climática, é de fato uma proposição do filósofo que em vários momentos a (d)enunciou.
Ou como escreveria Kurz em A queima do futuro, de 2007, “o capitalismo é uma cultura de combustão”, conjecturando que “o modo de produção e de vida dominante deixa apenas a alternativa da catástrofe climática ser abrandada pelo colapso econômico ou, pelo contrário, que a catástrofe climática desenfreada leve à violenta queda da economia”.
Proposto em seu ensaio Tábula rasa, publicado na revista Krisis quatro anos antes, o “programa”, segundo o autor, deveria abranger um âmbito muito amplo de artefatos ocidentais, uma vez que “a contaminação das coisas pela abstração real violadora da existência e, de um modo mais geral, das relações de fetiche” progrediu de maneira assombrosa no mundo industrial.
Apesar disso, “mesmo em relação aos artefatos capitalistas no sentido mais lato isso não pode significar que se queira arrancar com um programa de tábula rasa”, com uma recusa indiscriminada aos conteúdos e artefatos produzidos ao longo dos últimos séculos, e a rejeição em bloco a toda e qualquer agregação de tecnologias, habilidades e conhecimentos modernos.
Afinal, “por que haveriam de desaparecer o telefone ou a internet ou a utilização da electricidade?”, indagaria. Há tão pouca pertinência em se cogitar abolir a bicicleta e a lanterna de bolso quanto tantos outros artefatos humanos que deveriam ser salvos.
“Salvar ou abolir, eis a questão”. Entretanto, se a frigideira de Teflon® “não pode ser rejeitada por ser um produto colateral da tecnologia espacial capitalista e, com isso, do complexo militar e industrial”, ela deveria certamente entrar em qualquer lista de objetos a serem abolidos se for comprovadamente cancerígena.
Quais seriam então os critérios para que qualquer artefato produzido pela humanidade entre na lista para ser banido definitivamente da vida cotidiana? Para Kurz, se não pode existir qualquer padrão abstrato e geral de seleção dos mesmos – o que afinal nos levaria novamente ao fetichismo –, a resposta a essa questão é simples e direta: “O que está em causa é a abolição dos sofrimentos desnecessários e produzidos pela própria sociedade”.
Mas se a sociedade é não o conjunto de todos os humanos, mas mais especificamente o “sujeito moderno, capitalista, branco e masculino permeado pela ideologia do valor e da dissociação”, e cujo programa em si é a negação brutal de todo o mundo sensível e social – em perfeita consonância com o anthropos do Antropoceno –, não há dúvida de que a noção de sofrimento extrapole em muito os sofrimentos humanos. E que, englobando os diversos coletivos não humanos que habitam o planeta e também a própria Terra, a contaminação desenfreada do planeta, a destruição sistemática dos ecosistemas naturais, a extinção em massa de animais e plantas, etc., seriam, afinal, formas industriais e extensivas de sofrimento.
Em tal reprogramação compartilhada e autônoma do mundo através da seleção individual dos artefatos da Modernidade proposta por Kurz, em que não cabe nenhum “Homem novo” – “uma construção positiva, uma má utopia” –, prevaleceria portanto o interesse ético pelos “existentes em sua singularidade”, como nos termos de Gilles Deleuze, para quem é preciso ver “não o que uma coisa é, mas o que ela é capaz de suportar, é capaz de fazer”.
“Enquanto milhões de pessoas sofrem, os mercados estão saturados e há excedente de produtos”, diria Bernard London. Se para Kurz os artefatos da modernidade deveriam ser abolidos por serem causa de sofrimentos, para London, exatos 90 anos antes, o sofrimento se originaria exatamente na escassez criada artificialmente pela restrição de acesso aos produtos imposta pela economia.
No ano de 1932, London, considerado o criador não somente da expressão “obsolescência programada” como também dos princípios que regem seu funcionamento, publicaria em Nova Iorque a sua controversa proposta em um panfleto de título A obsolescência programada contra a crise publicado em versão editada na quarta edição de PISEAGRAMA em 2013. Como pressuposto, o de que a tecnologia moderna e a aplicação da ciência aos negócios aumentaram a tal ponto a produtividade de nossas fábricas e de nossos campos que a “questão econômica fundamental hoje é organizar compradores, e não estimular produtores”.
De acordo com sua proposta, caberia exclusivamente ao Estado reorganizar o ciclo de produção, distribuição e consumo, planejando e executando uma economia-política na qual a obsolescência programada seria a forma de governo das relações entre capital e trabalho, uma vez que o principal problema diagnosticado pelo economista e investidor imobiliário seria o ímpeto “ultrarretencionista” dos consumidores durante os períodos de crise: “Por toda parte, hoje as pessoas estão desobedecendo à lei da obsolescência. Estão usando seus carros velhos, pneus velhos, rádios velhos e roupas velhas por muito mais tempo do que apontariam as curvas estatísticas”.
A solução de London para tal dilema que desafiava os preceitos da economia liberal seria “não só planejar o que produzir, mas também aplicar a administração e o planejamento para desfazer trabalhos obsoletos do passado”.
Teria Robert Kurz reprogramado a obsolescência programada para o seu “programa”? O fato é que o plano de London – que consistiria em tabelar a obsolescência do capital e dos bens de consumo no momento de sua produção, de forma que sempre haveria trabalho, uma vez que a demanda contínua por produtos novos manteria a produção constante – apostava também na destruição como motor do mundo. Não outro mundo, entretanto, mas o mesmo, sempre novinho em folha.
E nesse mundo, acúmulo, somente de objetos impossíveis de serem reinseridos na produção. Posse, somente transitória, e relações com os artefatos estritamente econômicas e não afetivas. De tal maneira que “assim que fossem criados, o governo atribuiria um prazo de vida a sapatos, casas, maquinário e a todos os produtos da indústria, mineração e agricultura”. Eles seriam vendidos e usados dentro do prazo estabelecido. Quando o prazo expirasse, esses produtos, controlados por uma agência governamental, “estariam legalmente ‘mortos’ e seriam destruídos”.
“Se precisamos sempre de coisas novas porque essas são melhores, isso quer dizer que os produtos que a maioria da população usa cotidianamente não são tão bons”, captaria Ivan Illich, com perspicácia, o mote da indústria moderna que London ajudou a forjar com sua proposta – logo incorporada, à revelia de qualquer mediação estatal, como a política do design, e que perdura até os nossos dias.
Mas dois terços da humanidade poderiam evitar o mundo industrial e as formas de vida que este pressupõe, escolhendo deliberadamente um modo “pós-industrial”, opção que as sociedades hiperindustriais somente considerarão no limiar da própria destruição, conjecturaria Illich no ano de 1973, em seu livro Tools of Conviviality.
A esse modo pós-industrial, o filósofo batizou “sociedade convivial”, em oposição à sociedade industrial de demandas fabricadas e impostas que caminha para o desastre tecnocrático. A convivial seria inevitavelmente uma sociedade de ferramentas autolimitadas – “ferramentas conviviais” –, cujos limites tornariam possível rearticular as relações entre as pessoas, os artefatos e a coletividade através de interações autônomas e criativas entre estas e entre estas e o ambiente.
As “ferramentas conviviais” seriam, portanto, aquelas que permitiriam às pessoas as melhores oportunidades de redesenhar o ambiente coletivo a partir da autonomia pessoal, podendo englobar todos os dispositivos racionalmente projetados, desde artefatos, normas, códigos, operadores, mas também incluindo ferramentas no sentido estrito, brocas, seringas, vassouras, elementos construtivos, motores e até mesmo grandes e complexas máquinas como metrôs e estações elétricas, além de instituições produtivas como fábricas de mercadorias tangíveis e intangíveis tais como educação, saúde, conhecimento ou decisões.
No mundo industrial a autonomia individual vem sendo radicalmente reduzida por uma sociedade na qual o máximo de satisfação se dá pela quantidade consumida de bens industriais e na qual o papel das pessoas vai sendo exclusivamente consumir, diria Illich. Nesses contextos, portanto, para que a transição para a sociedade convivial possa se realizar, artefatos e regras que são obstáculos ao exercício da liberdade deveriam ser abordados por uma rigorosa política que limitasse o escopo das ferramentas para a proteção de três valores: sobrevivência, justiça e trabalho livre.
Sem um “controle público efetivo” sobre todas as ferramentas e instituições que reduzem ou negam os direitos de cada pessoa ao uso criativo de sua energia, e sem a verificação constante dos vários outros, complementares, distintos e igualmente científicos modos de produção, continuaremos imersos na “idolatria generalizada que sobrepõe o industrial sobre as demais formas de produção” e que faz com que qualquer alternativa soe “como um retorno a um passado opressor ou um projeto utópico para nobres selvagens”.
E se nos é difícil imaginar uma sociedade na qual o crescimento industrial e seu ferramental são limitados, controlados e determinados socialmente, entretanto, para Illich, as forças que tendem a limitar a produção já estariam (em 1973, recordemos) em funcionamento no interior da sociedade, uma vez que as pessoas começaram a perceber como óbvio o que antes era evidente somente para alguns poucos: que a organização de toda a economia no sentido de uma vida “melhor” se tornou o maior inimigo de uma vida boa.
Quatro anos após o ensaio da sociedade convivial de Illich, o antropólogo Pierre Clastres viria a escrever, a partir do ponto de vista dos “nobres selvagens” sobre a sua “economia primitiva”, na qual as necessidades seriam definidas pela própria sociedade e não por uma instância exterior.
Em consonância com sua formulação anterior de que as sociedades ditas primitivas – no caso os povos nativos das terras baixas sul-americanas – são sociedades contra e não sem Estado, uma vez que a ausência de estruturas de poder vertical não se dá pela falta, mas pela recusa deliberada a toda forma de coerção superior, Clastres não perderia a oportunidade da “descoberta” de que as sociedades primitivas são também “sociedades da recusa da economia”.
“Os selvagens produzem para viver, não vivem para produzir” e o econômico, como setor que se desenvolve de maneira descolada do campo social, está ausente em tais sociedades, uma vez que a produção é uma produção de consumo (“assegurar a satisfação das necessidades”) e não de trocas (“obter lucro comercializando o excedente”). “Sociedade sem economia, certamente, sociedade contra a economia”, concluiria.
Afinal, “a sociedade primitiva admite a penúria para todos, mas não a acumulação para alguns”, sendo que nesta, em contraste com o mundo industrial ocidental, economicamente determinado pela infraestrutura material, pela produção de valor e pela troca, a “sociedade exerce a todo momento um controle rigoroso e deliberado sobre a capacidade de produção”. E é por isso, completaria Clastres, que “as sociedades primitivas são “máquinas antiprodução”.
Mas do ponto de vista da (anti)produção, tal política de “austeridade selvagem” – exato oposto da “acumulação primitiva” marxista –, não implicaria, ao contrário do que pode parecer aos nossos olhos obliterados pela idolatria produtivista, uma “economia da miséria”.
Como demostraria Marshall Sahlins em seu arrebatador livro Stone Age Economics, de 1972 – sobre o qual Clastres desenvolveria sua Contra-Economia rascunhada acima –, especialmente no segundo e já clássico capítulo A sociedade afluente original, tais sociedades espalhadas por todo o planeta nas margens do mundo industrial moderno seriam de fato as primeiras sociedades da abundância.
Abundância, entretanto, que, vista através das lentes economicistas, foi reiteradamente etnografada como “mera subsistência” imposta tanto pela fantasiosa sobredeterminação de um meio ambiente hostil aos coletivos humanos, o que os impediria da produção de excedentes, da acumulação indiscriminada de bens e da formação de estoques visando a um futuro também supostamente hostil.
Tais armadilhas ideológicas e o etnocentrismo estrutural – desafiados agora por contraetnografias como a dos Marubo, povo indígena do Vale do Javari, na Amazônia, para os quais “nós é que inventamos toda essa tecnologia que vocês têm, só que nós não nos interessamos em desenvolvê-la” – faziam parte, até o ensaio iconoclasta de Sahlins, do “diagnóstico médio da antropologia”, como salientaria o próprio. E não à toa, tais sociedades seriam consagradas como de lazer limitado, salvo em circunstâncias excepcionais, busca incessante de comida, recursos naturais pobres e relativamente incertos e máximo de energia de um máximo de pessoas.
Pois, “se pelo senso comum, uma sociedade afluente é aquela em que todas as vontades materiais das pessoas são facilmente satisfeitas”, escreveria, afirmar que as sociedades extramodernas são afluentes “é negar que a condição humana seja tragédia predestinada, com o homem prisioneiro de trabalho pesado caracterizado por uma disparidade perpétua entre vontades ilimitadas e meios insuficientes”.
De fato, em tais sociedades suas ferramentas permitem a manutenção da economia sob estado perpétuo de “subprodução”, uma vez que as necessidades coletivas podem ser satisfeitas com não mais do que três a cinco horas de trabalho e na grande maioria das vezes em dias alternados com descanso, festas, rituais e outras atividades.
Quanto às posses e propriedades, em relação aos caçadores e coletores nômades das etnografias revisadas por Sahlins, pode-se dizer que na verdade “a riqueza é uma carga”. E em tais circunstâncias, em que a maioria carrega nas costas tudo o que possui, “mobilidade e propriedade são contraditórios”, podendo os bens se tornarem “dolorosamente opressivos”.
Pelo menos no que diz respeito a bens não alimentares, escreveria causticamente, são o oposto daquela “caricatura-modelo imortalizada em qualquer Princípios Gerais da Economia, página 1”, pois seus desejos são poucos, e seus meios são abundantes.
E se somos inclinados a conceber tais sociedades afluentes originais “como pobres porque não possuem nada; talvez seja melhor, por essa mesma razão, pensarmos neles como livres”.
Pakyî e seu sobrinho, Tamandua, até algumas décadas viviam em uma sociedade afluente original, habitando a floresta livremente e alheios aos contornos políticos e às pressões econômicas ao seu redor, na fronteira dos estados de Rondônia e Mato Grosso.
Desse tempo, muito pouco se sabe sobre eles, nem mesmo como se autodenominavam. Seus vizinhos, os índios Gavião, os chamam de Piripkura ou “povo borboleta”, em referência à forma como se deslocam no meio da mata. Agora, toda a humanidade piripkura em vias de extinção se restringe a esses dois últimos indígenas remanescentes, homens.
Quando do primeiro contato oficial feito pela FUNAI em 1988, os Piripkura eram cerca de 20 pessoas, mas dez anos depois quando novamente saíram da floresta já eram somente três: os mesmos Pakyî e Tamandua (ou Tyku e Mondé-I, na verdade não se sabe), e Rita, tia de um dos dois, resgatada pelo órgão indigenista em uma fazenda onde era mantida como escrava sexual dos peões.
Segundo os relatos de Rita, no início da década de 1980 a aldeia foi invadida por pistoleiros que decapitaram seu pai e vários outros parentes – adultos e crianças – e depois incendiaram tudo.
A demarcação do território de 242.500 hectares onde ainda vivem Pakyî e Tamandua, caçando, pescando e coletando alimentos – cada vez mais cercado e ameaçado pelas madeireiras e pelas fazendas de pecuária que destruíram os arredores –, tramita na Vara Federal de Juína (MT) enquanto a terra segue sob “restrição de uso”. Condição que por lei pode ser renovada a cada dois anos, dependendo, entretanto, da comprovação de que os dois Piripkura continuam vivos e a habitar a floresta.
Jair Candor, um sertanista que mudou para o lado dos índios depois de presenciar massacres inomináveis contra os mesmos – “tudo o que a gente ouvia falar era que índio atrapalhava o desenvolvimento do país e que a regra era eliminá-lo” –, é o responsável por encontrar os Piripkura na mata e trazer provas concretas de sua existência.
Em 2016, sua mais recente expedição em busca de Pakyî e Tamandua daria origem ao fascinante e dilacerante documentário Piripkura (de 2017), de Mariana Oliva, Renata Terra e Bruno Jorge, que acompanham a busca da equipe de Candor por vestígios e rastros que pudessem levar ao encontro da equipe de indigenistas com os indígenas.
Esse encontro finalmente viria a acontecer quase ao final do filme, e por vontade unilateral dos dois, que saem de seu “isolamento voluntário” na mata da qual conhecem cada centímetro e na qual se “camuflam” com maestria, em busca de fogo para reacenderem a tocha, único artefato que carregam consigo e sempre junto aos corpos completamente nus.
A última vez que haviam deixado a tocha se apagar fora há quase vinte anos (vinte anos!), diria Candor, entre estupefato e emocionado. E não é para menos, principalmente se consideradas a umidade da floresta, as chuvas quase diárias e as goteiras dos tapiri de folhas de palmeira construídos por eles como abrigos.
Além da tocha, como diria Candor, “esses caras vivem sem precisar de nada, eles querem uma tocha de fogo, um facão e um machado, eles não querem mais nada. Eles precisam disso e da floresta em pé. É disso que eles precisam, de mais nada”.
Mas a refinadíssma arte de manter o fogo aceso em tais condições por décadas e o modo borboleta de viver com a floresta em breve serão apagados pela pressa do “fogo grande” que propele a economia incendiária do progresso.
De volta às sociedades da afluência ocidental e deparamos com o fato de que, quanto mais vivemos para produzir e produzimos para acumular, menos livres nos tornamos e a mais sofrimentos somos submetidos.
E à medida que cada vez mais as pessoas se definem por sua conta bancária e suas posses, uma forma de sofrimento social altamente contagiosa se espalha rapidamente e redefine os modos de vida, escreveria o psicológo Oliver James. A esse fenômeno virótico que se retroalimenta das insatisfações materiais e se alastra em uma espécie de caldo “capitalista egóico” altamente propício, o mesmo chamaria de Affluenza.
Comprar um carro novo, passar por uma sessão interminável de bronzeamento artificial, agendar uma aplicação de Botox® e depois de tudo isto se sentir ainda pior são sintomas claros da Affluenza. Pode ser que desligando a TV ou evitando escolas – Illich já as havia definido como “rito iniciático que introduz o neófito à carreira sagrada do consumo progressivo”–, meios sistemáticos de propagação da doença, haja alguma chance de melhora, diria o autor, sem muita convicção.
Ao longo de quase um ano, James viajou pelo mundo ocidental, visitando países da afluência em todos os continentes e conversando com pessoas ricas que invariavelmente apresentavam alto grau de sofrimento, depressão, infelicidade e dependência química ou material.
Em sua pesquisa, os dinamarqueses e as dinamarquesas aparecem como os menos afetados pelos efeitos da riqueza e da abundância no mundo desenvolvido e apresentam juntamente com outros países escandinavos altos índices de felicidade e confiança mútua. Já as mulheres russas estão sendo massacradas psicologicamente pela invasão da moda, dos padrões de consumo e beleza ocidental. E enquanto isso os milionários-homens dos países mais pobres visitados possuem tudo o que desejam, mas nada os satisfaz.
No Brasil, que James não visitou, 5,8% da população sofrem com depressão (5º país no ranking mundial), 75,3 mil trabalhadores foram afastados por causa de quadros depressivos em 2017, de acordo com a Previdência Social, e estarrecedores 90% das pessoas são infelizes no trabalho, segundo a Organização Mundial da Saúde.
Uma das principais conclusões de James, entretanto, é que nos países onde há maior desigualdade, onde há invariavelmente poucos ricos cercados por uma multidão de pobres, onde o “capitalismo egoísta” prospera, a Affluenza se alastra com maior facilidade e rapidez, e as pessoas, independentemente de seu poder aquisitivo e de suas posses, apresentam mais disposição para o sofrimento e para a depressão.
Entretanto, “se vivemos no capitalismo” e por isso “nos parece impossível escapar ao seu poder”, nos lembremos de que “também nos pareceu impossível um dia superar o poder divino dos reis”, diria a escritora Ursula K. Le Guin ao receber o National Book Awards de 2014 – discurso que viraria um meme instantâneo e que condensaria com precisão suas táticas de “resistência flexível” e especulações sobre outros mundos possíveis inventadas sob a forma de ficção científica.
Como em Os despossuídos, de 1974, seu ensaio de antropologia comparada “anarco-feminista” dedicado à sociedade do proprietariado hierárquico do planeta Urras, onde as pessoas “não conheciam nenhuma outra relação além da posse – eram possuídos”, e ao seu duplo autogestionado e sem leis Anarres, onde toda propriedade sempre foi coletiva e as formas do singular do pronome possessivo abolidas no uso coloquial.
Já no início deste ano, pouco antes de morrer, aos 88, ao dizer que nada é para sempre, reiteraria a importância de questionarmos – enquanto as coisas que nos fazem sofrer e nos destroem seguirem existindo – a mesma questão premente que atravessa sua obra. Logo, nos deixaria com o problema: “Afinal, em que tipo de mundo gostaríamos de viver?”.
Em um mundo do “tudo é necessário, nada é suficiente”, ou em um mundo onde “muito pouco é necessário, quase tudo é suficiente”, como escreveria o etnólogo Eduardo Viveiros de Castro em sua engenhosa proposta de “reenvolvimento cosmopolítico”?
Em um planeta onde sofrimentos industrialmente fabricados fossem abolidos, em uma Terra programadamente obsolescente, em uma sociedade de ferramentas conviviais, em uma civilização infectada pela Affluenza ou em um mundo com a tocha contra o Estado e contra a Economia acesa?
Enfim, viver sem tudo ou viver com nada?
Wellington Cançado
Editor da PISEAGRAMA.
Selma Andrade
Pintora e ilustradora, estudou na FUMA, na Escola Guignard e no Parque Lage. Participou de New Acquisitions no MAM-RJ, Radiograms no Itaú Cutural e We Never Lost Control na Mini Galeria.
Como citar
CANÇADO, Wellington. Viver com nada. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 12, p. 36-43, ago. 2018.