VIZINHANÇA
PUZZLE
Texto de Renata Marquez
Intervenções de Tatzu Nishi
O escritor francês Georges Perec, com o intuito de fazer um romance a partir do inventário das ocupações do edifício de número onze da rua Simon-Crubellier, no XVII arrondissement, em Paris, fala da arte do puzzle. Perec salienta que, no quebra-cabeças, é o conjunto que determina os elementos, uma vez que a existência isolada deles não faz nenhum sentido. Somente a situação de vizinhança pode justificar a sua razão de ser. Segundo Perec, apesar de ser aparentemente uma atividade solitária e inaugural, o quebra-cabeças é um enigma planejado, ou seja, ele já foi desenhado, testado e resolvido por outros artífices antes de tornar-se um produto de série.
A tensão entre a singularidade e sua inevitável condição de vizinhança é posta em exercício no texto de Perec. Como bom jogador que era, ele descreve milimetricamente a vida cotidiana do edifício anunciado, lançando peças avulsas que podem se encaixar a qualquer momento. Essas peças de puzzle são “embriões de vida comunitária que vão sempre se deter nos patamares”. Jane, Marcia, Gaspard, Celia e muitos outros são peças que têm sempre a chance de encontrar-se nas escadarias, eixo central das “partes comuns” do prédio, num espaço-tempo indeciso.
Em desuso por causa do elevador, as escadarias como espaço comum dos edifícios perderam a capacidade de abrigar momentos fortuitos. O constrangimento das quatro paredes do elevador em sua lotação máxima nos expõe a todos naqueles infindáveis, embora velozes, segundos de ascensão. Essa máxima eficiência, que uma taxa de condomínio consideravelmente encarecida proporciona, não permite mais a autonomia da velocidade dos encontros e dos desencontros nessa interface entre público e privado situada ainda no interior da construção.
Ao subirmos as escadarias construídas temporariamente pelo artista japonês Tatzu Nishi em fachadas de edifícios públicos de várias cidades, não sabemos muitas vezes o que vamos encontrar lá em cima. Não se trata de escadarias típicas de edifícios históricos, mas de escadarias feitas de andaime, percurso característico de obras em processo, imaginário inegável da construção civil. No caminho, frequentemente cruzamos com pessoas descendo com um leve sorriso no rosto e um enigma a guardar.
A imagem do quebra-cabeças evoca a possibilidade da diversidade das peças – o que pode indicar o nível de complexidade do puzzle –, mas, como mostrou Perec, elas são peças-tipo que se repetem: “homenzinhos”, “cruzes de Lorena” ou simplesmente “cruzes”. Se olharmos para o conjunto das intervenções de Nishi, podemos enxergar o puzzle. São peças-tipo que tentam se conectar umas às outras. No caso da transposição das peças-tipo de Perec para as intervenções de Nishi, as peças são cozinhas, quartos, salas de estar, varandas: espaços privados típicos que subitamente são expostos e dispostos adjacentes a fachadas de edifícios públicos monumentais.
Trata-se de uma tentativa construtiva – mas não menos metafórica – do ensaio da demolição de paredes, da supressão dos limites que separam, por míseros centímetros de alvenaria, a vida pública da vida privada. Uma operação de avizinhar o doméstico e o monumental, o íntimo e o compartilhado. As novas instalações híbridas nos fazem perguntar: afinal, o que entendemos sobre a vida pública? Até que ponto estamos envolvidos com ela? Como a trasladamos para a nossa casa?
No inesperado cômodo doméstico construído nas alturas, cheio de visitantes desconhecidos – contudo, subitamente familiares na condição similar de espectadores –, encontramos objetos cotidianos genéricos que, ao mesmo tempo, podem ser de todos e de nenhum de nós. O doméstico massificado pelas lojas de móveis populares cria um simulacro de intimidade e identidade, bem ao gosto da cenografia da decoração. Mas a ascensão acontece sobre um prédio público, uma instituição que tem também a sua crise de identidade. A quem pertence? O que de fato lhe confere a categoria de público? Não residiria a noção de público justamente na experiência coletiva dos hábitos de cada um de nós?
Paralelamente, conduzidos pelas escadarias, alcançamos o mais profundo do edifício escalado: a proximidade com seus aspectos invisíveis ao olho nu da rua e ao corpo incapaz do voo, o que torna esses aspectos levemente gentis e amigáveis, destruindo toda a pretensão de monumentalidade. A experiência de ascensão permite tornar o monumento próximo de nós, reambientando-o como doméstico e decorativo – um novo monumento kitsch.
Módulos de domesticidade deslocados e moventes constituem um investimento em “obra pública” como nenhum outro. Domesticar o público é a pista oferecida pelo passeio, num inventário possível e digno de Perec: relógio Masson, brasão do Brasil, quatro colunas coríntias, dois bustos de pedra em nichos com semiabóboda circular, cama em mogno com lençol floral, armário em pau-marfim com puxadores cromados, tapete, abajur, chinelos, livros, etc. Eis a última notícia da Prefeitura Velha de Porto Alegre.
O que avistamos nas intervenções de Nishi é uma espécie de vizinhança puzzle, globalmente editada, localmente experimentada e ressignificada. Nessa estratégia de vizinhança, fragmentos da cidade se deslocam e suas peças são encaixadas fisicamente num puzzle cartográfico em escala real, bem ao gosto de Jorge Luis Borges.
Sequestro de monumentos, mantidos em cativeiro público, adotados como adorno esvaziado das suas implicações históricas ou ideológicas e colocados na mesma categoria dos móveis produzidos em série. O relógio e as estátuas são peças de puzzle que se encaixam instantaneamente, por meio da construção efêmera do quarto acoplado, no seu mobiliário em escala humana. A superfície de contato ou interface da (nova) Velha Prefeitura de Porto Alegre torna o público e o privado vizinhos inseparáveis, um protótipo de cidade onde o público se constrói a partir da relação de vizinhança.
Renata Marquez
Editora da PISEAGRAMA.
Tatzu Nishi
Artista nascido em Nagoya, no Japão. Hoje vive em Berlim e Tóquio.
Como citar
MARQUEZ, Renata. Vizinhança puzzle. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 4, p. 24-28, set. 2011.