DESCONSTRUÇÃO CIVIL
Texto de Wellington Cançado
Fundo neutro, série de pinturas de Andrea Brown
A construção civil consome mais recursos que qualquer outro setor e o peso da Tecnosfera, estrato urbano e planetário de tudo que produzimos, alcança 30 trilhões de toneladas. Engenheiros, arquitetos e designers estão no cerne do Antropoceno.
Mesmo sendo você o feliz proprietário de uma enorme varanda gourmet, de um Toyota Land Speed Cruiser 2017 e do ultimíssimo iPhone, provavelmente vai concordar que há muito atingimos o limite de ocupação da Terra, de exploração do que chamamos de natureza e de contaminação dos mais longínquos rincões do planeta. Que tudo isso tenha sido gerado por uma economia extremamente avarenta e culminado em um mundo radicalmente desigual também não é difícil de aceitar com alguma observação. Afinal, é só olhar pela janela, de casa ou do carro.
Enquanto alguns poucos se debatem por versões e culpados, na prática as fábricas produzem a todo vapor, os subúrbios se espraiam incontidos, os empreendimentos intensivos em energia continuam a ser licitados, as infraestruturas logísticas transformam territórios inteiros, os modais de transporte altamente poluentes têm suas concessões renovadas, as monoculturas e o agrobusiness avançam sobre as florestas e terras indígenas, as construtoras incorporam os últimos cm2 das cidades e engenheiros, arquitetos, urbanistas e designers continuam a ser treinados para contribuir ativamente com este ciclo vicioso ecocida. E se a desigualdade já é parte da indústria criativa atual, mobilizando cérebros, recursos e soluções para os “outros 1%”, nada ou muito pouco foi feito para efetivamente desmontar, desativar, demolir e desconstruir toda a história material dos últimos três séculos e a violência tectônica que lhe é intrínseca.
Quando pensamos na genealogia da nossa civilização consumista – nós, os “condenados à modernidade” –, somos sempre levados de volta ao século XVIII, ao início da Revolução Industrial, quando os produtos se multiplicaram aceleradamente, a produção se tornou massiva e o acesso às mercadorias, roupas, utensílios, móveis foi popularizado.
Mas essa é somente parte da história, a outra parte é aquela da indústria como um sistema autopoiético que desde a sua infância não somente gesta máquinas e ferramentas para sua autorreplicação, mas que se desdobra em outras indústrias e transforma incessantemente o ambiente ao seu redor para propiciar a distribuição e a circulação de seus produtos.
Nessa história de mudanças profundas na manufatura e principalmente nas formas de habitação do mundo, a mecânica é frequentemente tida como o cerne revolucionário do progresso tecnológico e econômico ocidental, mas, sem as contribuições ativas dos engenheiros civis e dos arquitetos, a disseminação das condições de produção que viríamos a chamar de industrialização seria bastante problemática. A moderna construção civil não somente tem seu nascimento totalmente vinculado ao próprio nascimento da indústria, como teve, desde sempre, características e aspirações industriais.
Amplamente reconhecida como o berço da industrialização na Inglaterra, Coalbrookdale é um ótimo exemplo de como a industrialização e a construção civil (e, logo, a urbanização) são processos desde sempre imbricados e complementares. Apesar da abundância em carvão e existência de algumas indústrias, não havia uma ponte conectando a cidade com o resto da ilha que possibilitasse que pessoas e produtos atravessassem o Rio Severn. A construção da ponte em ferro fundido não só foi viabilizada pela própria indústria que detinha um alto forno, o que reduziu incrivelmente o custo do material até então considerado inviável para a construção civil, como modificou o seu entorno imediato, fabricando as condições para a sua expansão.
Da mesma forma, as estradas inglesas, inadequadas para o transporte de mercadorias, foram substituídas em 1750 por estradas com pedágios geridas pelas próprias empresas. O sistema de canais construído e operado pelas indústrias fez do país o primeiro a ter uma rede interconectada para o transporte fluvial com mais de sete mil quilômetros. E já por volta de 1820, quando a construção e a circulação pelos canais entraria em decadência, os trens de carga rapidamente se espalhariam com o aumento da demanda por carvão e aço.
Mas, até aquele momento, tanto as ferrovias como as outras grandes obras demandavam centenas, às vezes milhares, de homens assistidos pela força animal para realizar as massivas terraplanagens requeridas pelas novas obras. O uso do motor a vapor era excepcional e restrito à fabricação industrial. E, se o século XX foi o momento crucial da transformação mecanizada do território e das grandes movimentações de terra, ainda no século XIX as escavações, os cortes e os aterramentos fomentaram o desenvolvimento e a fabricação industrial de diversos equipamentos para construção pesada.
Como relata Keith Haddock, engenheiro e autor de Giant Earth Movers e fundador da Historical Construction Equipment Association (HCEA), provavelmente a primeira obra com grande movimentação de terra mecanizada tenha sido o canal de Manchester, iniciado em 1887, que contou com 58 pás mecânicas, 18 escavadeiras clamshell, e várias outras escavadeiras menores durante os seis anos da obra, trabalhando com 173 locomotivas a vapor e 6.300 vagões para mover mais de 50 milhões de metros cúbicos de terra. Cerca de duas décadas mais tarde, de 1904 a 1914, o Canal do Panamá demandaria a movimentação de 250 milhões de metros cúbicos e uma quantidade de máquinas ainda mais impressionante.
À medida que os projetos iam se tornando maiores, as máquinas também cresciam. Mas o advento do motor portátil permitiu máquinas menores, mais facilmente deslocáveis, e o desdobramento das primeiras escavadeiras a vapor em uma variedade enorme de tratores, carregadeiras, guindastes, motoniveladeiras, raspadeiras, retroescavadeiras, pás carregadeiras, tratores de esteira, perfuratrizes e rolos compactadores. Paralelamente, o uso da pólvora, de dinamite e a introdução de ferramentas hidráulicas e do ar comprimido contribuíram para tornar a construção mais eficiente e potencialmente destrutiva. A extração de rochas e minérios em escala industrial, a invenção dos elevadores, das gruas e das tuneladoras permitiram escavações profundas e deslocamentos de terra impensáveis até então.
Com a popularização dos motores de combustão interna a derivados do petróleo, a exploração industrial dos recursos e a urbanização crescente do planeta recriariam sistematicamente, na virada do século XX, os ambientes naturais, solapando as particularidades locais.
Mas se industrialização e urbanização estiveram intimamente conectadas desde o início, e apesar do processo de desindustrialização dos países do Norte nas últimas décadas, o marco crucial para a urbanização do planeta é o ano de 2006. Estatisticamente, é nessa data que a maioria da população humana – aproximadamente 3,3 bilhões de pessoas – passou a viver em aglomerados urbanos espalhados por todos os continentes.
“Vivenciamos a urbanização do planeta ao mesmo tempo que a globalização do urbanismo como forma de vida”, viria a dizer uma década depois o geógrafo Edward Soja em sintonia com Henri Lefebvre, o “xamã” de O direito à cidade e A revolução urbana, que já havia advertido sobre a importância de compreender que “a urbanização não é uma manifestação altamente desenvolvida da industrialização, mas antes, a industrialização é que é um tipo especial e particular de urbanização”.
Para Lefebvre, a urbanização de base industrial pode ser entendida como um processo histórico de destruição “para dentro” das cidades mercantis europeias, desencadeado pelas indústrias (implosão), e pelo estilhaçamento subsequente das formações territoriais para além das cidades (explosão). Em uma fase avançada, um novo salto da explosão “socioespacial” projeta práticas urbanas, instituições, infraestruturas e ambientes construídos agressivamente dentro e através dos espaços não urbanos, aniquilando a diferenciação campo-cidade e conectando economias locais e regionais diretamente com fluxos transnacionais de matérias-primas, commodities, trabalho e capital.
Essa série de transformações o levaria a formular a hipótese radical da urbanização total, não mais como uma virtualidade, mas fundamentalmente como um plano de relações sociais e ambientais em escala planetária, que impõe novos condicionantes para o uso e a transformação da Terra.
Vislumbrando desigualdades potencialmente catastróficas, conflitos e riscos incomensuráveis, ao mesmo tempo que novas oportunidades para apropriação democrática e autogestão nas mais distintas escalas, em um ensaio de 1989 sobre a dissolução das cidades e a metamorfose planetária, Lefebvre viria a sugerir que a urbanização planetária já havia se realizado na prática.
Da tundra siberiana à floresta amazônica ou ao gelo antártico, incluindo até mesmo os oceanos e a atmosfera que respiramos, a urbanização planetária não significa que há densas aglomerações por toda parte, mas que as principais características do urbanismo como forma de vida, o jogo de forças dos mercados, o efeito das regulamentações administrativas e as práticas urbanas – tudo está se tornando ubíquo. “Em um grau nunca visto antes, ninguém na Terra está alheio à esfera de influência do capitalismo industrial urbano”.
O crescimento acelerado das cidades atrai todas as atenções por suas implicações para o aquecimento global, para as mudanças climáticas em curso e para a urbanização que há muito se tornou a forma hegemônica de ocupação e uso da Terra.
Os padrões de urbanização de gênese industrial e colonial do Velho Mundo, sustentados pela exploração indiscriminada dos recursos, pela combustão de combustíveis fósseis e por formas de vida perdulárias nos levam à constatação bastante óbvia de que esse processo iniciado há três séculos não somente é a causa do colapso ambiental sem precedentes, como são as cidades parte fundamental do problema.
Entretanto, e apesar disso, as cidades atuais têm sido festejadas como a suprema invenção da humanidade e o espaço inexorável da vida futura, ou como solução para a crise global, como no relatório HABITAT de 2012-13 das Nações Unidas. Pela dilapidação sistêmica do planeta, a indústria que há muito fabrica as cidades é absolvida de todos os seus pecados originais e, paradoxalmente, conduzida ao altar das atividades estratégicas para o futuro da humanidade.
Mas, apesar dos apelos oportunistas a cada derrocada macroeconômica para que “acreditemos na construção civil”, as estatísticas não reveladas do chamado construbusiness – a longa cadeia da construção civil responsável pela fabricação de cimento, azulejos, vidros, tintas, vernizes, tubos, conexões, louças, fios, cabos, artefatos de madeira e metalurgia, material elétrico, gesso e pela formação e contratação de serviços de engenharia, arquitetura, urbanismo e design e pelas construções leves ou pesadas que habitamos e que nos rodeiam – não deixam margem de dúvida. Esse setor altamente influente politicamente e financeiramente rentável é responsável pela devoração de 50% de todos os recursos disponíveis no planeta.
Passamos boa parte de nossa existência na Terra inventando formas de manipular o ambiente natural e minimizar os impactos da natureza sobre a nossa vida, mas desde que este processo se tornou industrial e os produtos e artefatos arquitetônicos se espalharam pelo planeta, criando um estrato urbano altamente artificializado, a demanda por recursos renováveis e não renováveis extrapolou em muito a capacidade do planeta de se autorregular. Mesmo assim, neste exato momento, 50% da água disponível e 45% da energia produzida no mundo estão sendo consumidas para construção de edifícios em que ninguém pretende morar, de viadutos que não resolverão o problema do trânsito, de hidrelétricas que arruinarão as florestas e a vida de seus habitantes, de calhas de concreto que condenarão por gerações os rios e tantas outras modernizações indesejáveis. Assim como 80% das áreas agricultáveis estão sendo ocupadas por empreendimentos imobiliários, 30% dos rios, sendo despejados em caçambas como areia, 40% das montanhas, britadas ou transformadas em fachadas de luxo, 25% das florestas tropicais estão sendo transformadas em decks, assoalhos e forros pela compulsão construtiva anônima ou pelo cinismo estrutural de arquitetos-celebridades.
Apesar das certificações ambientais, dos selos de qualidade e das tendências ecológicas incorporadas pela indústria da construção global como greenbuilding, ecodesign, arquitetura sustentável e tantos outros, a gigantesca demanda associada à extração, ao processamento, à fabricação e à distribuição de insumos, materiais e componentes necessários ao funcionamento do construbusiness fazem deste o maior consumidor de combustíveis fósseis do planeta. E a mais poluente e destrutiva indústria contemporânea, com taxas de emissões atmosféricas altíssimas (chegando a 40% das emissões nos EUA), além da problemática dispersão de micropartículas, poeira, poluentes e substâncias tóxicas como óxidos sulfúricos e clorofluorcabonos no ar durante a construção ou ao longo da vida útil dos edifícios.
Somente a indústria de cimento emite, anualmente, pela queima de combustíveis na geração de energia e transporte e nas reações químicas inerentes à fabricação do material, 5% de todo CO2 decorrente das atividades humanas. Como se não bastasse, o macrossetor da construção civil mundial ainda contribui, anualmente, na contínua renovação das construções e dos edifícios, além do mau aproveitamento dos materiais e da falta de reciclagem do descarte nos canteiros, com 25% de todo o lixo produzido sobre a Terra.
A praia de Kamilo, no sudeste do Havaí, tornou-se, nas últimas duas décadas, um ponto mundialmente conhecido, mas não exatamente por seus atrativos turísticos. Em épocas remotas, a praia já era considerada um local importante para os nativos que ali vinham coletar troncos de madeira à deriva vindos do Pacífico Norte para a construção de canoas ou para resgatar náufragos perdidos no mar que acabariam trazidos pelas correntes. Atualmente Kamilo é a principal praia onde a chamada Grande Sopa de Lixo do Pacífico, também conhecida como Grande Ilha de Lixo ou Grande Vórtice de Lixo, devolve ao continente toneladas de substâncias industriais que lhe são estranhas.
Descoberta em meados da década de 1980, a Grande Sopa tem sua porção estimada entre 7 e 35 mil toneladas de lixo distribuídas por uma área que pode variar de 700 mil quilômetros quadrados (equivalente aos estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro e Espírito Santo juntos) até 15 milhões de quilômetros quadrados, duas vezes a área continental dos EUA.
O lixo cuspido pelo oceano e que cobre a praia ao longo de cinco quilômetros da costa havaiana consiste de 90% de plástico de diversos tipos. Como se pode imaginar, os impactos sobre a fauna marinha e espécies costeiras é monumental e imensos esforços têm sido feitos para limpar a área, mas os ingredientes da Grande Sopa provêm de diversas partes do planeta, trazidos de longe pelas correntes oceânicas até encalharem ali.
Em 2013 a praia voltou a ser notícia quando, seguindo as pistas do oceanógrafo Charles J. Moore, responsável por decifrar a receita da Grande Sopa, a geóloga Patricia Corcoran e a escultora Kelly Jazvac viajaram em busca de aglomerados de plástico e areia. Mas, para surpresa das expedicionárias, em muitos dos aglomerados encontrados o lixo e a praia estavam se combinando em uma única e improvável substância, com o plástico se infiltrando em fragmentos de rochas vulcânicas e os dois sendo moldados pelo mar e pela erosão da areia.
“Plastiglomerados” foi como Corcoran e Jazvac chamaram esse composto multimaterial feito da aglutinação de rochas e plástico que, dada a variedade e as características dos tipos encontrados, foram subdivididos em duas categorias: in situ, no qual o plástico adere fragmentos de rochas; e clástico, no qual combinações de basalto, corais, conchas e pedaços de madeira são cimentados por grãos de areia e agregados plásticos.
Com a descoberta, Jazvac passou a recolher inúmeros exemplares de plastiglomerados e a expô-los em galerias e museus mundo afora como land-mades do século XXI, compostos improváveis da colisão não planejada entre a mecânica industrial e a entropia natural. Em seguida, Corcoran, Jazvac e Moore publicariam o ensaio An Anthropogenic Marker Horizon in The Future Rock Record no qual apontam os plastiglomerados como vestígios concretos da transformação da Terra pelos humanos ao ponto de produzir uma camada estratigráfica com todas as características antropocênicas.
Desde que Eugene Stoermer cunhou o termo, Paul Crutzen o popularizou e a International Union of Geological Sciences o sacramentou em 2016, o Antropoceno tem sido tão amplamente adotado quanto contestado como marco da ação humana determinante para a existência do planeta, ou quando precisamente a humanidade se tornou um agente capaz de suplantar as forças bio-geo-metereológicas.
Capitaloceno, Plantationceno, Gynoceno, Angloceno, Chthuluceno: se todos parecem concordar que as interferências sobre o regime termodinâmico do planeta nos levaram a outro patamar geológico, e que a importância de grandes ideias como o Antropoceno seja mesmo a sua capacidade de colapsar a história do planeta e a história da humanidade, não menos conflituoso, entretanto, é o debate sobre o início de tal era e a qual antropos, quais humanos, exatamente estamos nos referindo (afinal, serão os indígenas e demais “extramodernos” também responsáveis pelo Antropoceno?). Assim como uma das questões ainda em aberto é como encontrar marcações estratigráficas datáveis para documentar as mudanças geológicas em curso.
O achado de Corcoran e Jazvac nas praias havaianas é um fragmento precioso dessa nova camada em pleno processo de sedimentação, mas, para Peter Haff, físico alemão e professor de geologia na Duke University, aglomerados muito maiores e mais complexos estão a contribuir mais decisivamente para a formação desse novo estrato.
A Tecnosfera, termo cunhado por Haff em 2013, é a tradução em termos geofísicos dos impactos humanos sobre a Terra, ou uma versão “dura” da urbanização planetária profetizada por Lefebvre. Mas é também a constatação metafísica de que os sistemas artificiais criados por nós são produtos de um sistema maior no qual somos essenciais, mas sobre o qual não temos controle total. E se antes de sermos uma força geológica habitávamos inadvertidamente um mundo de quatro geoesferas – lito, atmo, hidro e biosfera – agora acrescentamos uma nova, iminentemente humana e urbana, e que rapidamente se descola das demais.
Esse neoenvironment, provável ambiente total da vida nesse século XXI, é resultado dos processos tecnológicos e espaciais que engendramos. Inclui toda a enormidade dos sistemas de produção de energia, linhas de transmissão, extração e processamentos de recursos minerais e hídricos, comunicação, transporte, além de movimentações financeiras, redes comunitárias, governos e burocracias, a Internet, as nanotecnologias, as próteses, as máquinas e os robôs, reflorestas, cidades, fábricas, monoculturas, estradas, barragens, loteamentos, parques e áreas de conservação, aterros sanitários, minas, shopping centers, aeroportos e toda uma miríade de sistemas de design, ou parte destes, incluindo o lixo nas ruas, as micropartículas em suspensão no ar, as bicicletas, os bueiros e os ratos anabolizados, os ônibus, a fumaça que deles emana, bem como os ruídos e as vibrações. E até os 150 bilhões de metros cúbicos de ar em interiores acondicionados mundo afora ou a barreira de baixa frequência (VLF) criada pelas comunicações humanas em torno do planeta.
Com toda essa complexidade e enormidade, a Tecnosfera não somente é onipresente, como os trezentos anos de industrialização e urbanização foram capazes de suplantar em artefatos o número de espécies animais e vegetais que já passaram pela biosfera, pondo abaixo milhões de anos de autorregulação e interações balanceadas entre as esferas da Terra. Somente no caso dos telefones celulares, com suas centenas de tecnoespécies, estima-se que desde 1983, quando os primeiros aparelhos começaram a ser comercializados, quase sete bilhões de unidades tenham sido fabricadas e descartadas.
Em um estudo de 2015 liderado por Jan Zalasiewicz, Mark Williams e Colin Waters da Universidade de Leicester, e com a participação do próprio Peter Haff, chegou-se à escandalosa cifra de 30 trilhões de toneladas como o peso de toda a parafernália produzida pela humanidade até aqui, cinco vezes maior do que a própria biomassa de todos os humanos vivos, estimada como o dobro de todos os vertebrados terrestres. Essa massa que extrapola em muitos zeros as possibilidades de cálculo da sua calculadora e desafia os nossos sentidos mais básicos, se transportada para uma escala mais humana, nos leva à carga de 50 quilos – um saco de cimento – por metro quadrado distribuídos uniformemente por todo o planeta. Parece pouco? Imagine, então, que para transportar essa montanha gigantesca seriam necessários 1,5 trilhões de caminhões, ou algo em torno de 300 caminhões grandes lotados sob a responsabilidade de cada habitante do planeta. Se você está descontente com as suas quatro vagas de garagem, imagine precisar, subitamente, de 20 mil metros quadrados para guardar seus novos mimos motorizados carregados de tecnofósseis.
Mas o maior risco de hipóteses totalizantes como a Tecnosfera e o Antropoceno, diria Bruno Latour, em Diplomacy in the Face of Gaia, numa conversa com Heather Davis, é que do caráter distópico dessas narrativas desencantadas sobre o fim – o fim do mundo, o fim do mundo dos humanos – podemos facilmente recair nas utopias. Afinal, se a humanidade foi capaz de transformar o planeta ao ponto de produzir uma nova camada geológica, por que não será possível inverter o processo e redirecionar nossos esforços para as construções que nos possibilitarão recriar tecnologicamente cada centímetro da Terra?
Foi como uma reação ao mundo industrial e à urbanização emergente que as utopias floresceram no século XIX, produzindo uma variedade enorme de sociedades ideais que seriam retomadas pelas vanguardas artísticas e, particularmente, pela arquitetura moderna. Da cidade linear bolchevique, passando pelos planos positivistas de Le Corbusier, a objetividade desumana da Hochhausstad, a violência anacrônica de Brasília, os delírios tecnolisérgicos das cidades caminhantes inglesas, a No-Stop City, o monumento contínuo – um prelúdio crítico da cidade como estrato geológico – e o mundo sem arquitetura dos radicais arquitetos florentinos, o século XX foi incrivelmente prolífico em projetos utópicos, de todas as filiações ideológicas. Como pressuposto comum, a crença na transformação da natureza pela tecnologia e pelo design. Como objetivo básico, a construção de um novo mundo no qual a indústria é alçada à categoria de mito de origem.
Poucos encarnaram essa tarefa de superação da natureza e refundação mítica do homem moderno como o inventor, arquiteto, designer e escritor norte-americano Buckminster Fuller. Em um de seus mais emblemáticos projetos, Fuller vai propor, em plena década de 1960, um gigantesco domo geodésico para Manhattan que regularia a temperatura ambiente e reduziria a poluição do ar. O domo de quase dois quilômetros de altura e três de diâmetro cobriria parte do midtown com uma estrutura de aço reforçado e vidro blindado-refletivo, pesaria quatro mil toneladas e seria montado em três meses por 60 helicópteros militares ao custo de 200 milhões de dólares. De fora, se pareceria com uma bolha etérea, enquanto que, do seu interior, deveria ser nada mais do que uma fina camada translúcida sob o céu.
Para o inventor, somente o altíssimo custo de remoção anual de neve das ruas pagaria o domo em poucos anos e, além do mais, uma vez dentro dessa bolha artificial, ninguém mais precisaria se preocupar com aquecimento doméstico, o que seria uma grande economia de energia para toda a cidade. Nas ruas as pessoas estariam sempre em trajes de verão e uma Nova Iorque tropical emergiria aos poucos.
Séculos de devastação, alterações irreversíveis, extinção em massa, a erupção antropocêntrica e a calcinação urbanística em curso parecem condenar a um momento histórico superado as tecnoutopias como a Bucky Bubble. Ledo engano. Eis que as ficções construtivas retornam turbinadas pelas biotecnologias e pelos sistemas de informação como “utopias viáveis” nas propostas de geoengenharia, que pululam com as notícias do ano mais quente de todos os tempos, da tempestade torrencial que varreu regiões inteiras do mapa, do degelo do permafrost e de cada parte por milhão de CO2 acrescida à atmosfera.
Diante desses projetos, as ambiciosas construções da modernidade e as utopias arquitetônicas mais delirantes parecem brinquedos de montar para (geo)engenheiros mirins: sistema de gerenciamento da radiação solar, melhoramento do albedo para aumento da refletividade das nuvens, refletores de luz solar orbitais, aerossóis estratosféricos com partículas microscópicas refletivas, removedores atmosféricos de CO2, fertilização oceânica para aumento dos fitoplânctons absorventes de dióxido de carbono, meteorização melhorada com grandes quantidades de minerais na atmosfera e armazenamento dos compostos resultantes nos oceanos e no solo, aumento da alcalinidade dos oceanos pela dissolução de calcário, silicato ou hidróxido de cálcio, geousinas de energia…
A geoengenharia pode parecer uma evolução caricata da arrogância instrumental que assola a humanidade há um bom tempo. E quando nos deparamos com as prováveis contribuições dos engenheiros para o futuro da humanidade, sistematizadas por Martin Bohle nos “quatro paradigmas da engenharia para a mudança global antropogênica” – modulação do impacto humano sobre a Terra, desacoplamento ecomodernista dos sistemas de produção, e ajustes e encaixes da lógica vigente com modificações “incrementais” – descobrimos que é exatamente isso.
A preocupação da engenharia com os impactos antropogênicos, mais do que a ruptura (improvável e inesperada) com o produtivismo utilitarista de sempre, é uma oportunidade imperdível do “salto para frente”, a chance de se passar da corriqueira terraplanagem para o Terrapleno épico. Mas é também o último suspiro de uma prática agonizante ameaçada pelas próprias transformações que protagonizou. Ou, como decretou Tom Gillis, para o desespero dos leitores da Forbes: “A era dos engenheiros acabou (desculpe, papai)!”.
O diagnóstico de Gillis reitera a importância da engenharia para a industrialização e a urbanização do mundo desde o motor a vapor de James Watts, mas enxerga na aceleradíssima evolução desse processo as próprias causas do óbito inevitável. A indústria chegou ao ponto crítico no qual todo valor é criado na microfragmentação de cadeias produtivas globalizadas, fazendo das disputadas “competências específicas” serviços terceirizados altamente flexíveis e mal remunerados. Nesse estágio avançado, o domínio das tecnologias e a capacidade de fazer “melhor, mais rápido e mais barato” não são mais suficientes para manter a engenharia como protagonista no futuro.
Mas isso não quer dizer que engenheiros não serão mais úteis. Muito menos os industriosos engenhos que temos usado para maquinar a fossilização extensiva do planeta. Pois precisaremos deles para desmontar Belo Monte (e então o espírito-montanha se erguerá dos entulhos), para desfazer franciscanamente a transposição do Velho Chico, desconcretar todas as avenidas sanitárias deste país de merda, explodir mil estacionamentos pernoite, implodir tantos viadutos quanto existirem e desasfaltar ruas-bairros-cidades-inteiras, desintegrar aceleradamente cada partícula de Angra I e II e III, demolir o Plano Piloto de Asa Norte a Sul. Desmanchar a Transamazônica no tempo mítico e as Marginais em alta velocidade.
Afinal, é chegada a hora de reanimar o mundo, desantropocentrizar o humano, desmodernizar o urbano, desmistificar a produção, de os projetistas do futuro (diletantes ou profissionais) inventarem uma desengenharia profunda que reencontre sob o pavimento planetário todas as florestas por vir. É tempo de desconstrução civil.
Wellington Cançado
Editor da PISEAGRAMA.
Andrea Brown
Artista, estudou na Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Trabalha com escultura, instalação e pintura e participou de exposições no Brasil, França, Suécia e Espanha.
Como citar
CANÇADO, Wellington. Desconstrução civil. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 10, p. 102-111, mai. 2017.