ALTARES DO
SACRIFÍCIO:
RELEMBRANDO
BASQUIAT
Texto de bell hooks
Ironia do policial negro e Liberais desprezíveis, pinturas de Jean-Michel Basquiat
“Está tudo sobre o altar do sacrifício?”
(Canção da igreja negra).
Na abertura da exposição de Jean-Michel Basquiat no Whitney Museum, no outono de 1992, misturei-me à multidão para conversar com os visitantes. Eu tinha apenas uma pergunta, queria saber sobre as reações emocionais ao trabalho de Basquiat. O que você sente quando olha para as pinturas de Basquiat?, eu perguntava. Mas ninguém conseguia me responder. Saíam com tangentes, diziam o que gostavam em Basquiat, recordavam encontros, falavam de maneira genérica sobre a exposição. Algo parecia entravar o caminho, impedindo as pessoas da articulação espontânea de sentimentos evocados pela obra. Ora, quando a arte nos move — tocando nosso espírito — não é facilmente esquecida. As imagens reaparecerão em nossa mente mesmo contra nossa vontade. Muitas vezes penso que trabalhos canonicamente chamados de “grandiosos” são simplesmente aqueles que duraram por mais tempo na memória individual. E duraram porque alguém foi movido enquanto observava, alguém foi tocado, deslocado para outro lugar, renascido de repente.
Aquelas pessoas que não são movidas pela obra de Basquiat são usualmente incapazes de pensá-la como “genial” ou mesmo “boa”. Certamente isso parece caracterizar muito do que os críticos de arte convencionais pensam sobre Basquiat. Sem serem tocados, são incapazes de falar significamente sobre o trabalho. Muitas vezes, sem sutileza alguma, negam a obra ao salientar obssessivamente a vida de Basquiat ou sua carreira, insistindo que ocupam posição privilegiada para julgar o significado e o valor da obra. Um exemplo claro é o artigo de Adam Gopnik na New Yorker1. Sem dúvida é uma tarefa difícil determinar o valor da vida e obra de um pintor se não se é capaz de chegar suficientemente perto, se se conserva uma distância.
Ironicamente, apesar de Basquiat ter dedicado muito tempo de sua curta vida tentando se aproximar de importantes personalidades brancas do mundo da arte, conscientemente produziu uma arte vattier, um muro entre ele e o mundo. Como um cômodo secreto que só pode ser aberto e frequentado por aqueles capazes de decifrar seus códigos, as pinturas de Basquiat desafiam aqueles que pensam que simplesmente olhando poderão “ver”. Ao chamar atenção para esse aspecto do estilo de Basquiat, Robert Storr escreveu: “Tudo sobre seu trabalho é conhecimento, e muito é sobre conhecer”2. Ainda que a obra resista ao “conhecimento”, não oferece nada da livre e generosa hospitalidade que Basquiat estava disposto a dar.
Projetado para ser uma porta fechada, a obra de Basquiat não acolhe com boas vindas aqueles que a enfocam com o estreito olhar eurocêntrico. Um olhar capaz de reconhecer Basquiat somente quando ele está na companhia de Warhol ou de outras figuras de grande visibilidade. Um olhar capaz de valorizar Basquiat apenas se ele é visto como parte de uma continuidade da arte americana contemporânea com uma genealogia traçada por meio de artistas brancos: Pollock, de Kooning, Rauschenberg, Twombly, Andy. Raramente alguém conecta a obra de Basquiat a tradições da história da arte afro-americana. Enquanto é óbvio que Basquiat foi influenciado e inspirado pelo trabalho de artistas brancos estabelecidos, o conteúdo de sua obra não converge nitidamente com o das obras deles. Até quando Basquiat é estilisticamente localizado no grupo exclusivo de artistas brancos que nega a entrada da maior parte dos artistas negros, seu assunto — seu conteúdo — sempre o separa mais uma vez e o desfamiliariza.
É o conteúdo da obra de Basquiat que serve como barreira desafiando o olhar eurocêntrico que mercantiliza, apropria e celebra. Ao manter os códigos da cultura de rua que ele tanto amava, seu trabalho bate na nossa cara. Confronta olhos diferentes de modos diferentes. Desde uma perspectiva eurocêntrica só se é capaz de ver e valorizar aspectos que simulam as familiares tradições artísticas ocidentais brancas. Desde um ponto de vista mais inclusivo, somos mais capazes de ver o dinamismo resultante da convergência, do contato e do conflito de várias tradições. Muitos artistas negros que conheço, inclusive eu, celebram essa dimensão inclusiva de Basquiat, enfatizada na discussão perspicaz feita por seu amigo próximo, artista e rapper, Fred Braithwaite. Braithwaite reconhece a delicadeza que os conecta artisticamente e diz que tem a ver com a abertura a qualquer influência que ambos compartilhavam, com o prazer em conversar “sobre outros pintores, bem como sobre os caras pintando nos trens”3. Basquiat não guardava nenhum segredo sobre o fato de que havia sido influenciado e inspirado por obras de artistas brancos. Mas é a multiplicidade de outras fontes de inspiração e influência o que fica submerso, perdido, enquanto os críticos atuam obcecados em vê-lo unicamente ligado a um continuum artístico ocidental branco. Esses outros elementos se perdem precisamente porque muitas vezes não são vistos ou, se vistos, não são compreendidos. Quando o crítico de arte Thomas McEvilley sugere que “esse artista negro estava fazendo exatamente o que artistas brancos modernistas clássicos como Picasso e Georges Braque fizeram: deliberadamente ecoando um estilo primitivo”, ele apaga todas as conexões peculiares de Basquiat com uma memória cultural e ancestral que o liga diretamente às tradições “primitivas”4. Isso permite então que McEvilley faça a absurda sugestão de que Basquiat estava “se comportando como homens brancos que pensam que estão se comportando como homens negros”, em vez de entender que Basquiat estava lidando ao mesmo tempo com a influência de uma genealogia que é fundamentalmente “negra” (enraizada nas tradições “primitivas” e “artísticas” da diáspora africana) e com o fascínio pelas tradições ocidentais brancas. Articulando a distância que separa a arte tradicional eurocêntrica de sua própria história e fatalidade e do destino coletivo de pessoas e artistas negros diaspóricos.
No intuito de fazer seu trabalho testemunhar essa distância, Basquiat se esforçou para proferir o indizível. Profeticamente, ele se envolveu na elaboração artística ampliada de uma política de desumanização. Em seu trabalho, a colonização do corpo e da mente negra é marcada pela angústia do abandono, do estranhamento, do desmembramento e da morte. Tinta vermelha escorre como sangue na pintura sem título de uma mulher negra, identificada apenas por uma placa que diz “Detalhe da empregada de Olympia” (1982). Ocorre aqui uma crítica dupla. Primeiro, a crítica ao imperialismo ocidental, e depois, a crítica à maneira como o imperialismo se faz ouvir, à maneira como é reproduzido na cultura e na arte. A imagem é feia e grotesca, exatamente como deveria ser. O que Basquiat desmascara é a fealdade dessas tradições. Ele toma a valorização eurocêntrica do belo e do grandioso e exige que reconheçamos a realidade brutal que ela mascara.
A “fealdade” transmitida nas pinturas de Basquiat não é apenas o horror da colonização branca; é a tragédia da cumplicidade e traição negra. Trabalhos como “Ironia de um policial negro” (1981) e “Carne de qualidade para o público” (1982) documentam essa postura. As imagens são extremamente violentas. Falam de medo, terror, seres dilacerados, arrebatados. Mercantilizado, apropriado, feito para “servir” aos interesses dos mestres brancos, o corpo negro tal qual mostrado por Basquiat é incompleto, não cumprido, nunca uma imagem preenchida. Mesmo quando ele dá a ver o trabalho de popstars negros — figuras esportivas, do entretenimento -, há ainda o retrato da incompletude e a mensagem que a cumplicidade nega. Essas obras sugerem que a assimilação e a participação em um paradigma branco-burguês podem levar a um processo de auto-objetificação que é tão desumanizador quanto qualquer ataque racista da cultura branca. Sendo apenas o corpo que os opressores querem, a imagem negra nunca pode ser totalmente auto-atualizada e deve sempre ser representada como fragmentada. Expressando um conhecimento em primeira mão do modo como a assimilação e a objetivação levam ao isolamento, as figuras masculinas negras de Basquiat estão sozinhas e separadas. Eles não são pessoas inteiras.
Trata-se de leitura muito simplista ver trabalhos de Jack Johnson como “Untitled (Sugar Ray Robinson)”, de 1982, e similares, como unicamente celebratórios da cultura negra. Ao aparecer sempre nessas pinturas como meios corpos ou corpos de alguma forma mutilados, o corpo masculino negro se torna, iconograficamente, um sinal de falta e ausência. A imagem de incompletude reflete obras de Basquiat que mais explicitamente criticam o imperialismo branco. “Nativo carregando armas, Bíblias, Amoritas em Safari” (1982) evoca graficamente imagens da negritude incompleta. Com perversa sagacidade, Basquiat afirma no canto inferior direito da obra: “Eu nem vou mencionar ouro (oro)”, como se precisasse lembrar os espectadores sobre a estratégia de interrogação por trás das imagens esqueléticas dos desenhos animados.
Na obra de Basquiat, a carne do corpo negro está quase sempre depedaçando-se. Como nas figuras esqueléticas da pintura aborígene australiana descrita por Robert Edward (pinturas de raio X, nas quais o artista retrata características externas assim como órgãos internos de animais, humanos e espíritos para enfatizar que “uma coisa viva é muito mais do que aparência externa”5), as figuras de Basquiat foram trabalhadas até os ossos. Para fazer justiça ao trabalho, nosso olhar deve ultrapassar as aparências superficiais. Desafiam-nos a provar o coração das trevas, a mover os olhos para além do olhar colonizador. As pinturas pedem que guardemos em nossa memória os ossos dos mortos enquanto consideramos o mundo negro que nos é imediato, familiar.
Para entender essas pinturas, é preciso estar disposto a aceitar as dimensões trágicas da vida dos negros. Em “The Fire Next Time”, James Baldwin declarou que “quase nunca houve linguagem para os horrores da vida dos negros”. Ele insiste que a privacidade da experiência negra precisa “ser reconhecida na linguagem”. O trabalho de Basquiat dá expressão artística àquela angústia privada.
Para além das superfícies, Basquiat nos faz confrontar com a imagem nua da negritude. Não há carne negra a ser explorada em seu trabalho pois esse corpo, diminuído, se esvaece. Aqueles que querem ser seduzidos por tal carne devem procurar em outro lugar. Não é à toa que suas figuras esqueléticas se assemelham àquelas descritas no livro “The Art of Maasai”, de Gillies Turle6. Tanto a arte maasai quanto o trabalho de Basquiat delineiam o violento apagamento de um povo, sua cultura e tradições. Esse apagamento torna-se ainda mais problemático quando artefatos dessa “cultura em extinção” são mercantilizados para melhorar a estética daqueles que perpetram o apagamento.
O mundo da arte maasai é um mundo de ossos. Escolhendo não trabalhar com pigmentos em pinturas e artes decorativas, os Maasai usam ossos de animais de caça para expressar sua relação com a natureza e com seus ancestrais. Os artistas maasai acreditam que os ossos falam — contam todas as informações culturais necessárias, tomando o lugar dos livros de história. Assim, ossos se tornam o repositório da história pessoal e política. A arte massai sobrevive como uma lembrança viva da distinção da cultura negra que floresceu mais vigorosamente quando não havia sido descoberta pelo homem branco. É essa intimidade que o imperialismo branco viola e destrói. Turle enfatiza que enquanto os ossos são “pontos de foco intensos para os minutos principais em um estado receptivo mais profundo”, esse poder comunicativo é perdido naqueles que são incapazes de ouvir os ossos falarem.
Mesmo que socialmente Basquiat tolere os brancos apesar de não conseguirem ultrapassar as aparências superficiais (e seus estereótipos espetaculares de escuridão, negros de estimação e afins), ele se mantém atento a eles. Evidenciando a incapacidade desse público de abandonar a noção da superioridade racial mesmo quando ela limita e restringe o olhar, Basquiat desconstrói com ironia o investimento nas tradições e cânones ao expor o olhar coletivo vinculado à estética da supremacia branca. “Liberais desprezíveis” (1982) mostra uma história de rupturas ao apresentar um Sansão [Samson]7 negro mutilado e acorrentado junto a outra figura negra mais contemporânea, que já não está nua mas completa e fomalmente vestida, portando um cartaz que diz: “Não está à venda”. O cartaz é usado para afastar o liberalismo da grande figura branca e autoritária que está ao lado.
Apesar da energia que Basquiat dedicou ao jogo do “como-ser-um-artista-famoso-no-menor-tempo-possível”, cortejando o grupo certo, fazendo conexões, frequentando lugares da alta cultura branca — ele escolheu trabalhar em um espaço onde esse processo de mercantilização é particularmente crítico, o espaço do corpo e da alma do negro. Não se deixando impressionar pela exotização colonial, ele zomba dela quando anuncia um “gênio desconhecido do delta do Mississippi”, forçando-nos a questionar quem faz as descobertas e por quê.
Em sua obra, Basquiat liga o imperialismo ao patriarcado: a uma visão falocêntrica do universo onde os egos masculinos se vinculam ao mito heroico. A recorrente imagem da coroa clama por e ao mesmo tempo zomba da obsessão ocidental para ocupar o topo. O historiador da arte Robert Farris Thompson sugere que o ícone da coroa reflete o contínuo fascínio de Basquiat por “realeza, heroísmo e ruas”8. McEvilley interpreta a coroa de maneira semelhante, vendo-a como representante de um “senso de dupla identidade, uma individualidade real perdida mas recordada vagamente”.9 Ele explica que “na obra de Basquiat, o tema do exílio divino ou da realeza foi territorializado ou historicizado pela realidade concreta da diáspora africana. O rei que um dia havia sido (e que tornaria a ser quando retornasse) poderia coincidir com um guerreiro Watusi ou um faraó egípcio”.10
Não há dúvida que Basquiat era obcecado com a glória e a fama, mas tal obsessão não deixa de ser também objeto de intensa auto-interrogação. Tanto Thompson quanto McEvilley falham ao não reconhecerem a crítica amarga e irônica de Basquiat com relação a seu próprio anseio pela fama. A coroa não é uma imagem inequívoca. Embora possa expressar positivamente a busca por glória e poder, conecta esse desejo à desumanização, à disposição geral por parte dos homens de cometer globalmente qualquer injustiça para chegar ao topo. Em “Coroas (Peso Neto)”, de 1981, figuras negras usam coroas mas são contrastadas com a solitária figura branca que também usa uma coroa e que paira grandiosa, supervisionando tudo.
Na obra de Basquiat, a luta pela hegemonia cultural no Ocidente é descrita como uma luta entre homens. Racializada, é uma luta entre homens negros e homens brancos sobre quem vai dominar. Em “Carlos I” (1982), somos informados de que “a maioria dos reis jovens tem a sua cabeça cortada”. Evocando uma metáfora política e sexual que funde o medo da castração com o desejo de afirmar o domínio, Basquiat deixa claro que a masculinidade negra está irrevogavelmente ligada à masculinidade branca por meio da obsessão compartilhada pela conquista, tanto sexual quanto política.
Historicamente, a competição entre negros e brancos destaca-se no campo esportivo. Basquiat desloca-a para o campo cultural — o pôster dele e Andy Warhol em trajes de boxe não é inocente e divertido como parece. No território musical, em particular o jazz, chama a atenção para o poder inovador dos músicos negros, reverenciados como figuras paternais, criativas e triunfantes. Sua criatividade, ao superar a dos brancos, permite que Basquiat não apenas perceba a si mesmo como gênio negro, mas também perceba a sabedoria de modo inclusivo.
Braithwaite afirma que a síntese e fusão cultural dos músicos de jazz negros refletiam as próprias aspirações de Basquiat. Essa conexão é mal entendida e menosprezada por Gopnik em seu ensaio “Madison Avenue Primitive” (observem o escárnio do título) quando ele expressa sua indignação para com o trabalho de Basquiat, ligando-o àquele dos grandes músicos negros de jazz. Com a graciosidade e arrogância de um colonizador paternalista, Gopnik aceita, por um lado, que Basquiat seja incluído na tradição da arte erudita: “No catálogo da exposição, não há nenhum mal nas intermináveis comparações de Basquiat a Goya, Picasso e outros grandes nomes.” Mas, por outro, dispara: “O que é imperdoável são as intermináveis comparações de Basquiat aos mestres do jazz americano.”11
Gopnik relembra as investidas musicais de Basquiat para, em seguida, declarar como ele era “realmente” um péssimo músico. Mas esse não é o ponto. Basquiat nunca disse que seu talento musical era o mesmo dos músicos do jazz. Sua conexão com o jazz não significou a afirmação de sua própria habilidade musical, e sim uma declaração de respeito pelo gênio criativo do jazz e por todas as dimensões da vanguarda que afirmam a fusão, a mistura e a improvisação. Sentia afinidade com o jazz na vontade de expandir os limites do gosto artístico convencional — e branco. Por meio da celebração dessa conexão, Basquiat seria capaz de criar uma comunidade artística negra para incluir-se embora, na realidade, não tenha vivido o suficiente para reivindicar esse espaço de pertencimento. O único espaço que pôde reivindicar foi o da fama compartilhada.
A fama, simbolizada pela coroa, parece-lhe o único caminho possível para a subjetividade do artista negro. Não ser famoso é tornar-se invisível. Portanto, não há escolha. Você entra no campo de batalha falocêntrico da representação e joga o jogo ou está condenado a ficar fora da história. Basquiat queria um lugar na história e jogou o jogo. Ao tentar criar um lugar para si mesmo — um negro — no mundo artístico estabelecido, ele assumiu o papel de explorador, colonizador. Por meio de sua vida e trabalho, ele replicou e inverteu a imagem do colonizador branco.
Basquiat viajou fundo no território branco, que nomeou como um lugar selvagem e brutal. Uma jornada sem certeza de retorno. Sem saber o que encontraria ou quem estaria no final da jornada. Braithwaite declara: “O mais lamentável foi que, uma vez que ele descobriu como entrar no meio da arte, pensou, bem, merda, onde estou? Você conseguiu essa façanha incrível, entrou provavelmente mais rápido do que qualquer um na história mas, assim que chegou, ficou parado, tentando compreender onde estava. E então, quem está comigo?”12. Ao aceitar participar do jogo masculino da fama do mundo da arte, ao trabalhar uma imagem estereotipada e sombria e ao interpretar o malandro, Basquiat compreendeu que estava arriscando sua vida — que essa jornada era precisamente sobre o sacrifício.
O que foi sacrificado foi aquilo que não tem lugar no mundo branco. Para ser visto pelo mundo da arte, para ser reconhecido, Basquiat teve que se refazer, criar-se a partir da perspectiva branca. Ele teve que se tornar nativo e não-nativo ao mesmo tempo para assumir, ao mesmo tempo, a negritude definida pela imaginação branca e a negritude que equivale à branquitude. O antropólogo A. David Napier explica: “Estranhos no meio de nós são realmente os mais estranhos de todos — não porque sejam tão estranhos, mas porque estão tão perto de nós. Como muitas lendas de ‘homens selvagens’, judeus errantes e crianças selvagens nos lembram, estranhos devem ser como nós, mas diferentes. Eles não podem ser completamente exóticos, pois, se fossem assim, não poderíamos reconhecê-los”13.
Para ser reconhecido pelo mundo branco da arte, Basquiat teve que sacrificar partes de si mesmo. Negro, mas assimilado, Basquiat reivindicou o espaço do exótico como se fosse uma nova fronteira, esperando para ser colonizado. Ele fez desse espaço na branquitude (a terra do exótico) um local onde seria lembrado na história enquanto criava simultaneamente uma arte que interrogava tal mutilação e auto-distorção. Como o crítico Greg Tate afirma, para Basquiat “fazer isso… significava entrar para a história, ser classificado ao lado dos Grandes Mestres Brancos da pintura ocidental pelos principais críticos, curadores e historiadores da arte, que são aqueles que acabam determinando tais coisas”14.
Mas o desejo do sacrifício não libertou Basquiat da dor daquele sacrifício. A dor irrompe no espaço privado de seu trabalho. É surpreendente que tão poucos críticos discutam configurações de dor no trabalho de Basquiat enfatizando, em vez disso, o lúdico e a celebração. Isso reduz sua pintura ao espetáculo, tornando-a mera extensão do circuito em que Basquiat transformou sua vida. Mas sua dor particular podia ser manifestada nas mesmas pinturas porque ele sabia que o mundo “capturado” não seria capaz de vê-la, nem esperaria encontrá-la ali. Francesco Pellizzi fala sobre a dor em seu ensaio “Black and White all over: Poetry and Desolation Painting”, identificando as oferendas de Basquiat como “autoimolações, sacrifícios do eu” que não emergem “do desejo, mas do deserto da esperança”15. Os rituais de sacrifício resultam de trabalho interior do espírito informado por sua manifestação exterior.
As pinturas de Basquiat testemunham essa espiritualidade. Expõem e falam sobre a angústia do sacrifício. Por meio de ausência e perda, elas ecoam a tristeza daquilo que se teve e se abandonou. O insight de McEvilley de que “em seu aspecto espiritual, o assunto [de Basquiat] é órfico — isto é, relaciona-se ao mito antigo da alma como uma divindade perdida, vagando de seu verdadeiro lar e temporariamente aprisionada em um corpo degradantemente limitado”16 caracteriza bem essa angústia. Se o que dá contorno ao corpo na obra de Basquiat é a construção da masculinidade como falta, ser macho e atar-se ao interminável ciclo da conquista é perder em plenitude.
Há poucas referências significativas que conectam Basquiat ao mundo da negritude feminina ou a influências e inspirações femininas. Que a obra de Basquiat, em sua maior parte, negue conexão com o feminino é uma lacuna reveladora que pode iluminar e expandir nossa visão dele e de seu trabalho. Leituras pseudo-psicanalíticas simplistas levam críticos a sugerirem que Basquiat era um menino perpétuo sempre em busca do pai. Em seu ensaio para o catálogo da Whitney, o crítico Rene Ricard insiste: “Andy representou para Jean o ‘bom pai branco’ que Jean procurava desde sua adolescência. A mãe de Jean sempre foi um mistério para mim. Eu nunca a conheci. Ela vive em um hospital, saindo com pouca frequência, até onde sei. Andy fez o retrato dela. Ela e Andy eram as pessoas mais importantes da vida de Jean.”17
Como Basquiat era ligado ao seu pai natural, Gerard, bem como rodeado por muitos mentores masculinos, parece improvável que a “falta” significativa em sua vida tenha sido a ausência de um pai. Talvez tenha sido justamente a presença de muitos pais canibais, que ofuscou e exigiu a repressão da memória da mãe ou de qualquer outro princípio feminino, o que levou Basquiat a ser seduzido pelo sacrifício metafórico de seus pais, espécie de assassinato fálico que levou à morte de sua alma.
A perda de sua mãe, sombria habitante do mundo da loucura que a afastou do convívio, simbolicamente abandonada e abandonando, pode bem ter sido o trauma psíquico que moldou o trabalho de Basquiat. O retrato de Matilde Basquiat feito por Andy Warhol nos mostra a imagem sorridente de uma mulher negra porto-riquenha. Foi ela, identificada de brincadeira por seu filho como “bruja” (bruxa), que viu pela primeira vez em Jean-Michel o funcionamento do gênio e da possibilidade artística. Seu pai lembra: “Sua mãe o iniciou e o empurrou. Ela era realmente uma artista muito boa”18. Jean-Michel também deu seu testemunho: “Eu diria que minha mãe me deu todas as coisas primárias. A arte veio dela”19. No entanto, essa pessoa que lhe deu o saber vivido da ancestralidade bem como o do branco ocidental, é uma figura ausente no livro de recortes pessoal de Basquiat como artista de sucesso. É como se sua incapacidade de reconciliar a força e o poder da feminilidade com o falocentrismo levasse ao apagamento da presença feminina em sua obra.
Conflituoso em sua própria sexualidade, Basquiat é, no entanto, representado no catálogo da Whitney e em outros como o estereótipo do garanhão negro atrás de mulheres brancas. Nenhuma importância é atribuída pelos críticos à ambigüidade sexual que era tão central para a persona de Basquiat. Mesmo enquanto lutava para se entender mais como sujeito do que como objeto, ele consistentemente se baseava em antigas noções patriarcais de identidade masculina, apesar do fato de que ele associava a masculinidade a imperialismo, conquista, ganância, apetite sem fim e, finalmente, morte.
Estar em contato com emoções que vão além da conquista é entrar num campo misterioso. Esse é o lugar de oposição que Basquiat ansiou sem conseguir. Um lugar temido, associado não à resistência significativa mas a loucura, perda e invisibilidade. As pinturas de Basquiat transmitem medo. Mas não há medo no mundo como ele é, o Ocidente descentrado e desintegrado, o familiar terreno da morte. Há medo no espaço inimaginável onde se pode viver sem “same old shit” (a mesma merda de sempre).
Dedicado ao processo de nomeação da violência contra o self negro, Basquiat não conseguiu traçar o plano de fuga. Napier afirma que “ao nomear, nos livramos do fardo de realmente considerar a implicação de como um modo de pensar diferente pode transformar as condições que dão sentido às relações sociais”20. Mestre desconstrutivista, Basquiat não foi capaz de imaginar um mundo concreto de solidariedades coletivas que poderia alterar o status quo. McEvilley vê o trabalho de Basquiat como uma “celebração iconográfica da idéia do fim do mundo, ou de um certo paradigma do fim do mundo”.21 Apesar de Basquiat retratar graficamente a desintegração do Ocidente, ele lamenta o impacto do colapso quando sinaliza a desgraça na vida negra. Representações carnavalescas, bem-humoradas e lúdicas de morte e decadência apenas mascaram o trágico, cobrindo-o com um fino verniz de celebração. Agarrando-se a esse verniz, nega-se que existe uma realidade para além da máscara.
O cineasta gay negro Marlon Riggs sugeriu que muitos negros “têm se esforçado para manter espaços secretos dentro de nossas histórias, de nossas vidas, de nossa psique sobre coisas que perturbam o senso de identidade”22. Apesar do vício de mascarar e disfarçar, Basquiat usou a pintura para desintegrar a imagem pública de si que criou e sustentou. Não é de se admirar, então, que receba críticas contínuas que questionam sua “autenticidade e valor”. Como não conseguem definir Basquiat com precisão no mundo branco da arte, os críticos, confiantes de que “o conheceram”, colonizam sua obra dentro de um sistema teórico de apropriação cujo poder faz dela sempre e somente espetáculo. Essa sensação de “terrível” espetáculo está presente nas pinturas escolhidas para as capas de todas as publicações de sua obra, incluindo o catálogo de Whitney.
Na conclusão de “The Art of the Maasai”, Turle afirma: “Quando um continente teve seu povo escravizado, seus recursos removidos e suas terras colonizadas, os perpetradores dessas ações nunca podem concordar com o criticismo contemporâneo ou teriam que condenar a si mesmos”23. A recusa em confrontar a necessária autocondenação faz com que pessoas menos movidas pela obra insistam em dizer que a conhecem. Mas Braithwaite tem esperança de que o trabalho de Basquiat seja reconsiderado criticamente e que a exposição no Whitney finalmente possibilite às pessoas “ver o que ele fez”.
Para que isso possa acontecer, Braithwaite adverte, o estabelecido mundo da arte branca (e eu acrescentaria o público eurocêntrico, multiétnico) deve primeiro “olhar para si mesmo”. Com perspicácia ele insiste: “Eles têm que tentar apagar, se possível, todo o racismo de seus corações e mentes. Assim, quando olharem para as pinturas, poderão ver a arte.”24 Clamando por um processo de descolonização que certamente não está acontecendo (a julgar pela crescente massa de respostas negativas à exposição), Braithwaite articula a única mudança cultural possível na perspectiva de poder lançar as bases para uma avaliação crítica abrangente do trabalho de Basquiat.
A pintura de Basquiat que assombra minha imaginação e dura em minha memória é “Cavalgando com a morte”(1988). Ao evocar imagens de possessão, cavalgar e ser montado no sentido haitiano do voudoun — como um processo de exorcismo que torna possível a revelação, a renovação e a transformação -, sinto a subversão do medo presente em grande parte de sua obra. No lugar do medo está a ideia de que a figura negra que cavalga os ossos brancos esqueléticos esteja de fato “possuída”. Napier nos convida a considerar a possessão como “uma atividade verdadeiramente vanguardista, em que aqueles em transe têm o poder de ir à periferia do conhecido para explorar suas fronteiras e depois retornar ilesos”.25 Napier relata que “as pessoas em transe não deixam — como às vezes fazem os artistas performáticos do Ocidente — corpos feridos no mundo humano”.26 Nenhum espírito de possessão protegeu Jean-Michel Basquiat. Ele entrará na história como um dos corpos feridos. No entanto, sua arte permanecerá como uma declaração de vingança: Somos mais do que nossa dor. A pintura de Basquiat que mais me comove justapõe o paradigma do sacrifício ao da recuperação e do retorno.
NOTAS
- GOPNIK, Adam. “Madison Avenue Primitive”. The New Yorker. Nova York, 9 nov. 1992, p. 137-139.
- STORR, Robert. “Two Hundred Beats per Minute”. In: CHEIM, John. Basquiat Drawings. Nova York, 1990, s.p.
- BRAITHWAITE, Fred. “Jean-Michel Basquiat”. Interview. Nova York, out. 1992, p. 119.
- MCEVILLEY, Thomas. “Royal Slumming: Jean-Michel Basquiat Here Below”. Artforum. nov. 1992, p. 95.
- EDWARD, Robert. “Aboriginal Bark Painting”. Rigby Limited. Adelaide, 1969, s.p.
- TURLE, Gillies. The Art of Maasai. Nova York: Knopf, 1992.
- Nota da tradutora: Os codinomes SAMO, Sambo, Samson ou Same Old Shit identificavam as intervenções de Jean-Michel Basquiat e Al Diaz na cidade de Nova York.
- THOMPSON, Robert Farris. “Royalty, Heroism, and the Streets: The Art of Jean-Michel Basquiat”. In: MARSHALL, Richard (Org). Jean-Michel Basquiat. Nova York: Whitney Museum of American Art, 1992.
- (MCEVILLEY, 1992, p. 96).
- Ibidem.
- (GOPNIK, 1992, p. 139).
- (BRAITHWAITE, 1992, p. 123).
- NAPIER, A. David. “Culture as Self: The Stranger Within”. In: Foreign Bodies: Performance, Art, and Symbolic Anthropology. Berkeley: University of California Press, 1992, p. 147
- TATE, Greg. “Nobody Loves a Genius Child”. Village Voice, 14 nov. 1989, p. 33.
- PELLIZZI, Francesco. “Black and White All Over: Poetry and Desolation Painting”. Nova York: Vrej Baghoomian Gallery, 1989.
- (MCEVILLEY, 1992, p. 96).
- RICARD, Rene. “World Crown ©: Bodhisattva with Clenched Mudra”. In: MARSHALL, Richard (Org). Jean-Michel Basquiat. Nova York: Whitney Museum of American Art, 1992, p. 49.
- BASQUIAT, Gerard citado em MARSHALL, Richard (Org). Jean-Michel Basquiat. Nova York: Whitney Museum of American Art, 1992, p. 233.
- BASQUIAT, Jean-Michel citado em MARSHALL, Richard (Org). Jean-Michel Basquiat. Nova York: Whitney Museum of American Art, 1992, p. 233.
- (NAPIER, 1992, p. 147).
- (MCEVILLEY, 1992, p. 97).
- SALAAM, Kalamu ya. “Interview with Marlon Riggs”. Black Film Review, v. 7, n. 3, 1992, p. 8.
- (TURLE, 1992, s.p).
- (BRAITHWAITE, 1992, p. 140).
- (NAPIER, 1992, p. 69).
- Ibidem.
bell hooks
Escritora, teórica feminista, artista e ativista social estadunidense.
Jean-Michel Basquiat
Artista estadunidense, atuou em Nova Iorque na década de 1980 até sua morte, em 1988.
Como citar
HOOKS, bell. Altares do sacrifício: relembrando Basquiat. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, seção Extra! [conteúdo exclusivo online], 16 nov. 2018.
Traduzido por Renata Marquez.
Este texto é fragmento do livro Art on my mind: visual politics de bell hooks (1995), e foi traduzido e editado na ocasião da exposição retrospectiva Jean-Michel Basquiat: obras da coleção Mugrabi no CCBB em Belo Horizonte, entre julho e setembro de 2018. Cortesia de bell hooks Institute.
© Irony of the Negro Policeman and Obnoxious Liberals — copyright Estate of Jean-Michel Basquiat.