BOLETIM DA LAMA
TÓXICA N.2
Edição 2: 14 a 22 de novembro de 2015
Fernanda Regaldo, Francisca Caporali, Paula Lobato e Roberto Andrés
Boletim semanal sobre o dia a dia da lama tóxica que arrasou uma cidade e destruiu um rio – e agora chega ao mar. Apanhado das tragédias, dos impactos sociais e ambientais, das posturas dos governantes e da imprensa. Para que a lama não seja esquecida amanhã, frente à tragédia da vez.
A onda de lama que percorreu cerca de 700 quilômetros, durante 17 dias, chegou à costa do Espírito Santo em uma área de proteção ambiental usada para desova de tartarugas-marinhas, incluindo a tartaruga-de-couro, uma espécie ameaçada de extinção
A lama atingiu 39 cidades de Minas Gerais e do Espírito Santo, deixando problemas variados em muitas delas: Mariana, Barra Longa, Sem Peixe, Rio Doce, Santa Cruz do Escalvado, Rio Casca, São Domingos da Prata, São José do Goiabal, São Pedro dos Ferros, Dionísio, Raul Soares, Córrego Novo, Pingo D´Água, Marileia, Bom Jesus do Galho, Caratinga, Timóteo, Santana do Paraíso, Bugre, Iapu, Coronel Fabriciano, Ipaba, Ipatinga, Belo Oriente, Naque, Periquito, Sobrália, Fernandes Tourinho, Alpercata, Governador Valadares, Tumiritinga, Galileia, Conselheiro Pena, Resplendor, Itueta, Aimorés, Baixo Guandu, Colatina e Linhares.
Regência, Linhares – ES
Para tentar impedir que a lama ficasse represada em Regência, a Samarco, a prefeitura, o Tamar e os pescadores locais cavaram canais entre o rio e o mar para facilitar o escoamento ao mar. Além disso foram instalados 9 quilômetros de boias com barreiras físicas próximo à foz, para impedir que a lama se acumulasse nas margens e prejudicasse criadouros de diversas espécies.
A água com elevada turbidez ultrapassou as bóias de contenção da barreira de 9 km instalada na Foz do Rio Doce. Segundo a Secretaria de Estado de Meio Ambiente, isso já era esperado, porque as bóias são para conter óleo e não lama. Entretanto, a Samarco informou que o esperado com a instalação é isolar a fauna e a flora que vivem no entorno, mas que as bóias conseguiram também conter a parte mais grossa da lama.
A região litorânea do Espírito Santo é local de grande biodiversidade, responsável por filtrar 15% do gás carbônico do planeta. “Temos ali o maior banco de algas, calcário e corais do mundo”, diz diretor da Estação Augusto Ruschi, acrescentando que, se o ecossistema morrer, pode haver significativo aumento na temperatura do planeta.
Segundo informações do jornal Folha de S. Paulo, o mar agitado da praia da Regência criou uma barreira deixando a lama estancada na foz do Rio Doce. Centenas de peixes cobertos de barro morreram.
Baixo Guandú – ES
Na rota da lama, Baixo Guandu é exceção. A cidade de pouco mais de 30 mil habitantes conseguiu evitar o desabastecimento de água após a realização de uma obra emergencial em apenas quatro dias. A intervenção teve a participação de dezenas de moradores voluntários, que trabalharam quase ininterruptamente entre os dias 11 e 15 para construir um sistema provisório de captação no rio Guandu.
Aimorés – MG
A Lama de rejeitos chegou à barragem de Itueta Velha, em Aimorés, por baixo do espelho d’água. Devido aos resíduos de metais pesados, a lama veio pelo fundo da barragem e na segunda-feira pela manhã, na abertura das comportas, ela emergiu.
Resplendor – MG
Entre os Krenak, o rio Doce é considerado um avó sábio, chamado por eles de Uatu. Se para os brasileiros a tragédia provocada pelo rompimento das barragens na região de Mariana doí, não podemos imaginar a ferida aberta desse povo cuja história e vida se embrenha com a do rio.
Tida como sagrada há gerações, toda a água utilizada por 350 índios para consumo, banho e limpeza vinha do Rio Doce, que atravessa a reserva da tribo indígena Krenak. Sem água há mais de uma semana, sujos e com sede, eles decidiram interromper em protesto a Estrada de Ferro Vitória-Minas, por onde a Vale, controladora da Samarco e da ferrovia, transporta seus minérios para exportação.
Governador Valadares – MG
O Governador Fernando Pimentel anunciou, no sábado dia 14, a retomada da captação de água do Rio Doce em Governador Valadares. Segundo a Copasa, a água, depois de submetida a uma reação com o polímero coagulante chamado “acácia negra”, tem condições de potabilidade para ser submetida ao tratamento normal das estações que atendem a cidade. A prefeitura de Baixo Guandú havia divulgado, no dia 12, um relatório de análise da água do Rio Doce na altura de Governador Valadares e de outros dois pontos distintos.
A população da cidade segue desconfiada e rejeita a água que chega às torneiras devido ao intenso odor de cloro, que segundo a empresa fornecedora é parte do processo de assepsia das redes que ficarem sem receber água por tanto tempo.
A cidade está recebendo obras de captação alternativa de água em dois outros rios, com o objetivo de resguardar a cidade para outros problemas que possam acontecer. O sistema emergencial da prefeitura – com a distribuição de água mineral e água potável em pontos da cidade – será mantido até que o sistema seja totalmente restabelecido. A intenção da prefeitura é chegar a 30 pontos, mas até o final da primeira semana desde o rompimento da barragem apenas oito estavam funcionando.
Morador de Valadares produz documentários sobre a situação da água em Governador Valadares.
Bento Rodrigues – MG
Passados 10 dias da tragédia, bombeiros se guiavam por urubus para achar corpos cobertos pela lama em Bento Rodrigues.
De acordo com ecólogos, geofísicos e gestores ambientais, os distritos de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo devem se transformar em desertos de lama. “Esse resíduo de mineração é infértil porque não tem matéria orgânica. Nada nasce ali. É como plantar na areia da praia de Copacabana”, diz Maurício Ehrlich, professor de Geotecnia da Coppe-UFRJ.
Em uma assembleia de moradores, ficou decidido que Bento Rodrigues não vai mais existir. Uma comunidade será construída pela empresa em um novo terreno. A Samarco tem uma semana para apresentar o cronograma de indenização às vítimas do maior acidente ambiental do mundo na área da mineração, segundo avaliação do Ibama. Em Mariana, os desabrigados começaram a se mudar para as casas alugadas pela mineradora.
Na tarde da segunda-feira (16), as crianças de Bento Rodrigues voltaram à escola. O Ministro do Desenvolvimento Agrário Patrus Ananias acompanhou a volta das crianças à escola, e anunciou que as comunidades que tenham máquinas do PAC poderão usá-las para obras de reconstrução. Além disso, os agricultores familiares que receberam verbas do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) e foram atingidos vão ter a dívida perdoada.
Para a presidente da CUT-MG, Beatriz Cerqueira, a Samarco chantageia a cidade de Mariana pelo poder econômico e pelos impactos que a suspensão do seu trabalho na região causará, como se não tivesse que dar assistência à cidade por todos os prejuízos causados.
Imprensa
Em julho de 2015, a Samarco foi eleita pela quinta vez – sendo o terceiro ano consecutivo – a melhor mineradora do Brasil pelo anuário “Melhores e Maiores” da Revista Exame.
O Jornal Le Monde lembrou esta semana do Public Eye Awards, prêmio de pior empresa do mundo, recebido em 2012 pela Vale. A Vale e a japonesa Tepco, responsável pelo desastre nuclear de Fukushima, se revezaram no primeiro lugar da disputa, vencida pela mineradora brasileira.
O jornal inglês The Guardian fala de uma catastrofe ambiental que se desdobra em câmera lenta, e ressalta que, apesar da importância da mineração para a economia brasileira, há somente 220 inspetores para fiscalizar o setor no país.
Em outro artigo, o The Guardian critica a Vale, ressaltando que a resposta pública da BHP Billinton foi relativamente rápida, enquanto a Vale parecia indiferente ao desastre. “A Vale soltou um comunicado de cinco frases depois de passadas 24 horas do acidente, e passou a responsabilidade para a Samarco.”
O “Risk and Compliance Report” do Wall Street Journal publicou as opiniões de três observatórios de mídia sobre as respostas públicas das duas empresas controladoras e da Samarco. A atuação da Vale destacou-se, com folga, como a pior. A mídia internacional noticiou a resposta pública do CEO da BHP descrevendo o que seriam gestos e falas de profunda comoção. O CEO da empresa declarou que sentia profundamente pelo desastre, e as festas de Natal e fim de ano foram canceladas, o que foi considerado por muitos como demonstrações básicas de respeito aos atingidos – e que não se viu no Brasil.
O programa Fantástico, da TV Globo, em sua edição de 15 de novembro de 2015 ocupou 68 minutos com os atentados na França e apenas 13 minutos com os atentados em Mariana. Neste tempo, a Samarco foi citada apenas 5 vezes, sendo 4 delas de maneira positiva. Em nenhum momento a Vale ou a BHP (controladoras da Samarco) foram citadas. Em nenhum momento foram apresentados os riscos da lama ser tóxica.
A edição semanal da revista Veja cobriu a tragédia de Mariana em uma matéria de apenas duas páginas, que pouco diz sobre as causas que levaram ao desastre. Em nenhum momento citou a Vale e a BHP, empresas controladoras da Samarco. Outra vez, as revistas nacionais mantiveram a tragédia fora das capas.
O Programa da Band CQC leva ao ar a melhor cobertura produzida pela TV brasileira. No programa, dividido em dois capítulos, a equipe deixa muito claro como a Samarco está interessada em controlar o acesso à situação. Um de seus repórteres, mesmo credenciado, foi barrado da coletiva de imprensa por ordem da empresa.
A Empresa e os Órgãos Públicos
Em 13 de novembro de 2015, a presidência da república publicou um decreto que visa, inicialmente, liberar o FGTS das vítimas da tragédia, em que considera “também como natural o desastre decorrente do rompimento ou colapso de barragens que ocasione movimento de massa, com danos a unidades residenciais.”
A subprocuradora-geral da República Sandra Cureau afirmou que a mineradora Samarco sabia dos riscos a que os moradores e moradoras do distrito de Bento Rodrigues estavam expostos/as, pelo menos desde 2013. Por essa razão, deve responder por todos os danos causados pelo rompimento da Barragem de Fundão, em Minas Gerais.
Um termo para o pagamento de uma caução socioambiental de R$ 1 bilhão foi firmado entre o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), o Ministério Público Federal (MPF) e a mineradora Samarco no dia 16 de novembro. Os primeiros R$ 500 milhões devem ser pagos dentro de 10 dias. Quem vai gerir e aplicar esses recursos em ações é a própria Samarco, conforme o MPMG.
Em um manifesto assinado por mais de 75 entidades, propõe-se o congelamento dos bens da empresa para aplicação em recuperação ambiental. O manifesto expõe o risco da alteração da legislação que regula o licenciamento ambiental no Estado, que facilitaria empreendimentos de alto risco ambiental e natural sem controle cidadão.
Uma auditoria indicada pelo Ministério Público vai produzir relatórios periódicos demostrando os gastos. Por não acreditar que esse acordo seja suficiente para a cobertura dos danos causados, Advocacia-Geral da União (AGU) estuda entrar com uma outra ação contra a mineradora Samarco. O órgão aguarda laudos e relatórios técnicos de vistorias e levantamentos nos municípios atingidos.
Visando evitar sua prisão, o presidente da Samarco recebeu concessão de Habeas Corpus preventivo do Tribunal de Justiça do Espírito Santo. O juiz determinou que a mineradora cumpra várias medidas para diminuir os efeitos da contaminação no Rio Doce e em caso de desobediência desta ordem judicial, o executivo seria preso.
Segundo o advogado Joviano Mayer, que esteve presente em uma audiência pública em Mariana designada pelos deputados da comissão de direitos humanos da Assembleia Legislativa de Minas Gerais, “o representante da Samarco de tão preocupado com os relatos dolorosos e as graves denúncias que pesam contra as empresas, dormiu…”
Na coletiva de imprensa em que definiram 2016 como prazo para recuperar uma das barragens danificadas em Mariana, representantes da Samarco afirmaram que o maior desastre ambiental da nossa história não é motivo para pedir desculpas.
O presidente da Câmara, Eduardo Cunha, pretende submeter aos deputados nos próximos dias um pedido de urgência para a votação do texto do novo Código de Mineração no plenário. Com isso, o relatório poderá ser apreciado sem passar por uma nova comissão especial. A proposta de nova redação para as regras estabelecidas em 1967 está em discussão desde 2013, mas não foi votada até hoje. No ano passado a Vale ampliou em 44% as doações aos políticos em data que coincide com a revisão deste Código de Mineração. Organizações de defesa do ambiente apontam que o relatório, feito por Leonardo Quintão, favorece as mineradoras (o que ele nega). Apenas cinco dos deputados que analisam novo código não receberam doações de mineradoras.
Um projeto de lei que começou a tramitar em 2003 na Assembleia de Minas Gerais – e atravessou três legislaturas sem conseguir aprovação até ser arquivado definitivamente em janeiro de 2015 – poderia ter evitado a tragédia do rompimento de barragens em Mariana.
O Governador Fernando Pimentel criou uma comissão para tratar da tragédia junto a prefeitos de 25 municípios atingidos diretamente ou indiretamente. As Brigadas Populares questionaram a criação de uma mesa de negociação mediada pelo Estado, visto que já existem instâncias para isto e que o Governo de Minas Gerais não é idôneo (recebeu doações de mineradoras e da Vale). Segundo a nota, por se tratar de um crime ambiental, o poder público deve impor medidas emergenciais e de reparação aos culpados, e não negociar com os réus.
No dia 17 de novembro, o Diretor-geral do Departamento Nacional de Produção Minerária (DNPM) pediu demissão. O ministro de Minas e Energia indicará substituto para ocupar o cargo interinamente.
Insegurança na Mineração
O DNPM desmentiu a informação inicialmente passada pela Samarco de que as duas barragens se romperam no dia 5/11. Apenas a barragem do Fundão rompeu, passando por cima da de Santarém que está com vazamentos, mas com a parte da estrutura ainda existe e sustenta grande parte de matéria.
Imagens feitas por drones do Corpo de Bombeiros mostram fissuras na barragem Germano, porém a Defesa Civil Estadual mantém a informação de que não há rachaduras na barragem e não há riscos. A Samarco admite que a estrutura está fora dos padrões de segurança.
A Samarco admite que as duas represas remanescentes do complexo – Germano, a maior de todas, que contém rejeitos, e Santarém, que acumula água – correm risco. Segundo a mineradora, o reparo da primeira vai durar 45 dias, enquanto a segunda, cuja contenção foi erodida pelo fluxo de lama do desastre, só deve estar completamente reparada em 90 dias.
Em entrevista ao periódico El País, o coordenador do projeto Manuelzão da UFMG, Marcus Vinícius Polignano fala sobre a necessidade de reinvenção da mineração: “Não podemos continuar pensando que podemos fazer modelos do século XVIII em situações do século XXI”.
O Brasil tem ao menos 16 barragens de mineração inseguras, segundo dados oficiais de relatórios do DNPM (Departamento Nacional de Produção Mineral). Segundo relatório produzido pela Agência Nacional das Águas, apenas 5,7% das 15 mil barragens do país passaram por vistorias entre 2012 e 2014.
O GIAIA (Grupo Independente de Avaliação do Impacto Ambiental), um coletivo científico-cidadão que se organizou através da internet para fazer uma análise colaborativa do impacto ambiental resultante do rompimento da barragem de rejeito, cria plataforma para divulgação de análises e resultados. Lá, pode-se contribuir para o projeto como profissional, (e para isso basta se cadastrar), através de doações financeiras ou disponibilizando estrutura e laboratórios para análise de material.
Fernanda Regaldo
Editora da PISEAGRAMA.
Francisca Caporali
Artista e idealizadora do JA.CA
Paula Lobato
Editora da PISEAGRAMA.Roberto Andrés
Um dos fundadores da PISEAGRAMA, foi editor da revista de 2010 a 2020.
Como citar
ANDRÉS, Roberto; CAPORALI, Francisca; LOBATO, Paula; REGALDO, Fernanda. Boletim da lama tóxica n.2. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, seção Extra! [conteúdo exclusivo online], 24 nov. 2015.