CAMINHAR É UM
ATO POLÍTICO
Will Self
Ela vagueia pelas ruas da cidade, seus olhos agora estão sem foco – absorvendo uma confusão de paralelogramos cinzas, marrons e vermelhos que ela sabe serem esmagadoramente pesados, mas que, ainda assim, sente serem tão insubstanciais quanto sementes de dente-de-leão. No momento seguinte, seus olhos estão retidos nas faces daqueles que passam por ela com tal fixidez que ela sente que, caso se concentre numa só fisionomia, com apenas um leve esforço, poderia deduzir tudo sobre aquele indivíduo: sua idade, ocupação, vida sexual, suas afiliações políticas, os nomes de seus familiares e amigos. Por milésimos de segundo ela é tomada pela singularidade da personalidade daquele indivíduo – e então ele se mistura mais uma vez à multidão. Na via ao seu lado, o tráfego: ônibus assobiam, caminhões rangem, carros passam, motocicletas desviam – ainda assim, não há qualquer ruído mecânico. Esses paralelogramos de aço se intercalam, embaralham-se e encaixam-se acompanhados de sons eletrônicos, batidas, balbucios e vibrações – uma trilha sonora que nossa pedestre coreografa em meio ao tráfego de pessoas e de veículos. Seus hábeis olhos dardejantes costuram perfeitamente uma ordem a partir do caos, de maneira que tudo à sua volta entra em seu ritmo divinamente ordenado. Ela está completamente alheia: não poderia dizer o nome de uma única rua ou de algum notável edifício.
Ela não sabe onde está, mas, ainda assim, seu percurso é uma trajetória perfeitamente planejada através do espaço urbano. Ela olha para a reluzente preciosidade na palma de sua mão e então figuras se intercalam, se embaralham e se encaixam em resposta aos toques e cliques ritmados de seus dedos. O objeto lhe diz aonde ir e, quando o coloca em seu ouvido, a orienta para que ela possa comandar suas pernas vacilantes que a levam para a direita, para a esquerda, para frente, até que, enfim, surge um rosto que ela reconhece – será? Sem que ela queira, sua idade, sua ocupação, sua vida sexual, suas afiliações políticas, os nomes de seus familiares e amigos… Tudo isso vem à tona. E ainda assim, nos milissegundos que antecedem o encontro, ela é tomada por uma terrível sensação de que a personalidade dele é não mais que um estereótipo. Então ele é libertado da multidão para os seus braços. “Desculpe-me pelo atraso”, ela diz ofegante – e sabe que está exatamente três quilos acima do peso. “Foram quilômetros para chegar do metrô até aqui.” Na verdade, ela havia caminhado precisamente 723 metros.
Espero que a descrição acima seja tomada pelo que é: um relato levemente poético do estado mental de uma jovem comum buscando se deslocar no espaço urbano. Suas reações aos outros moradores da cidade, ao tráfego, à tentativa de encontrar seu caminho usando um GPS portátil enquanto escuta música em seu MP3 são bem comuns, mas, ainda assim, organizadas dessa maneira, parecem-me indiscutivelmente análogas a um estado clínico definido como psicótico. Como no caso de um psicótico, a concepção de realidade de nossa jovem mulher diverge radicalmente de seu entorno: ela está cercada por prédios de verdade com uma nomenclatura bem definida e compreensível; as pessoas pelas quais ela passa não são clones e tampouco seus conhecidos, mas uma massa de estranhos; as pessoas e seus veículos não se movem em sincronia com a música que escuta; e, finalmente, sua percepção das distâncias está distorcida, ao mesmo tempo em que sua habilidade para se deslocar depende de sistemas externos à sua própria mente que, mesmo com toda sua eficácia, são tão obscuros para ela quanto os rituais mágicos de um xamã. De fato, desde que o encontro com seu namorado aconteça, não fará nenhuma diferença para nossa jovem se ele ocorrer a partir da consulta a um amuleto ou através de qualquer outro artifício esotérico ou, ainda, ao acaso.
Que o nosso modo de vida na sociedade industrial – e agora pós-industrial – está, num certo sentido, profundamente desordenado não é, de maneira alguma, uma observação recente. Já na década de 1840, Friedrich Engels nota a “indiferença brutal, o inexorável isolamento de cada um em seus próprios interesses” que “se tornam tão mais desprezíveis e ofensivos quanto mais os indivíduos se apertam em um espaço limitado”. Aquilo que Engels caracterizou como um princípio fundamental de qualquer sociedade, todavia, “em nenhum outro lugar esteve tão desavergonhadamente descarado, tão consciente quanto na aglomeração das grandes cidades”.
Vinte anos antes, Thomas de Quincey já havia percebido na grande agitação das vias públicas londrinas uma alteração fundamental na natureza dos vínculos humanos. Quando adolescente, fugindo pela cidade, ele fora salvo da fome nas ruas por uma jovem garota – Ann – com quem passou algumas semanas. No momento de se despedirem, ele combinara de tentar encontrá-la na esquina da rua Titchfield em dada hora da noite. Se algum dos dois não pudesse comparecer ao encontro, combinaram que tentariam novamente na noite seguinte. Entretanto, após muitas noites de espera, Ann não aparecera e, embora ele tenha procurado por ela pela cidade, De Quincey nunca mais voltou a vê-la. Ele afirma: “Isso, entre os problemas que a maioria dos homens enfrenta na vida, foi minha maior aflição. Se ela sobrevivera, sem dúvida nós devemos ter, vez ou outra, estado à procura um do outro num mesmo instante pelos imensos labirintos de Londres.”
Você poderia argumentar que, se De Quincey e Ann tivessem acesso à internet, eles certamente poderiam ter se encontrado. Ou ainda que os imensos labirintos de Londres – que, àquela época, tinha uma população de cerca de um oitavo da população atual – teriam se rendido tão facilmente quanto paredes cenográficas quebradas pelos protagonistas de algum comercial televisivo de telefone celular, concebido justamente para demonstrar que a complexidade do espaço urbano é anulada pela magia tecnológica. De Quincey afirma que seu fracasso em encontrar Ann foi sua “maior aflição” e, ao dizê-lo, ele parece fazer com que sua perda seja emblemática do abandono dos vínculos próximos pela sociedade. Ele perguntou a várias pessoas pelo paradeiro de Ann, mas, na cidade, o que conta – o que é mensurável – é a multidão; o indivíduo – principalmente o indivíduo feminino e pobre – não conta nada.
No conto de Edgar Alan Poe intitulado “O homem da multidão”, publicado em 1840, o narrador anônimo fica inicialmente fascinado por uma fisionomia particular: “um semblante que de imediato se impôs fortemente à minha atenção, dada a absoluta idiossincrasia de sua expressão. Nunca vira coisa alguma que se lhe assemelhasse, nem de longe. Lembro-me bem de que meu primeiro pensamento, ao vê-lo, foi o de que, tivesse-o conhecido Retzch [sic], não haveria de querer outro modelo para as suas encarnações pictóricas do Demônio”. Você não precisa estar familiarizado com as gravuras de Moritz Retzsch (1779-1857) para entender o que Poe estava sugerindo nessa passagem. Principalmente porque até aquele momento os rostos daqueles pelos quais o narrador passara nas ruas fervilhantes de Londres haviam sido descritos apenas como diferentes tipos – o chamado Homem da Multidão é o primeiro indivíduo com o qual ele encontra por acaso.
Entretanto – e, nesse aspecto, Poe ironicamente previu todo o senso de alienação urbana do século XX –, à medida que o narrador segue esse homem singular, ele se torna, lentamente, mas de maneira contundente, consciente de que seu alvo é incapaz de existir separado da multidão e de que a assombrada e diabólica expressão e a envelhecida aparência são resultado da necessidade desse homem de estar sempre entre outras pessoas. É esta a epígrafe de La Bruyère que Poe escolhe para “O Homem da Multidão”: “Ce grand malheur, de ne pouvoir être seul” (Esse grande mal, ser incapaz de estar sozinho). Alguns podem argumentar que a cidade nos oferece uma experiência libertadora. Libertando-nos da supervisão – moral e política – de pequenas comunidades fechadas, a existência urbana favoreceria o crescimento pessoal e, consequentemente, uma boa saúde mental. Os exemplos de Engels, De Quincey e Poe se situam em uma era de rápida urbanização, num momento em que a paisagem urbana ainda era passível de ser atravessada a pé. Seria muito fantasioso sugerir que a genialidade desses autores do início do século XIX foi antecipar as conurbações ocidentais do início do século XXI, nas quais a vigilância da multidão se dá através de circuitos fechados de TV apenas esporádica e aleatoriamente monitorados, enquanto a distância e a orientação no espaço são abstraídas do plano físico?
Acho que não. O narrador anônimo de Poe é incapaz de estar sozinho em um sentido social – incapaz de experimentar a solidão, dependendo, devido a seu próprio caráter, da massa urbana moderna. Nossa pedestre, por outro lado, é incapaz de experimentar estar sozinha no espaço: não sabendo nunca muito bem sua localização e pouco preparada para caminhar através de boa parte da cidade por vontade própria, ela está condenada a uma existência espacial socializada.
Em Wanderlust, sua magistral história sobre o ato de caminhar, Rebecca Solnit escreve sobre suas próprias aventuras durante passeios noturnos em São Francisco: “Eu fui aconselhada a ficar em casa à noite, a usar roupas largas, a cobrir ou cortar meu cabelo, a tentar parecer um homem, a mudar-me para um lugar mais caro, a tomar táxis, a comprar um carro, a me deslocar em grupos, a arranjar um homem para me escoltar – todas as versões modernas das muralhas gregas e dos véus assírios.” A autora então constata que “muitas mulheres foram socialmente educadas para saberem seus devidos lugares de uma maneira tão bem sucedida que escolheram vidas mais conservadoras e gregárias sem ao menos perceber essa escolha. O desejo de caminhar sozinha foi aniquilado nessas mulheres…” Mais à frente, Solnit observa que “atualmente homens negros são vistos como as mulheres que trabalhavam eram vistas um século atrás: como uma categoria criminosa quando presente em espaços públicos”.
O filósofo Epicuro defendia que o livre-arbítrio é apenas uma sensação ilusória que experimentamos quando as ações necessárias para nós em dadas circunstâncias fortuitamente coincidem com o que desejamos. Acho que isso caracteriza perfeitamente a conscientização espacial psicótica da vasta maioria de habitantes urbanos contemporâneos. É como se as ameaças existenciais que afligem as mulheres e aquelas sancionadas pelo Estado que recaem, particularmente, sobre os jovens negros tivessem sido internalizadas até por aqueles primeiros – os habitantes urbanos em sua maioria: brancos, de idade mediana e de classe média – que não têm razão alguma para se sentirem tão oprimidos. Sendo franco: desprovidos de meios de transporte mecanizados – carros, ônibus e trens – e sem o auxílio da tecnologia, a maioria dos moradores das cidades não sabe bem onde está e nem é capaz de se deslocar para chegar a algum outro lugar usando suas próprias habilidades.
Nem mesmo são capazes de formular o desejo de realizar uma coisa dessa natureza. Os trajetos feitos para trabalhar, para comprar, para se divertir, para interagir com seus círculos sociais são formas funcionais e limitadas de utilização do ambiente construído. Qualquer caminhada que seja fruto de um desejo, não planejada, dificilmente escapará desses contextos, sendo o mais notório exemplo o próprio shopping center. Não obstante, pouco menos de um século atrás, 90% dos trajetos dos londrinos menores em distância do que dez quilômetros ainda eram feitos a pé. Muitas dessas breves viagens eram, provavelmente, idas para o trabalho e retorno para casa, mas mesmo uma boa caminhada até o local de trabalho envolve um domínio físico do ambiente construído e o exercício de habilidades de orientação.
Ano após ano, o número de trajetos feitos a pé diminui. De fato, se formos seguir ao pé da letra as projeções atuais, o andar a pé terá se extinguido completamente como meio de transporte até meados deste século. Não mais submetida à medida do homem – ou da mulher – ou a seu olhar, a cidade adquire contornos distorcidos: a arquitetura definida por Rem Koolhaas como junkspace parte do princípio de que somente um grande corredor viário pode ser uma destinação viável – especialmente se houver um caixa eletrônico por ali. A vida suburbana é a forma mais tangível desse descuido: um conjunto de locações que não mais transmite qualquer sentimento de pertencimento.
De Borges, podemos lembrar o famoso “Mapa do Império cujo tamanho era aquele do Império… Nos Desertos do Oeste, ainda hoje, há Ruínas Esfarrapadas desse Mapa, habitado por Animais e Pedintes; em toda a Terra não há outra Relíquia das Disciplinas da Geografia.”
Os animais e pedintes de Borges são aqueles que ainda buscam as disciplinas da geografia física. Andar na cidade e em seus arredores é, num sentido muito potente, usá-la. O flâneur contemporâneo é por natureza e inclinação uma força democratizante que busca igualdade de acesso, liberdade de movimento e a dissolução dos controles corporativo e estatal.
Will Self
Jornalista inglês, é conhecido por sua escrita satírica, grotesca e fantástica.
Como citar
SELF, Will. Caminhar é um ato político. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, seção Extra! [conteúdo exclusivo online], 07 mai. 2015.