CIDADES PARA
PESSOAS
Jan Gehl
Em março de 2015, Jan Gehl lançou em Berlim seu livro Cidades para Pessoas.
A fala a seguir foi extraída do seminário de lançamento e traduzida com exclusividade por PISEAGRAMA. Nela, Gehl descreve sua trajetória como pesquisador e seus esforços ao longo dos últimos cinquenta anos para que a escala humana não passe despercebida no planejamento urbano.
Talvez eu pudesse começar relatando a vocês uma pequena história de uma conferência da qual eu participei na Inglaterra, em que um crítico de arquitetura disse algo do tipo: “Eu sinto muito por vocês arquitetos, porque seu meio de comunicação ainda é a fotografia e os desenhos em duas dimensões. Assim, vocês sempre focam na forma. Mas isso não é arquitetura, é escultura.” Arquitetura é a interação entre vida e forma, e só teremos boa arquitetura se essa interação for bem organizada. Essa é a diferença entre escultura e arquitetura, mas os arquitetos estão sempre correndo atrás da forma e se esquecem da vida. Eu sei que a forma é consideravelmente mais fácil de estudar e pesquisar do que a vida. Mas entender a maneira como uma influencia a outra é fundamental para uma boa arquitetura.
O assunto da noite de hoje é como as cidades da sociedade global estão cada vez mais competindo umas com as outras em habitabilidade, o que significa qualidade de vida para as pessoas. E o meu argumento é que ter uma estratégia de planejamento urbano voltada para as pessoas é uma maneira eficiente de criar qualidade de vida nas cidades.
Em primeiro lugar, vou contar a vocês uma versão curta da minha história de vida. Eu me formei como arquiteto em 1960, o que significa que eu fui treinado como um bom modernista durante o anos cinquenta. Naquele momento, Brasília era a última moda. Nós passávamos horas fazendo plantas de cidades, nos debruçando sobre as maquetes, movendo objetos de um lugar para o outro até que, de repente: “Uau, temos uma cidade!”. Claro que o modernismo foi um período muito dramático. Havia uma noção de que tudo nas cidades era ruim. As ruas eram ruins, as praças eram ruins, as cidades eram ruins. O bom eram os edifícios independentes as esplanadas de grama. E eu fui treinado dessa forma.
Depois, saí da escola de arquitetura e estava prestes a fazer todas essas coisas maravilhosas que eu tinha aprendido quando me casei com uma psicóloga. E ela me levou a questionamentos muito interessantes: por que vocês arquitetos não estão interessados nas pessoas? Por que vocês arquitetos não aprendem nada sobre pessoas na sua formação? Por que os urbanistas não sabem dessas coisas? Nem vocês, nem eles e nem os engenheiros de tráfego! Nem mesmo os paisagistas, que trabalham de joelhos o tempo todo, sabem nada sobre pessoas. E ainda que as pessoas não façam parte da grade escolar de vocês, as formas que vocês fazem e constroem influenciam a vida das pessoas enormemente! Por que vocês não sabem nada sobre isso?
Essas não eram coisas fáceis para um jovem arquiteto daquela época discutir. Mas nós dois decidimos investigar essa área e tentar descobrir mais sobre o assunto. No meu caso, tive que voltar à escola por mais quarenta anos para estudar como as pessoas usam a cidade e como a cidade influencia a vida das pessoas. No ano que vem completam-se cinquenta anos da minha volta à universidade em 1966, e é fantástico para um ancião como eu perceber que minha singela tese de doutorado está agora espalhada pelo mundo.
Já num estágio mais avançado da minha vida, muitos prefeitos me procuraram para dizer: “Você fica aí criticando nosso planejamento urbano, mas será que não poderia nos dizer o que fazer?” Isso me encorajou, já com 63 anos nas costas, a abrir uma empresa, a Gehl Architects, que oferece consultoria às cidades e aos urbanistas que gostariam de ter cidades amigáveis, habitáveis, sustentáveis e saudáveis. E em apenas quinze anos de trabalho, nós vimos crescer o interesse pelo assunto em todas as partes do mundo. Do Norte (em cidades como Nuuk, na Groelândia, com população de quinze mil habitantes e baixíssimas temperaturas) ao Sul (como em Christchurch, na Nova Zelândia) – já trabalhamos em muitas partes do mundo. E vemos um crescente interesse em cuidar melhor das pessoas no planejamento urbano, o que é bem impressionante.
Por muitos anos na Dinamarca nós tivemos uma fundação riquíssima voltada para o planejamento urbano e o ambiente construído. E eles nos procuraram muito cedo e disseram: “Achamos que esse planejamento urbano humanista é muito interessante. Vocês precisam de dinheiro?” E continuaram: “Será que vocês não poderiam se tornar um centro de pesquisa? Será que vocês não poderiam ter mais doutores ou poderiam fazer isso ou aquilo?” Eu sempre achei que eles eram pessoas adoráveis. E eles depois disseram: “Jan, nós adoraríamos que você se sentasse e escrevesse tudo que você sabe sobre pessoas e cidades enquanto você ainda pode lembrar”. E eu disse: “Vocês não podem ver que eu não tenho tempo?” E eles diziam: “E será que o tempo não é uma questão do número de assistentes que você precisa?”. E então eles começaram a me arranjar um monte de assistentes e, de repente, eu tinha mais tempo. E aí nós fizemos este livro. E mais uma vez, para o meu prazer, descobri que havia um interesse imenso por este tipo de conhecimento por todo o lado. Em apenas cinco anos eu vi este humilde livro sendo publicado nas línguas mais engraçadas que vocês podem imaginar.
Temos, agora, até mesmo uma versão em Grego. Quando os gregos me telefonaram e disseram que adorariam publicar meu novo livro eu disse: “Não, não! Vocês não deveriam usar seu dinheiro para o meu livro. Vocês têm coisas mais importantes para fazer com seu dinheiro”. Mas eles disseram: “Não, não se preocupe, a Embaixada Dinamarquesa vai pagar por tudo”. Agora, os gregos também têm o livro e o embaixador dinamarquês me contou que eles precisam aprender muito, e logo, sobre caminhar e pedalar.
Eu devo dizer que é um privilégio para qualquer acadêmico ou pessoa trabalhando com arquitetura e urbanismo ter a chance de sentar depois de cinquenta anos de trabalho e ver o que aconteceu de fato. Hoje eu vejo com mais clareza que costumava haver dois paradigmas muito fortes sobre o planejamento urbano e que agora há um terceiro, completamente novo, que tem muito a ver com o livro e com o que é dito nele.
O primeiro paradigma, que teve início por volta de 1960, está relacionado com a invasão do automóvel em números gigantescos nas cidades ocidentais. Em pouquíssimo tempo, eles preencheram todos os espaços existentes nas cidades e influenciaram a infraestrutura dos novos distritos urbanos. Os novos distritos e subúrbios foram feitos, em sua grande maioria, para fazer os carros felizes. A partir de então, toda cidade no mundo adquiriu, muito rapidamente, fantásticos e eficientes departamentos de transporte ou de tráfego. E com isso, vimos o quão habilidosos e bons eram aos engenheiros de tráfego. Eles sabiam que para fazer um bom planejamento era preciso ter dados sobre aquilo que estavam planejando. Então eles contavam o número de carros todos os anos, ou talvez até todos os dias, e sabiam tudo sobre o tráfego dos anos passados e do ano atual, e do próximo… eles faziam programas, faziam modelos digitais, eles podiam fazer tudo. – Eram pessoas maravilhosas, esses engenheiros de tráfego.
Mas então eu percebi que não havia uma única cidade no mundo com um departamento para pedestres e para a vida pública; não havia uma cidade sequer que acumulasse dados sobre como as pessoas usam sua cidade. Nós sabíamos tudo sobre o tráfego de carros, mas nada sobre as pessoas. E com o passar dos anos, isso levou a grandes impactos na cidade, porque você só cuida de e planeja para aquilo que você conhece. Aquilo que você não conhece passa despercebido. E as pessoas, por muitos anos, passaram despercebidas.
Essa situação começa a ser passado agora. Muitas cidades começaram a sistematizar seu trabalho pelas pessoas de uma maneira completamente diferente. Talvez até copiando os eficientes e maravilhosos engenheiros de tráfego. Mas o que vimos com a invasão do carro é que, gradualmente, as condições para as pessoas foram erodidas e que, por muitos anos, nós esquecemos o que era espaço público de qualidade e boa qualidade de vida para as pessoas nas cidades, e comemorávamos o simples fato de sobrevivermos um dia após o outro.
Além disso, com a invasão do carro começamos a ter uma outra escala de arquitetura. No passado, as cidades eram construídas para as pessoas, em uma escala humana, que eu chamo de arquitetura a cinco quilômetros por hora. Isso significa espaços menores, sinalizações menores, à altura do nosso olhar. Uma arquitetura sensual. Mas, de repente, surgiu a necessidade de se produzir arquitetura a sessenta quilômetros por hora, com espaços grandes, sinalizações grandes, com quase ou nenhuma atenção para o detalhe. Afinal, nesse contexto, nem conseguimos enxergar as pessoas. Eu penso que essa arquitetura a sessenta quilômetros por hora nos confundiu profundamente, levando-nos a esquecer a arquitetura a cinco quilômetros por hora e a escala humana.
O segundo paradigma tem a ver com o modernismo, que eu já mencionei. Não foi a invenção do modernismo em si, mas o fato de que o modernismo começou a ser usado em toda parte do mundo, fosse na reconstrução ou na expansão de cidades após a Segunda Guerra, fosse depois da recuperação da economia e na expansão das cidades ao redor do mundo. Claro, o modernismo começou no fim dos anos vinte, e durante os anos trinta foram formuladas suas cartas de princípio e tudo mais, mas tudo aquilo ficou parado, encubado, por causa da Segunda Guerra Mundial. Naquela época, surgiram algumas ideias interessantíssimas, como as de Corbusier, que chegou a pensar que para melhorar Paris era preciso demolir tudo para construir edifícios de 24 andares, dos quais se poderia apreciar os gramados da cidade e ser mais feliz. Eram ideias muito radicais. Seus manifestos diziam que as cidades eram ruins, as ruas eram ruins, tudo que sabíamos sobre cidades não era bom porque a partir daquele momento tínhamos o “Homem Moderno”, que deveria ter uma “Arquitetura Moderna”, um planejamento urbano moderno, tudo moderno. E, portanto, deveríamos esquecer o passado, todo o conhecimento sobre o assentamento de humanos que vínhamos acumulando por anos. “Tudo agora é novo”.
E aqui está uma pequena descrição do que de fato aconteceu depois dos anos 60: as cidades se expandiram e os urbanistas literalmente passaram a entrar em aeronaves para que pudessem ver o terreno inteiro. Eles voavam de helicóptero e passeavam pelas coberturas de prédios, mas nenhum profissional foi chamado para olhar de perto as pessoas que habitavam esses lugares. Essa escala passou despercebida. Muitos poderiam pensar que os paisagistas talvez estivessem preocupados com as pessoas, mas eles também não aprendiam muito sobre elas. Eles estavam mais interessados em um monte de outras coisas, como forma, ecologia e plantas. De uma maneira geral, a escala humana era sempre esquecida nessas novas áreas que eram construídas.
Quando olhamos para as típicas fotos de arquitetos modernistas trabalhando sobre maquetes, quase conseguimos ouvi-los dizer: “Não há nenhum prédio oval, precisamos ter pelo menos dois prédios ovais.” “E esses cubos aqui? Não seria fantástico se girássemos eles em 45 graus?” “Sim, seria!” E aí você começa a pensar nas pessoas que teriam que caminhar através desses prédios. Será que os 45 graus as tornariam mais felizes? E o pior é que essa ainda é a forma que planejamento urbano é feito em muitos lugares, como se fosse uma composição, e não algo que diz respeito a cidades onde vivem pessoas.
Em meus livros eu sou um tanto duro com os modernistas. Sempre digo que se houve um momento em que profissionais ganharam dinheiro para garantir que as pessoas não gostassem de usar os espaços que eles concebiam, esse momento foi o modernismo. Há alguns lugares em que esse caso não se aplica, mas na maioria dos lugares, foi verdade. Outro subproduto imprevisto dos modernistas foi mais uma confusão de escala, porque a partir daquele momento era possível construir prédios enormes, tudo era maior. Os apartamentos eram maiores, as fábricas eram maiores, então por que não fazer os espaços públicos maiores também? Esse foi outro equívoco de escala. Mais uma vez se esqueceu o que é uma boa escala para as pessoas, para os Homo Sapiens, que permanecem com a mesma altura e com os mesmos sentidos que sempre tiveram. Nós ainda beijamos da mesma maneira, fazemos um monte de coisas da mesma maneira que sempre fizemos mas, de repente, passamos a ter que fazê-las em circunstâncias físicas completamente diferentes de tudo que desenvolvemos no passado.
Por outro lado, é muito evidente hoje que, depois de todo esse tempo, temos um novo, terceiro paradigma sendo concebido. Se vocês perguntarem a qualquer prefeito o que ele pensa sobre cidades habitáveis, sustentáveis e saudáveis, ele se apressará em responder: “Essa é a minha política, é para essa direção que apontamos, essa é a coisa importante a se fazer”. Toda essa conversa sobre pessoas se tornou muito popular hoje em dia. A primeira coisa que percebemos sobre habitabilidade é que pessoas geralmente não gostam de urbanistas, e elas não gostam de novos planos urbanos. Mas nós devemos e podemos fazer mais pelas pessoas. Outra coisa que percebemos é que temos que fazer consideravelmente mais sobre sustentabilidade, e também sobre saúde. Essas são fortes motivações para novos modos de olhar para cidades.
Hoje conhecemos um número de qualidades que poderíamos ter em nossos assentamentos para torná-los mais habitáveis, o que tem a ver com as oportunidades de encontro entre as pessoas e a diversidade do tipo de vida que nós, nossos filhos e nossos vizinhos levamos. Em nossa sociedade, em que temos cada vez mais tempo livre, e vivemos cada vez mais tempo, nós moramos em casas cada vez menores, e assistimos também ao aumento da vida privada. O mercado nos diz que podemos fazer tudo por nós mesmos, que devemos comprar uma casa, um carro, uma geladeira. Essa vida privada é muito idealizada. Mas não é difícil perceber que o homem é um animal social, e através da história a maior alegria do homem foi encontrar outras pessoas.
Eu tenho um grande prazer em olhar para fora e ver as pessoas. Vida e pessoas são os maiores atrativos de uma cidade e, por meio do modernismo e da cultura do automóvel, nós matamos muita coisa, muita vida. E hoje estamos precisando, em nome da democracia e da inclusão social, encontrar os outros.
Outra questão é a sustentabilidade. Sabemos que a maioria dos problemas climáticos que vivenciamos tem origem nas cidades. Alguns prefeitos de todas as partes do mundo estão se encontrando regularmente para discutir soluções para as cidades nesse sentido. E, claro, podemos perceber que se caminhamos e pedalamos mais, fazemos bem para o clima. Mas se quisermos nos livrar da dependência pesada do carro, é necessário ter um transporte público extremamente maravilhoso, para que possamos caminhar ou pedalar, por exemplo, até uma estação de trem. Afinal, deslocamentos a pé e de bicicleta se articulam com o transporte público nas vizinhanças e cidades mais voltadas para as pessoas.
Então temos a questão da saúde. Percebemos que há cinquenta anos fazemos um planejamento urbano que gradualmente convida pessoas a não se moverem. Podemos deslocar as pessoas para baixo e para cima em escadas rolantes, e podemos movê-las em carros, e as pessoas podem viver uma vida inteira praticamente sem se mexer. Em algumas cidades americanas, levaram isso longe demais. Conheci uma cidade no Mississipi que não tem mais calçadas. Afinal de contas, quem as usaria? No shopping dessa cidade existe até uma placa que diz: “As pessoas podem se exercitar aqui todos os dias de 8h às 10h”. Antes de fazer compras, as pessoas podem andar para cima e para baixo no shopping, como aconselhado por seus médicos! Bem sabemos que hoje nos Estados Unidos há mais pessoas morrendo por não se mexerem do que por fumarem. Alguns médicos com quem já conversei afirmam que se caminhássemos ou andássemos de bicicleta por uma hora por dia, poderíamos ter sete anos a mais de vida, em comparação com aqueles que não se mexem. Não precisamos de muito para, através do planejamento urbano, tornar as caminhadas e pedaladas muito mais naturais e atraentes.
Sem contar que esses são hábitos muito mais baratos para a sociedade. Essa é a política de saúde mais barata que podemos ter. Até mesmo a Organização Mundial da Saúde já comunica oficialmente, como uma estratégia mundial, que as pessoas deveriam caminhar e andar de bicicleta em seu cotidiano.
Então, resumindo, precisamos de cidades habitáveis, vibrantes, sustentáveis e saudáveis. E se considerarmos as pessoas com cuidado nos processos de planejamento urbano, vamos contemplar todas essas questões. Isso é, basicamente, o que eu tentei comunicar no meu livro.
Agora, vou falar um pouco sobre as cidades que podemos usar como exemplo para essas questões. A primeira poderia ser a minha cidade, Copenhague. Eles começaram a desestimular o uso do automóvel muito cedo, em 1962. E houve na época toda essa discussão que eu venho tendo há cinquenta anos em toda cidade na qual eu trabalho: sempre me dizem que eu preciso entender que tal região, tal cidade, tal clima simplesmente não combina com toda essa história de ter espaços amigáveis para as pessoas, que ali não vai funcionar como na Dinamarca. Mas em Copenhague as pessoas também diziam: “Nós somos dinamarqueses, não somos italianos. Jamais nos interessaremos pela vida urbana”. No entanto, eles inibiram o uso do carro mesmo assim, e em menos de um ano nós já éramos todos meio italianos. E, com o passar dos anos, nós nos tornamos cada vez mais italianos. Simplesmente porque todos nós somos pessoas. Copenhague foi o primeiro lugar no mundo onde estudos sistemáticos sobre pessoas foram feitos, publicados e usados pela gestão pública da cidade para políticas urbanas.
Quando eu me aposentei como professor da escola de arquitetura, recebi uma simpática carta do prefeito dizendo: “Se vocês da universidade não tivessem nos fornecido todos esses documentos, nós políticos nunca teríamos nos arriscado a fazer de Copenhague a cidade mais habitável do mundo”. Eles admitiram que precisaram desses documentos e estudos para que essas transformações acontecessem.
Por cinquenta anos, Copenhague vem melhorando a qualidade de vida na cidade para pessoas a cada dia que passa. E quando olho para trás, consigo ver quatro faces distintas desse desenvolvimento. A primeira delas foi criar espaço para caminhar. Nós precisamos caminhar por nossas cidades, precisamos andar para comprar nas lojas, para que não precisemos dos carros. Isso foi nos vinte primeiros anos. Fizemos ruas para pedestres, não apenas ruas pequenas e estreitas, mas imensas.
Mas à medida em que as pessoas viajavam para outros países e outras cidades agradáveis, percebíamos que se você quer ter um bom momento de lazer, você deve poder se sentar a qualquer momento para tomar um cappuccino, por exemplo, o que fez com que nos interessássemos muito por transformar as praças em lugares para as pessoas. (E isso fez florescer a cultura do cappuccino!) A partir de então, o foco passou a ser fazer da cidade um lugar para a recreação. E então chegamos à terceira face, que foi, ao longo dos últimos quinze anos, dar cada vez mais ênfase às atividades recreativas, como esportes, natação, etc. Isso tem a ver com promover diversão para cidadãos de qualquer idade.
Agora nós temos essas três faces: temos ruas, temos praças e temos diversão, e vocês podem encontrá-las em todos os cantos da cidade. Estamos indo nessa direção, em direção à quarta face. Nossa cidade inteira, não apenas o centro da cidade, deve ser amigável para as pessoas. Estamos estudando tudo o que pode ser feito nesse sentido em cada bairro. Em 2009, foi aprovada uma meta oficial para a política urbana: nós seremos a melhor cidade no mundo para pessoas. Dentro dessa meta, há uma série de objetivos, cujo alcance é checado cuidadosamente a cada ano.
Fizemos também algumas coisas pelas bicicletas e temos agora uma rede completa de ciclovias, segregada dos carros em vários pontos, que funcionam para todas as idades. Temos de crianças a avós pedalando pela cidade. E isso gradualmente se tornou um sistema completo de transporte. Uma em cada três famílias em Copenhague possui uma “Cargo Bike” com a qual é possível levar as crianças para o jardim de infância e realizar outras atividades. E eu posso afirmar que as crianças preferem muito mais sentar numa “Cargo Bike” do que ficar amarradas ao banco traseiro de um carro. Na verdade, você pode transportar tudo o quiser em bicicletas. Em Copenhague, os gestores sabem que a maior questão em segurança para bicicletas são os cruzamentos, e para isso foram criados vários cruzamentos especiais. Há também luzes de trânsito especiais que acendem de seis a dez segundos mais cedo que a luzes para os carros, para que as bicicletas possam começar a atravessar antes deles. E como para que o sistema cicloviário funcione ele tem que estar integrado com todo o sistema de transporte, os taxis são obrigados a levar bicicletas, e todos os trens carregam bicicletas de graça.
Quando eu e minha esposa vamos visitar nosso filho, pedalamos dois quilômetros até a estação, colocamos as bicicletas no trem, viajamos por vinte quilômetros e em seguida pedalamos mais dois quilômetros até chegar a sua casa. Tomamos ar fresco e nós exercitamos e chegamos ao nosso destino sem ter que tocar em um carro. Ao longo dos anos, isso tem se tornado uma cultura, a cultura da bicicleta. Todos têm uma bicicleta: da mulher grávida ao homem de negócios. Até mesmo o príncipe. Alcançamos a taxa de 41% de pessoas indo ao trabalho de bicicleta. Isso significa que temos muito menos tráfego de veículos que em qualquer outra cidade do mesmo tamanho (Copenhagen tem um milhão e meio de habitantes).
Vou contar uma pequena história sobre Copenhagen. Minha esposa e eu celebramos recentemente nosso 45º aniversário de casamento, e nós moramos a oito quilômetros do centro da cidade. Era uma tarde agradável de um belo dia de agosto, e pensamos em pegar nossas bicicletas para irmos ao centro para encontrar um bom café na calçada onde pudéssemos comer uma boa comida. Então, aos setenta anos de idade, pegamos nossas bicicletas e pedalamos um ao lado do outro por seguras e confortáveis ciclovias. Pedalamos por todo o centro até encontrar um bom lugar para jantar. Então jantamos e tomamos um pouco de vinho – o que não é problema algum se você está de bicicleta – e voltamos para casa. Quando chegamos em casa percebemos que esse casal de setenta anos de idade tinha pedalado ao todo 19.8 quilômetros, no dia do seu aniversário de casamento. E quando conversamos sobre isso, percebemos que isso jamais poderia ter acontecido na época em que nos casamos. Isso são frutos de cinquenta anos de trabalho. E percebemos também que é um privilégio viver em uma cidade que a cada dia está um pouco melhor que no dia anterior. É maravilhoso!
“Ah, então vocês não têm problemas em Copenhague?” Sim, nós temos problemas em Copenhague, nós agora temos um problema seríssimo, que nos acompanha há dez anos, que é o congestionamento nas ciclovias. Esse é um problema fantástico! E o que você faz quando há congestionamento de bicicletas? Você duplica as ciclovias. Me disseram que essa era uma ótima economia de transporte porque uma faixa de ciclovia comporta cinco vezes mais pessoas que uma faixa para carros. Então se você tem bicicletas, é uma ótima política que você mantenha espaço para elas mesmo que você não tenha tanto espaço para estacionar carros. Há muitos esquemas para fazer mais espaço para mais bicicletas. E ainda queremos chegar a uma situação de 50% das pessoas indo para o trabalho de bicicleta diariamente. Para isso vamos ter que dobrar a capacidade das ciclofaixas locais.
Além de Copenhague, há outros bons exemplos. Melbourne é uma cidade com uma ótima experiência nesse sentido. Melbourne era famosa por ser impossível e tediosa. Era chamada de “doughnut”: algo sem nada no meio. Até que eles decidiram, durante os anos oitenta, que não aceitariam uma cidade morta naquele canto do mundo onde não há lá tantas outras cidades. Eles decidiram revigorar a cidade, fazê-la maravilhosa. Eu sei disso porque participei desse processo, que eles conduziram incrivelmente bem. Eles disseram: “Em Melbourne, as pessoas vão caminhar! E para isso, devemos encorajá-las a fazê-lo. Todas as calçadas devem ter no mínimo oito metros de largura, feitas de granito. E para caminhar, precisamos de sombra, então devemos ter árvores em abundância nas ruas, plantando 500 árvores por ano. E, para completar, implantaremos o melhor programa de mobiliário urbano do mundo.” E isso foi uma mudança fantástica para Melbourne. Se você anda por Melbourne hoje você tem uma atmosfera parecida com a de Paris, só que com um clima muito melhor. É um milagre o que eles fizeram. Eles costumavam ter mil pessoas morando no centro, e agora eles têm cerca de quinze mil pessoas morando na mesma área. Os supermercados voltaram dos subúrbios em direção ao centro, e esse é um processo que não tem fim. Também descobrimos que o número de empregos na cidade aumentou e a economia, de uma maneira geral, melhorou consideravelmente. Se você não sabe o que fazer, mude-se para Melbourne.
Se você olha as listas das cidades mais habitáveis do mundo é bem interessante ver Copenhagen e Melbourne: elas se revezam no topo das listas. Nos “top 10” dessas listas encontramos três cidades da Austrália e da Nova Zelândia, três cidades dos países nórdicos e três cidades de língua alemã, Viena, Munique e Zurique. E eu posso afirmar que quase todas essas cidades fizeram algo pelas pessoas em seu planejamento urbano.
E temos também Nova York. Em 2007, o prefeito de Nova York tomou iniciativa para fazer algo sobre as mudanças climáticas. “Eu serei o melhor e o primeiro. Em pouco tempo, Nova York será a metrópole mais sustentável do mundo”. Isso significava: enquanto ele ainda fosse o prefeito. Então ele fez esse planejamento fantástico que desestimulava o transporte por automóvel, privilegiando o metrô, a bicicleta. As ruas são largas, devem ter espaço para bicicletas. A primeira coisa que fizeram foi visitar Copenhague secretamente (porque Nova Iorque não pode se inspirar em pequenas cidades europeias!). Os responsáveis por transporte e planejamento pegaram duas bicicletas emprestadas e simplesmente não conseguiram mais largá-las. Eles andaram por todo lado, e no último dia, quando pegamos as bicicletas de volta no aeroporto, eles nos disseram: “Queremos uma cidade como esta. Quando vocês podem vir a Nova Iorque?”
Agora eles estão a todo vapor produzindo um sistema de ciclovias de seis mil quilômetros, que passa por várias avenidas centrais e nos bairros – Kings, Brooklyn, e por aí vai. E eles também perceberam que em Nova Iorque você pode caminhar e caminhar, sem que haja um banco sequer, ou cafés na calçada, ou boas praças: as pessoas apenas andam e andam, do metrô ao escritório. Então eles pensaram que talvez pudessem fazer alguns bulevares! Surgiu a ideia de fazer um Broadway Boulevard, e depois de um tempo foi considerado que talvez não precisassem da Broadway para tráfego de carros, e decidiram fechar a Broadway. Houve muitos protestos, com taxistas gritando, e o prefeito disse para que não se preocupassem, que aquilo era só um experimento. Depois de seis meses ele diria que aquele era o maior sucesso na história do planejamento urbano de Nova York e da Amércia do Norte, e que permaneceria daquele jeito. E agora eles têm 50 dessas praças construídas. Vocês sabem o que Frank Sinatra cantava sobre a Broadway… “If you can make it there, you can make it anywhere!”
Há também Moscou. O subprefeito de lá me procurou. “O que vocês estão fazendo em Nova York? Nós precisamos urgentemente disso em Moscou. Quando vocês podem vir?” E eu disse que já iria na segunda seguinte. Em Moscou nós tínhamos um grande problema: eles só andam de carro depois do colapso da União Soviética e do começo da economia livre capitalista. Libertar-se do comunismo significou comprar um carro, e estacioná-lo onde bem se quisesse, sem ter que pagar nada. Então Moscou passava por uma situação séria, porque não havia espaço suficiente para estacionamento. Eles decidiram que poderiam estacionar em todas as calçadas de qualquer rua, e isso deixava somente um metro para as pessoas caminharem. Não era nada bom.
Eles me perguntaram: “Quantos livros vocês escreveram? Nós vamos publicar eles todos!” E depois, em muito pouco tempo, a cidade de Moscou publicou todos os livros. E daí nós fomos contratados por Moscou para fazer um estudo de como a cidade poderia se tornar mais humana, e o prefeito nos deu doze meses para fazê-lo. Durante esse processo, eu tive algumas boas conversas com o prefeito, e ele disse: “Sim, talvez a ideia de estacionar nas calçadas das principais ruas de Moscou esteja impedindo as pessoas de andarem na cidade, e essa não é uma boa ideia”. Três meses depois eu voltei a Moscou e não havia mais carros nas calçadas, porque eles têm uma democracia muito eficiente, e se alguém se esquece das novas regras, o prefeito tem um carrinho que anda para cima e para baixo para pegar seu automóvel mal estacionado e levá-lo para a Sibéria.
Um ano e meio depois, quase não havia mais carros, há bancos para todos os lados, algumas das principais ruas se tornaram verdes, as propagandas que pipocaram durante anos desapareceram, e já é possível ver o Kremlin à distância. Eu poderia mostrar muitas fotos de Moscou antes e depois, é miraculoso o que aconteceu em tão pouco tempo. E agora, o prefeito de Moscou pode até ser encontrado em revistas e conferências, falando sobre a grande importância de ter cidades mais habitáveis para os cidadãos.
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PISEAGRAMA agradece à Jan Gehl, que gentilmente cedeu a palestra para tradução e publicação, e à Marcos L. Rosa, que intermediou o processo.
Jan Gehl
Sócio fundador da Gehl Architects, atua em diversos projetos que reorientam as cidades para as pessoas. O texto publicado corresponde aos dois primeiros capítulos de Life between buildings, publicado pela Island Press em 1987.
Como citar
GEHL, Jan. Cidades para pessoas. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, seção Extra! [conteúdo exclusivo online], 02 out. 2015.
PISEAGRAMA agradece à Jan Gehl, que gentilmente cedeu a palestra para tradução e publicação, e à Marcos L. Rosa, que intermediou o processo.