
CÓRREGOS
E NASCENTES
DO JATOBÁ
Conversa com Dona Ivana
Há 30 anos Dona Ivana, moradora de Belo Horizonte, cuida dos córregos e nascentes da região do Vale do Jatobá, ao sul da cidade. Dona Ivana nos guiou em uma visita ao córrego dos Leitões. Partimos da nascente, mantida limpa pelos esforços da comunidade, e caminhamos para dentro do bairro, onde o esgoto doméstico é despejado no rio. Este depoimento é fruto de uma conversa sobre seu trabalho cuidando de nascentes, educação ambiental e suas perspectivas para o futuro dos córregos urbanos.
Para mim educação ambiental não é só você cuidar das águas, não. Cuidar da água é o principal porque sem ela ninguém vive. Mas é tudo aquilo que tem ao seu entorno. Por exemplo, uma praça: é um privilégio para o povo, então o que custava cada um cuidar de sua porta, cada um varrer, pegar o lixo, plantar? Eu acho que isso aí ia ajudar o meio ambiente a ser mais agradável para todo mundo, mas infelizmente se um cuida outro destrói, ainda é uma polêmica muito grande. Todo dia eu varro minha porta e coloco lixo dentro do saco de lixo. As pessoas dizem que quem faz isso é quem não tem o que fazer, porque quem tem a obrigação de varrer a rua é a prefeitura. E tem mesmo, mas varre uma vez por semana. Daí nós vamos deixar o resto do tempo sujo? Eu acho assim: se minha porta está limpa é bom para mim e bom para quem vai passar. Então são coisas que eu acho que precisam mudar na população, as pessoas amadurecerem em relação aos seus direitos e deveres. Porque eu pago imposto, a obrigação da prefeitura é pegar o lixo na hora certa no dia certo, e a minha obrigação é também colocar na hora certa. O que acontece as vezes é que a gente sabe que o lixeiro passa por volta de nove ou dez horas, mas aí depois que ele passa vem a pessoa e põe a sacola de lixo, daí os cachorros rasgam e tudo suja sem necessidade. Então eu acho que isso é um problema de deveres. Você tem de ter a garantia do serviço pelo qual você paga, mas você também tem que dar sua parte de colaboração.
Claro que tem muita gente que tem feito sua parte, fazendo as coisas por elas mesmas. Naquela nascente aonde nós fomos, por exemplo, tem um grupo de pessoas da região que toda vez que o pessoal vai lá e suja eles recolhem o lixo. Não tem muito lixo lá para cima porque as pessoas limpam e recolhem tudo na sacola. É uma minoria mas já existe, são pessoas preocupadas com o meio ambiente. Agora eu acho que o meio ambiente não é só você pegar o lixo, é você também não jogar. A gente tem agora que conversar com os que jogam, com quem vai fazer piquenique e põe fogo. Que consciência esse indivíduo tem, para colocar fogo num santuário? Porque ali é um santuário, você vê os animais, muita orquídea, muita planta que tem ali, que as gerações futuras não vão conhecer mais.

Trilhas que margeiam o córrego do Leitão. Fotografia de Thiago Flores.
Eu acho que as escolas têm a obrigação de fazer a parte delas, a educação ainda é o melhor caminho. Lá na creche a gente tem um trabalho que a gente ensina as crianças a plantar. Cada uma tem o seu vasinho, e a criança acompanha o crescimento da planta, a semente germinando, a primeira folhinha que aparece. Ela passa a ter amor por aquele vasinho. Aí ela cuida da planta e se o coleguinha vier tirar a folha, ela briga. Eu acredito nesse trabalho. É de formiguinha? É! É uma gota d’água no oceano? Também é. Mas eu acho que quem aprende no berçário não esquece nunca mais. Eu acho que futuramente essas vão ser pessoas que vão respeitar a natureza, que não vão colocar fogo numa mata, que não vão jogar lixo num córrego. O trabalho que eu venho desenvolvendo nesses anos todos… eu acho que a finalidade dele é essa. Meus netos vão colher os frutos, talvez.
Eu vou nas escolas e falo da proteção das nascentes, mostrando fotos e o material que a gente tem. E tem muita gente interessada, que quer saber o porquê daquilo, como podem colaborar, o que a mãe pode fazer. Além disso, eu vou lá conversar com os estudantes, às vezes a escola seleciona um grupo mais interessado, outras vezes querem que fale para um turno todo. Isso eu faço há mais de 20 anos. Agora o Manuelzão adotou um sistema de mandar estagiários para me ajudar, então a gente organiza um grupo na escola, leva o material para os meninos, depois a gente leva os meninos para ver a nascente, para ver a poluição, os objetos que são jogados para dentro do córrego.
Hoje as crianças ficam dentro dos quartos, na frente dos computadores, na escola elas não estão interessadas – no modelo de escola, né? Eu lembro que um dia eu estava conversando com uma turma lá na creche, e um deles falou assim “Ivana, nós já enjoamos dessa escola de ‘senta e levanta’, não aguento mais.” Mas se você leva uma turma para a praça para que essa turma tenha uma aula de ciência, e mostra que aquilo ali pode ser transformado num jardim orgânico, mostra o que as minhocas fazem na terra, mostra as coisas ao vivo, é outra coisa. Aquela gameleira você vai lembrar pro resto da vida, é muito diferente de você ver a mesma gameleira numa tela de computador. Eu acho que isso é que falta, está certo que a rapidez vem através da telinha do computador, mas a fixação e a beleza vem através de você ver aquilo que está estudando.

Sentada na praça, Dona Ivana nos conta sobre seu trabalho cuidando de nascentes e suas perspectivas para o futuro dos córregos urbanos. Fotografia de Jenifer Batista.
Meu trabalho com as nascentes começou em 1981, foi um período com muitos desempregados, e a creche distribuía sopa para eles. Teve uma época em que chegamos a distribuir 5.200 sopas por dia. Aí depois, como todo mundo recebia sopa e não tinha nem que acender o fogo, tinha muita briga. Daí nós conseguimos um terreno e começamos a fazer uma lavoura comunitária, porque todo mundo mexia com enxada, suava, cansava, brigava menos, né? Nós fizemos isso durante um período. Lá no terreno tinha as nascentes. Aí eu comecei a cuidar das nascentes, e nós conseguimos fazer um bom trabalho com as nascentes, porque todo mundo ajudava, plantava, colhia, mas esse trabalho foi interrompido porque uma cidadã quis ser candidata a vereadora. Lá tinha um grupo grande organizado, e ela aproveitou e ofereceu muita coisa: semente de graça, ferramenta de graça… Daí o povo foi dispersando e ela não deu nada depois que ela ganhou as eleições para vereadora. O Manuelzão começou nesse período a dar assistência, porque a luta do Manuelzão não é tratar da doença, é evitar, é a prevenção. Então começaram a examinar aquelas famílias, eram 85 famílias que a gente tinha e eles iam examinando, encaminhando para tratamento, fazendo tratamento preventivo, ensinando a tratar da água por exemplo, porque não tinha água encanada. E com isso nós tivemos por uns cinco anos um trabalho muito bonito. Só que depois da entrada dessa candidata e com a decepção que as pessoas tiveram, porque elas deixaram de cuidar do terreno para receber tudo de graça e não receberam, veio a decepção e a desorganização também.
Lá no terreno tinha uma estrada, e eu dividi assim: para eles um lado e com o lado oposto eu fiquei para plantar para a creche e para preservar as nascentes, porque no córrego de lá a água era limpa, dava para utilizar na horta. Eu tinha funcionários ajudando. Nós cercamos tudo. A gente plantava muito, era uma horta muito grande. Nós chegamos a colher 50 quilos de aipo, muito cará, muita banana…
Quando eu recebi o título de cuidadora de nascente, foi por uma indicação do Manuelzão. Mas isso é só uma parte de todo um trabalho social, que não é exclusivamente com as nascentes. A gente trabalhava com as famílias dos meninos, com a educação. Quando a creche começou a gente achava que era só ficar com a criança e cuidar, mas depois fomos entendendo que isso era muito pouco, que tínhamos que partir para a educação formal. Nós começamos com crianças de três meses, depois de até seis anos, depois passamos a atender as de até 14 anos. Era o que hoje chamam de Escola Integrada. Mas tudo isso era, na cabeça da gente naquela época, era para tirar o menino da rua. Tentar mostrar para esse menino que ele tinha um lugar aonde ele tinha apoio. A gente não tinha uma programação educacional, uma grade a cumprir. A gente tinha boa vontade e a necessidade de fazer alguma coisa. Nós começamos com um clube de mães e essas mulheres viam as necessidades que tinham na comunidade. A creche é particular, comunitária, sem apoio da prefeitura.
Aqui na região tem atualmente 8 creches. Mas as outras têm convenio com a prefeitura, a nossa não, ela é praticamente particular. A necessidade do atendimento da criança surgiu porque antes a maioria das mulheres não trabalhava fora, de 80 pra cá, com o desemprego dos maridos, as mulheres começaram a se virar. Não era o emprego formal, elas saíam para lavar e passar roupa, fazer faxina, e as crianças com quem ficavam? A mais velha tomando conta das mais novas e muito acidente doméstico, era acidente de criança que queimava, que caía em cisterna, então foi aí que surgiram as primeiras creches comunitárias. A primeira nós ajudamos a fundar, a Casinha da Vovó. Começamos com cada um dando uma coisa. Tinha dia que a gente nem sabia como ia fazer o almoço. Começamos com um barracãozinho pequeno, com 50 crianças, e depois de dois anos as pessoas vieram ver o que a gente tinha feito com o dinheiro que nos deram. Daí resolveram comprar um resto de chácara, porque viram que as crianças se desenvolveram tanto e tão rápido, e pagaram uma construtora para construir mais uma casa. De lá para cá nós viemos trabalhando sozinhos. Hoje nós temos uma casa grande com 159 crianças.
E eu me motivo porque ainda acredito no povo, porque no dia que eu falar que não acredito mais eu vou parar. Eu estou no Manuelzão desde que ele foi criado, e a gente tem visto muita coisa, leis que nós batalhamos para que existissem, por exemplo a de não canalização dos córregos, foi muita luta; a criação do comitê de bacias, do qual faço parte; o estatuto das bacias que foi feito também com a ajuda de todo mundo… – foram muitas reuniões para que a gente tivesse um documento para cobrar isso dos órgãos públicos. A gente tem muita decepção de muita coisa não ser cumprida apesar das leis existirem. Mas uma luta que a gente precisa ter é para ter uma lei de preservação de nascentes. Tem a lei dos 50 metros, mas não é isso. Precisamos de uma lei em que o município incentive a pessoa que tem uma nascente a cuidar dela: pagando menos imposto, recebendo material para fazer cerca em volta dela, tendo vistorias e orientação de como preservar a nascente. É nesse sentido que eu falo, porque muitas vezes a pessoa quer fazer alguma coisa e não sabe como. É importante ter um técnico para ensinar isso, para preservar, orientar, ajudar financeiramente. As nascentes que tem ali embaixo do Arrudas eu cerquei com meu dinheiro, eu nunca tive ajuda do governo, pelo contrário, a ação deles foi só de destruição. Eles construíram um conjunto habitacional, colocaram a população inconsciente em cima de nascentes que estavam cercadas com árvores frutíferas. Tudo isso são perdas.

Trilhas que margeiam o córrego do Leitão. Fotografia de Thiago Flores.
Resultado eu acho que posso dizer que a gente tem, porque até há pouco as nascentes eram desconhecidas. Desconhecidas no sentido de que eram ignoradas. E a partir daí outras pessoas começaram – tem o Seu Nonô, por exemplo, tem várias pessoas em Belo Horizonte que agora já veem um olho d’água de forma diferente. Eu não sei se sou a pioneira, mas para mim isso não interessa, interessa a divulgação do assunto. Porque eu acho que é só com a divulgação de que há necessidade de fazer alguma coisa e que as coisas acontecem. É só ter boa vontade, eu acho que já é um ponto positivo.
Eu tinha um propósito de ter um grupo com a proposta de salvar o Arrudas. O que cada um de nós deveria fazer? Cada um fazer sua parte, e divulgar isso. Onde o Arrudas passa, no dia da água vamos pôr uma mensagem nas grades, jogar uma pequena flor dentro do rio, porque o que eu acho é o seguinte: na correria do dia-a-dia, a gente se esquece da necessidade que nós temos de viver. Já pensou? Se todo bairro de Belo Horizonte tivesse um cantinho assim, com lugar para sentar, conversar, jogar bola-de-gude, jogar pipa, soltar um pião, brincar de roda. Você já pensou se a gente conseguisse que desde a vizinhança daquela dona que estava lá perto da nascente plantando aquele jardim, até lá em baixo, as pessoas hasteassem uma bandeia no dia da água, no dia do meio ambiente, pela defesa do Arrudas? Existe esperança? Existe. Agora, quando é que o poder público vai nos apoiar? Pode até nos jogar água com uma mangueira, mas e daí? Se fizer isso a gente dá a resposta. É necessário.
Nós não temos verba para vir tirando o esgoto a céu aberto de lá da nascente até aqui. Isso depende do poder público. Depende da gente lutar para ter um orçamento para entrar uma verba para isso. Outra coisa, nós não temos tempo para fazer um projeto nesse sentido. Tudo isso depende do poder público. Se a gente tivesse apoio das autoridades… O Manuelzão tem o projeto do problema do Rio das Velhas. Quantos anos tem que foi prometido que limpariam o Arrudas para que ele não contaminasse tanto o Velhas? Era para terminar a etapa em 2010, passou para 2014, e o último governo nem conhecimento tomou. Então quanto lutamos? Saímos aí abaixo divulgando, conversando para que a gente conseguisse que os peixes voltassem. Eles estão voltando? Estão. Mas eles podem ser consumidos? É uma interrogação. Porque não há continuidade. A estação de tratamento de esgoto, quanto ela está tratando do esgoto de Belo Horizonte?
Dona Ivana
Dona Ivana é cuidadora dos córregos e nascentes da região do Vale do Jatobá, ao sul de Belo Horizonte. Este depoimento, editado por PISEAGRAMA, faz parte da entrevista realizada por Isabela Izidoro, Jenifer Batista e Thiago Flores.
Como citar
PISEAGRAMA. Córregos e nascentes do Jatobá. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, seção Extra!, 14 mar. 2016. <https://piseagrama.org/conversa-com-dona-ivana>.
PISEAGRAMA. Córregos e nascentes do Jatobá. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, seção Extra! [https://piseagrama.org/conversa-com-dona-ivana], 14 mar. 2016.