
CRISE CLIMÁTICA
NO MEU QUINTAL
Texto de Gabriel Prado
Coloque-se no meu lugar, série político-poética de estandartes, lambes e camisetas de Daniel Caballero
Na tarde de 12 de março de 2025, a bicentenária árvore da espécie Sterculia chicha tombou no Largo do Arouche, centro de São Paulo, depois de uma tempestade avassaladora. O sentimento de amor latente por uma árvore gigante advindo de alguém que cresceu sem árvore nenhuma é a máxima expressão de que os espaços podem provocar mudanças profundas nas pessoas.
O alerta da Defesa Civil notificou a todos no departamento onde trabalho por volta das quatro da tarde. A medida de segurança, com ares apocalípticos, passou a fazer parte do cotidiano paulista naquelas últimas semanas. O padrão já se fazia bem conhecido por todos: manhãs e tardes insuportavelmente quentes eram seguidas por tempestades rápidas, avassaladoras e perigosas. E naquela tarde não foi diferente. Nós ficamos dentro do prédio até a chuva passar e, no caminho de volta para casa, pude constatar os destroços.
Situada no coração do centro de São Paulo, a Avenida São João é a minha rota favorita para chegar em casa. Seus antigos postes de energia ajudam a compor uma paisagem que passa do clássico ao dinamismo da metrópole contemporânea. Foram implementados por volta de 1927, quando a companhia de energia Light firmou contrato com a prefeitura para readequar a iluminação pública da cidade. Suas construções históricas, como o Municipal Hotel, dividem espaço com novos empreendimentos, modernos e brilhantes. Durante aquele percurso de volta, a paisagem da avenida recebeu o tom dramático das consequências da tempestade ocorrida minutos antes.
O evento marcante daquela tarde me aguardava a alguns metros dali, no Largo do Arouche. Depois de cruzar trechos com árvores tombadas, lixeiras reviradas e fios de energia caídos na calçada, cheguei até a cena da bicentenária árvore do Arouche. Ela estava caída sobre as duas faixas de rua e, embaixo dela, havia um veículo completamente destruído. A opulência daquela árvore da espécie chichá (Sterculia chicha), tombada diante dos olhos de todos, era assustadoramente triste e silenciosa. O indescritível incômodo que senti diante da clareira aberta pelo vazio do chichá naquele pedaço de cidade me fez lembrar a concepção filosófica-espiritual elaborada pelo xamã yanomami Davi Kopenawa em seu livro A Queda do Céu. Parte do meu pequeno céu também tinha caído.
O Largo do Arouche, que se abre ao lado do quarteirão da minha casa, sempre foi para mim um ponto de passagem e permanência. Passagem para o trabalho, para a faculdade, para a padaria, para encontrar uma amiga. Permanência para uma leitura, um passeio de bicicleta ou um refresco nos dias quentes. A gigantesca árvore era onipresente. Sua sombra corria pelo Arouche ao longo do dia e sua copa erguia-se firme para longe de nós.
A Prefeitura de São Paulo contabilizou a queda de outras 329 árvores após a tempestade daquela tarde de quarta-feira, 12 de março de 2025. O taxista Elton Ferreira de Oliveira, de 43 anos, foi uma vítima fatal do temporal, depois que uma das árvores caiu sobre o seu carro na Avenida Senador Queirós. Trabalhadores que desempenham funções nas ruas de forma desabrigada são os mais sujeitos às piores consequências dos efeitos da crise climática. Em tempos de fenômenos extremos, as cidades não são mais sinônimo de proteção e passam a oferecer novos riscos.
Sempre acreditei na ideia do espaço público como uma continuação coletiva das nossas casas. Como uma espécie de reivindicação dos quintais que nos foram tirados no processo de urbanização e apartamentarização da vida cotidiana. Tudo aquilo que está na praça pública é intrinsecamente de todos e, ao mesmo tempo, genuinamente de ninguém. Em seu livro A alma encantada das ruas, João do Rio compartilha desse sentimento de beleza da vida coletiva, urbana e social: “Eu amo a rua. Esse sentimento de natureza toda íntima não vos seria revelado por mim se não julgasse, e razões não tivesse para julgar, que este amor assim absoluto e assim exagerado é partilhado por todos vós”.
Antes da minha mudança para esse pedaço da cidade, para estudar Direito na USP, minha vida se deu nas ruas do Jardim Ângela. O que se acostumou a chamar de extremo ou periferia nas rodas literatas, sempre foi para mim o centro. O centro das brincadeiras de rua em frente à minha casa, o centro da feira de domingo, o centro da igreja, tudo bem longe das alamedas arborizadas do centro expandido, seus cafés sombreados e restaurantes de terraço. Essa parte televisionada da cidade só me era conhecida por meio dos jornais, das novelas e dos maravilhosos filmes de Jorge Furtado. O distante se transformou no aqui de onde escrevo agora.
Na véspera do vestibular, quando fui conhecer, junto com os meus amigos, os locais onde faríamos as provas, passei horas vagando pelo centro de São Paulo. Profundamente livres naquela tarde, comentávamos como tudo era amplo, aberto e organizado. Estávamos longe de casa, mas aquele foi o primeiro vislumbre do que seria, em poucos anos, a minha nova vida cotidiana. Estrangeiro dentro da minha própria cidade, adquiri naturalmente uma lente especial de observação.
Quando pedalo pelas ruas do centro antigo, me vem novamente esse forte sentimento. Entro em uma nova rua apenas pela perspectiva da descoberta. Saio pela Avenida Duque de Caxias no final da tarde e as cores do pôr-do-sol me arrebatam. Descubro uma pequena loja de livros antigos, compro um vinil do artista que meus pais costumavam escutar depois que os filhos iam dormir. Onde estavam todas essas coisas nas margens da minha infância? Como uma mesma cidade pode ser tão distinta em suas muitas localidades?
Os espaços podem provocar mudanças profundas nas pessoas. O sentimento de amor latente por uma árvore gigante advindo de alguém que cresceu sem árvore nenhuma é a máxima expressão disso. É amar cada esquina por onde passei de um bairro que não herdei, mas que objetivamente escolhi como lar.
A imagem de Davi Kopenawa é perfeita justamente pela dimensão de totalidade que apresenta. O céu está sobre a cabeça de todos nós. Na cosmovisão yanomami, os xamãs, com auxílio dos espíritos ancestrais xapiris, são os responsáveis pela manutenção dos suportes do céu. Conforme os ancestrais morrem, vitimados por doenças, guerras e fome, a sustentação do céu é prejudicada e ele poderá vir abaixo. Há poucas interpretações mais premonitórias e realistas do que essa para a realidade que vivemos hoje. Embora os cientistas tenham levado mais tempo do que o povo Yanomami para constatar o papel estrutural da natureza na manutenção da vida na Terra, esse agora é um fato.
Essa verdade que se revela a todos chega em cada um de forma específica. Caetano Veloso compôs a canção Um índio: “Aquilo que nesse momento se revelará aos povos surpreenderá a todos não por ser exótico, mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto quando terá sido o óbvio”. E o óbvio do nosso tempo parece ser o cruzar da fronteira entre o razoável e o inimaginável. Passou-se a chamar de ponto de não retorno aquele limite que, quando ultrapassado, tornará o quadro da crise climática irreversível. Exemplos de eventos que ocorrerão a partir desse ponto são o colapso da Amazônia, o degelo da Antártida ou o branqueamento de corais. Na minha esfera particular e sensorial, o ponto de não retorno foi a queda do chichá naquela tarde chuvosa.
No entanto, o chichá do Largo do Arouche começou a cair muito antes daquele dia. As raízes em formato de tábuas, características daquela espécie, eram utilizadas pelos indígenas como tambores para a comunicação através de códigos na floresta, como explicou a geógrafa Sueli Furlan em entrevista de 2017 ao jornal O São Paulo. Com o crescimento da cidade ao redor das antigas fazendas da então Vila de São Paulo, a cobertura vegetal foi sendo perdida e se tornando rarefeita. A singularidade daquela gigantesca árvore no meio da cidade já era o quadro que testemunhava a queda.
Uma árvore deve pertencer a um ecossistema. Há poucos anos, os cientistas descobriram que as raízes das árvores formam uma grande rede de trocas de nutrientes a partir da comunicação de necessidades e outras informações centrais para a vida e a manutenção das espécies. Em um capítulo do livro Revolução das Plantas: Um novo modelo para o futuro, Stefano Mancuso explica: “O sistema radicular é, sem dúvida, a parte mais importante da planta. É uma rede física cujas extremidades formam uma frente que avança continuamente, composta de inúmeros centros de comando minúsculos, e cada um deles integra as informações reunidas durante o desenvolvimento da raiz e decide em qual direção crescer. É, portanto, todo o sistema radicular que guia a planta, como uma espécie de cérebro coletivo, ou melhor, de inteligência distribuída em uma superfície que pode ser enorme. À medida que cresce e se desenvolve, cada raiz adquire informações fundamentais para a nutrição e a sobrevivência das plantas.”
No primeiro domingo após a queda do chichá do Largo do Arouche, aproximadamente quarenta pessoas se reuniram em sua memória. O ato convocado pelo Instituto Árvores Vivas coincidiu com o Dia Nacional da Conscientização sobre Mudanças Climáticas e concentrou ativistas, organizações da pauta urbana e ambiental e autoridades locais. Todo encontro político é um encontro de sentimentos individuais que se coletivizam na praça pública.
Ken Yamazato, descendente de imigrantes japoneses, ambientalista e engenheiro de pipas, tem 86 anos e se orgulha de ter plantado quatro sementes de chichás que hoje são árvores grandes. Em seu livro Meus pés de chichás: Uma história singular, ele narra o processo de cultivar a terra que tão bem recebeu seus familiares. Naquele encontro no Largo do Arouche, Yamazato contou também que sua mãe Kiyoko Yamazato, nascida na cidade de Kumejima, província de Okinawa, no Japão, imigrou para o Brasil em 1932 trazendo as primeiras sementes da cerejeira de Okinawa ou Okinawa sakura para o Brasil.
A descoberta por Yamazato das sementes de chichá se deu ao acaso, em um daqueles encontros que apenas a praça pública nos permite ter. Numa manhã, enquanto caminhava por seu bairro, avistou na calçada algo que pensou ser uma manga ou um grande pêssego. Ao aproximar-se, percebeu que não era nada daquilo. “Antes de pegá-lo na mão, fiquei alguns instantes admirando. Tinha a forma de um coração aberto. Tive a sensação de que deveria recolher as sementes e plantá-las”.
Recentemente empossada como membra da Comissão de Política Urbana, Metropolitana e Meio Ambiente, a vereadora Marina Bragante, da REDE, também participou do ato público. Ela contou sobre os esforços que vem empenhando para instituir a CPI das Árvores Mortas na Câmara Municipal, dedicada a investigar o descaso com as árvores da cidade que são exterminadas por empreendimentos imobiliários, ameaçadas pela expansão de incineradores ou suprimidas para a construção de túneis.
Em 2021, a cidade de São Paulo instituiu o Plano de Ação Climática do Município de São Paulo, o PlanClima SP, com o objetivo de mitigar e preparar a cidade para os efeitos da crise climática. Dentre as 43 ações prioritárias do PlanClima SP, há uma direcionada ao plantio de árvores nativas resilientes às mudanças climáticas para que possam proteger a biodiversidade e promover a melhoria do conforto térmico na cidade. De acordo com a própria Prefeitura, apenas 11,7% das ruas de São Paulo possuem árvores.
A ausência de áreas verdes é enfrentada por munícipes como Hélio Silva. O administrador de empresas aposentado é conhecido pelo plantio de mais de 37 mil árvores na região do Córrego Tiquatira, através das avenidas Governador Carvalho Pinto, Doutor Assis Ribeiro e Cangaíba. Seu empenho contínuo deu origem ao Parque Linear Tiquatira, na Zona Leste. Modificando a paisagem, a sociabilidade e o microclima local, pessoas como Hélio Silva e Ken Yamazato transformam o espaço ao seu redor e nos lembram de que estamos todos numa mesma casa coletiva. Mas poderemos esperar que a queda do céu seja remediada por ações individuais?
O ato daquela manhã foi encerrado com um abraço coletivo no chichá. A roda de mãos dadas foi formada em volta das grades de proteção que a municipalidade colocou ao redor da árvore. Enquanto segurava as mãos dos meus vizinhos e bradávamos gritos de ordem ambiental, me perguntei de quem ou do que aquelas grades protegiam a árvore gigante. Elas não foram efetivas. Mesmo mergulhado em um sentimento de pesar, fiquei contente de ver tantas pessoas interessadas na vida de uma árvore e todas elas bem ali, no meu quintal coletivo.
O pedaço de chão onde o gigantesco chichá cresceu pertenceu a José Toledo de Arouche Rendon, o primeiro diretor da Faculdade de Direito da USP. Arouche Rendon ajudou a estruturar o primeiro curso superior no país. As aulas da turma que inaugurou a recém fundada faculdade tiveram início em 1º de março de 1828. Naquela data, o chichá do Arouche já existia há muitos anos. O chichá era mais antigo do que os primeiros diplomas brasileiros. A longevidade do espécime em questão é confrontada com a pouca idade das nossas instituições.
No entanto, a crise climática não vai esperar a nossa maturação institucional. Os processos decisórios e a pulsão da democracia precisam se adequar às urgências do nosso tempo. É necessário sermos mais objetivos do que nunca, olhar atentamente as experiências internacionais, acertar com elas e não repetir seus erros. Superar resquícios da mentalidade colonial. Nosso tempo requer que tenhamos não apenas uma cabeça no futuro, mas o corpo inteiro. O princípio ético de responsabilidade com as futuras gerações não é mais princípio. Tornou-se regra mandatória de eficácia máxima.
Os eventos extremos, embora de forma desigual, vão chegar tanto para as varandas do Bela Vista quando para os quintais do Jardim Ângela. O espírito cívico e solidário de cidadãos como Hélio Silva e Ken Yamazato não poderá ser um caso isolado se quisermos ter alguma chance diante do futuro. Perpetuar as condições da vida na terra é o novo componente da cidadania. Componente que deve ser distribuído de forma equânime nos territórios de cada cidade, estado e país.
Aquela manhã coletiva em memória do chichá ainda me reservava uma boa surpresa. A idealizadora e presidente do Instituto Árvores Vivas, Juliana Gatti, nos comunicou um fato óbvio, mas não evidente aos meus olhos: o chichá segue vivo. Suas raízes estão conectadas ao solo e continuam a produzir seiva. Com o adequado tratamento, ele poderá rebrotar sua copa. Esse processo requer o acompanhamento de uma equipe multidisciplinar, intervenções na superfície da árvore e possíveis alterações no solo para torná-lo mais permeável. Talvez seja uma mensagem para meu ponto particular de não retorno e para o de todos os demais. É mais fácil manter os alicerces que sustentam o céu do que ter que erguê-lo novamente às alturas.
Gabriel Prado
Advogado e mestre em Direito de Desenvolvimento com foco em Políticas Públicas.
Daniel Caballero
Artista ruderal e pesquisador, criador do Cerrado Infinito em São Paulo.
Notas
Cerrado Infinito é um processo artístico ruderal desenvolvido por Daniel Caballero desde 2015, que ocupa espaços institucionais áridos ou terrenos públicos assépticos da cidade, para estabelecer territórios de diversidade biológica e cultural.
Como citar
PRADO, Gabriel. Crise climática no meu quintal. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, seção Extra! [conteúdo exclusivo online], 02 jun. 2025.