DE CAUSA
EM CAUSA
Texto de Maria Florencia Polimeni
Don’t Cross the Bridge Before You Get to the River, imagem de Francis Alÿs
Sobre o poder, a liderança e a participação, a ativista argentina faz uma recapitulação de sua atuação, trazendo muitas reflexões que atravessam os grupos envolvidos com a renovação política no Brasil. Fala traduzida por PISEAGRAMA a partir de original apresentado no Fórum Mundial das Resistências, em Porto Alegre, em janeiro de 2017.
Na vida nunca me faltou teto, comida ou trabalho. Aos 15 anos me aproximei de um comitê da União Cívica Radical, um partido histórico da Argentina, através de meu pai, com um só objetivo: honrá-lo, seguir seus passos. Creio que nessa idade – sendo muito sincera – alguém se aproxima da política somente por duas razões: ser leal aos pais ou se rebelar contre eles.
Aprendi muitas coisas em minhas primeiras experiências dentro de um partido político tradicional. A lei orgânica deveria ser respeitada, era obrigatório atravessar um longo caminho de formação: investigar o comitê; escutar os afiliados ou os vizinhos que vinham ao local; estudar muito a história, os estatutos, as leis; ganhar a confiança e o respeito de seus companheiros de militância; se dispor a falar nas reuniões enquanto os mais experientes militantes te julgavam.
Mas os anos 1990 destroçaram o sistema argentino de partidos, e o que durante décadas havia sido o cursus honorum fundamental para amadurecer dentro de uma organização partidária foi rapidamente substituído pelo oportunismo ajoelhado frente ao poder global. Agora, para sobreviver, eu deveria aprender os vícios; aceitar que sendo mulher o esforço sempre valeria menos e que te mandariam servir o café; deveria tolerar que muitos, sem nenhuma legitimidade, ocupariam cargos na organização não por mérito, mas por bajulação; deveria aceitar que todas as regras tivessem exceções. Cansada de receber ordens incoerentes com minhas convicções, de ver a burocracia organizacional amordaçar minhas críticas e propostas e a disputa de poder arrasar com toda vocação transformadora do partido – e sem nenhuma expectativa de poder acessar um espaço de decisão real – juntei minhas trouxas e parti.
Estive afastada da política por alguns poucos anos até que um partido novo, personalista, liderado por um membro do establishment, com vocação hegemônica, me ofereceu para ocupar um cargo, sem aparentes condicionantes. Duvidei, mas finalmente aceitei a oportunidade. Sob o compromisso de manter minha independência de atuação, comecei meu mandato como deputada. E rapidamente apareceram os primeiros conflitos. Se os partidos políticos tradicionais são lugares cheios de decisões injustas e pouco meritocráticas, os partidos personalistas são o reino, a apoteose do capricho e do poder do dedo. Tudo diz respeito a agradar o dono da bola. Não há nenhum lugar para o pensamento crítico, não há outro interesse nem motivação senão à do rei/dono inspirado pelas pesquisas, pelo marketing e pelos conselhos dos gurus da moda.
Depois de inúmeros choques ideológicos e confrontos metodológicos, decidi novamente pelo êxodo. Fui embora. Criei um bloco individual no parlamento e decidi provar as delícias do individualismo político em sua mais extrema expressão. Se teria que ceder a algum capricho, preferia que fosse o meu próprio.
Não fui tão mal. Usei a oportunidade a favor das causas que caprichosamente considerei justas e consegui aprovar várias leis que ainda me enchem o peito de orgulho. Mas, apesar de haver construído boas alianças transpartidárias, me sentia sozinha. No fundo eu sabia bem que as transformações sociais profundas e sustentáveis só são realmente geridas através de projetos coletivos. Foi por essa convicção, entre outras, que decidi me retirar temporariamente da política partidária para me dedicar ao vasto mundo fora dela.
Queria saber se era possível repensar as organizações, o poder e o Estado de fora do sistema político: saber se era possível transformar os enclaves autoritários que inundam a sociedade argentina com a sua concepção de liderança e de poder.
Me obcecava como o poder perverte tudo aquilo que toca, salvo algumas poucas exceções; como parecia existir um só modelo de liderança ocupado sem descanso em concentrar poder no lugar de delegar, em se perpetuar a qualquer custo, em desconfiar, em construir relações baseadas na demagogia e no paternalismo tanto com suas próprias equipes quanto com os cidadãos.
Queria empoderar a sociedade civil, treiná-la nos assuntos públicos para que pudesse incidir e exercer controle sobre o sistema. Pretendia colaborar de baixo para cima com a construção de uma nova cultura política que experimentaria outras formas de organização, de participação e de liderança.
E para isso me dediquei a fundar e integrar organizações sem fins lucrativos em âmbitos diversos mas importantes como a ciência, a cultura e a educação. Dediquei horas e horas de trabalho voluntário, de conversas, de conhecer gente nova de mundos distintos, de escutar, de pensar, de aprender e de destruir preconceitos próprios.
E, de repente, em uma tarde de 2012 surgiu, junto com alguns outros loucos, a ideia do Partido de la Red [Partido da Rede]. A pergunta original que nos fazíamos era tentadora: como seria possível perturbar a lógica atual do sistema político para aproximá-lo de verdade dos cidadãos? A “Rede” nos dava uma oportunidade singular. Nos dava a ajuda tecnológica, cultural e simbólica que alguns de nós tanto havíamos esperado. Tínhamos que aproveitar. A internet estava gerando uma transformação profunda em diversos aspectos da vida das pessoas. Então, como não pretender que ela transformasse também a forma com a qual se governa, a democracia?
Propusemos, para começar, uma estratégia de dupla entrada. Por um lado, fundar um partido político para incidir no sistema a partir de seu interior. Queríamos colocar um deputado na legislatura da cidade de Buenos Aires que se comprometesse a votar segundo o que seria decidido conjuntamente com a cidadania em uma plataforma de participação online. Por outro lado, nos propusemos a trabalhar a partir da sociedade civil e desenvolver essa plataforma de participação cívica que permitiria aos cidadãos se informar, debater e votar para construir decisões coletivas em qualquer âmbito. E avançamos nessa linha construindo a Fundación Democracia en Red [Fundação Democracia em Rede]. Nos organizamos, fomos eficientes, juntamos os fundos e desenvolvemos o software. E, além disso, levamos a cabo outros projetos que nos permitiram acumular experiência sobre participação no Estado e em todo tipo de organização da sociedade civil.
Mas a tarefa mais difícil da estratégia era claramente construir e organizar um partido político. Como fazê-lo, sob que forma…?
Eu estava entusiasmada pela primeira vez desde a minha adolescência com um projeto político coletivo. Sentia que poderíamos nos animar, questionar os problemas mais estruturais do sistema e provar com humildade algo distinto.
Me encontrei de repente sendo uma das mais velhas do projeto sem mesmo haver atingido os 40 anos (sempre havia sido uma das mais jovens). Me encontrei sendo uma das poucas com experiência política profissional prévia. Me encontrei sendo a única que havia ocupado alguma vez um cargo político de qualquer tipo ou espécie. Me lembro de ter pensado: onde estou? Qual deve ser meu papel? Devo liderar? Devo inspirar? Devo formar? Devo organizar? Devo ser um pilar do espírito fundador? Lembro-me como se fosse ontem meu cuidado em tentar não condicionar o frescor de uma organização que tentava ser concebida sob um novo paradigma. E ali estava eu, no meio, com a dor de romper um pouco com o velho e com uma mistura de ceticismo e esperança no coração.
Tínhamos muitos desafios à frente: encontrar uma forma de organização interna o mais horizontal e democrática possível para experimentarmos as novas práticas de decisão coletivas. Formar dezenas de militantes que atravessavam pela primeira vez uma experiência política com muita desconfiança a todo o sistema político tradicional e lidar por sua vez com esse incrível coquetel juvenil de inocência, brutalidade e soberba. E, ao mesmo tempo, conseguir todos os requisitos burocráticos exigidos pela lei para constituir um partido político.
Mas além disso, para complicar ainda mais a situação e fazer tudo isso de forma divertida, avançávamos sobre um terreno nunca antes explorado. Queríamos por à prova algumas hipóteses provocadoras:
Entre maior número de pessoas se decide melhor? Sob que condições funciona o conceito de inteligência coletiva? Pode-se gerar transformação política se escapando da liderança clássica? É viável um espaço político auto organizado, descentralizado, com lideranças diluídas e rotativas? É possível estimular os cidadãos para que eles se envolvam massivamente nos temas públicos? A participação política virtual pode substituir a física? Em que situações? E como? É suficiente para construir um partido político propor como ideia central um novo método de democracia semidireta auxiliado pela tecnologia?
Quais dessas hipóteses foram bem sucedidas e quais não? O que aprendemos? Ou melhor, o que aprendi nestes cinco anos?
Meus aprendizados foram muitos e se deram em três níveis. No nível antropológico, tive que aceitar que para além da mudança de paradigma que a tecnologia nos permite, o problema central da maneira com a qual nos relacionamos com o poder continua sendo o mesmo: o ego. A tecnoutopia (essa ideia inocente de que a tecnologia pode melhorar tudo, com a qual muitos de nós começamos este caminho), nos fez pensar que as “novas práticas em Rede” iriam tender naturalmente a desconcentrar o poder e a nos ajudar a assumir compromissos coletivos. Porém, parte da natureza de nosso ego vem demonstrando ser resistente e inclusive adaptável aos novos formatos. Na era da reputação online, a honra segue em desuso e a senhora fama (se é que ela é uma dama) anda à vontade, esperando ser encontrada atrás de qualquer post, tweet ou foto retocada.
Como formar então as novas gerações de militantes para que possam resistir a uma pequena dose de poder real, se o poder virtual e transitório das redes os domestica? A única esperança é um treinamento disciplinado da auto observação, que nos permita fazer consciente a maneira com a qual o poder nos afeta, para que não nos escravize. Enquanto isso, temos que estar muito atentos até que possamos transformar esse padrão dentro de nós e construir novos modelos.
E isso complica muitíssimo a construção no segundo nível, que é o sociológico, o da organização. Como reformista que sou, considero que o principal desafio que uma organização tem é o de conhecer o sistema que pretende transformar para poder infiltrar-se nele e interagir com ele sem perder o norte. A ignorância e o medo do sistema político são um obstáculo enorme na hora de organizar uma força política nova. Somos uma sociedade sem treinamento na busca de informação confiável e no intercâmbio saudável de ideias. E a militância não escapa a esta regra.
A maioria desconhece os protocolos básicos da política. Então é de grande importância que nós ativistas pratiquemos a participação nos órgãos internos até conseguir um exercício consciente e responsável do compromisso cívico. Em última análise, essa será a experiência que poderemos transmitir; esse pequeno ensaio do que viverá o cidadão caso participe ativamente da tomada de decisões políticas. E então me pergunto: para construir coletivos empoderados que tomem decisões, devemos inferir que opinar online é participar? Ou se necessita algo mais? Aquele que opina dentro de uma organização é consciente dos compromissos e das responsabilidades decorrentes disso? Quem põe corpo às decisões coletivas para que se convertam em ações coletivas?
Outra coisa que aprendi é que é muito complicado se organizar sem lideranças fortes, apesar delas poderem ser perigosas. Às vezes não há outra alternativa – como por exemplo em épocas eleitorais – além de reforçar filas atrás de uma liderança forte que conduza com eficácia, para se atingir os objetivos. Mas quando isso termina? Quando se tira o poder de seus detentores? Se acaba quando termina a época eleitoral? A história nos vem demonstrado que desde os tempos de Roma até aqui, o mais difícil é aprender a fazer essas interrupções e se voltar à assembleia, ao coletivo. Nós temos experimentado diferentes sistemas de organização (para os tempos de paz), e até agora todos têm, de certa maneira, se mostrado ineficazes.
Sempre, para uma força política nova, a sensação de inércia vinculada ao assembleísmo ou aquela do “barco à deriva” gerada por lideranças obscuras são ameaças de morte que a fazem perder vitalidade, eficácia e a devolvem menos atrativa à cidadania.
O problema é que muitos de nós estamos cansados dos velhos modelos de liderança. Já não me interessa participar de organizações que só se movem se eu as carregar nos ombros e começar a dar ordens, ou daquelas que me obrigam a obedecer cegamente as instruções de um líder supremo. Desejaria que pudéssemos construir alternativas a essas opções. Para poder otimizar o tempo que dedicamos ao público e evitar que o poder se concentre, é necessário encontrar novos sistemas de participação eficientes, baseados na confiança e facilmente fiscalizáveis. Continuo crendo que é possível, mas se necessita tempo (algo que nunca se tem), paciência, e muito sangue novo que circule pelo coração da organização até sistematizar práticas organizativas justas e construir lideranças intermediárias que sustentem e estimulem uma visão conjunta.
E aqui vem o terceiro nível, o nível político, o da ideia que propomos como partido que, quando está clara e é atraente, pode por si só mover montanhas. O que aprendi com isso?
A ideia inicial do Partido de la Red era essencialmente de raiz metodológica. Queríamos oxigenar um sistema que estava ruindo por todos os lados, com uma estratégia de democracia semidireta ajudada pela tecnologia.
Para nós que viemos das ciências políticas, este é um conceito absolutamente ideológico que fala de uma convicção profunda na democracia como sistema político, já que valoriza a voz e o voto dos cidadãos como fonte inalienável de legitimidade do poder. Referir-me a nossa plataforma como uma ferramenta de democracia semidireta e não direta é também uma decisão ideológica. Em nenhum momento pretendemos atentar contra a essência da representação. Antes pelo contrário, queríamos fortalecer o papel do representante, sustentar a legitimidade de suas posições, facilitando seu apoio e debate permanente com as bases as quais ele representa.
Feitas estas declarações, devo confessar que esta ideia original do Partido para mim perdeu frescor e potência transformadora por várias razões. Em primeiro lugar, creio que temos conseguido, de algum modo, conjuntamente com centenas de milhares de pessoas em todo o mundo, instalar a necessidade de abrir o sistema democrático à participação real das pessoas. É certo que ninguém até agora se comprometeu com este objetivo de maneira vinculante e constante, como pretendemos fazer. Mas esse compromisso por si só para mim não é o suficiente. É preciso ir mais além. Não se trata somente de revisar a ideia, pois foi tomada no contexto de uma reivindicação global. Se trata do fato de que muitos de nós sentimos que essa ideia tem sido apropriada cosmeticamente por setores do establishment.
O projeto que fundamos há cinco anos nos ensinou muito sobre a inocência com a qual observamos novos fenômenos de massa, sobre como nos deixamos levar pelo discurso e pelas práticas da tecnoutopia, e sobre como isso nos pôs às vezes no mesmo saco com aqueles que querem mudar para que nada mude.
Estamos em um canto do mundo atormentado de dor e de desigualdade. Creio que para construir poder de verdade em Rede e repensar a participação, é necessário fazê-lo em um profundo marco ideológico que expresse claramente os novos e velhos problemas das sociedades em que vivemos. É preciso propor soluções concretas e possíveis para empoderar e acompanhar as pessoas a saírem da exclusão, da pobreza e da alienação.
É por isso que começamos um profundo debate dentro de nossa organização, que até agora é um esboço de uma nova visão de cidade, organizado em três eixos conceituais: Cidade sustentável, Cidade de código aberto e Cidade integradora. Não sabemos ainda aonde esse processo em que estamos nos levará.
Eu hoje como mulher, mãe, ativista e militante de 43 anos creio mais do que nunca que o trabalho mais difícil e mais importante para colaborar com a transformação social é aquele que fazemos dentro de nós mesmos.
Posso passar de organização em organização, de partido em partido, de causa em causa, de escritório em escritório, que se não trabalho com os mecanismos profundos que se repetem em meu próprio comportamento, continuarei fomentando inconscientemente a perpetuação de um sistema que alimenta o êxito individual, a concentração do poder e a repetição infinita das lógicas de exclusão.
Se me atrevo a observar todas as relações de poder das quais eu participo, as decisões que tomo dentro delas todos os dias, a maneira com a qual habito meu corpo e o mundo, talvez haja alguma chance de que consiga que algo diferente aconteça. De que possa transformar a mim mesma e transformar o mundo.
Maria Florencia Polimeni
Ativista argentina integrante do Partido de la Red.
Como citar
POLIMENI, Maria Florencia. De causa em causa. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, seção Extra! [https://www.piseagrama.org/de-causa-em-causa], 22 fev. 2017.