ENTREVISTA
COM JANET SANZ
Roberto Andrés entrevista Janet Sanz, secretária de Ecologia, Urbanismo e Mobilidade da cidade de Barcelona.
Em um dia ensolarado de junho, a secretária de Ecologia, Urbanismo e Mobilidade da prefeitura de Barcelona, Janet Sanz, me recebeu em sua sala, no bairro de Nou Barris, para uma conversa sobre as políticas implementadas pela gestão de Ada Colau.
A secretária, que tem 34 anos, acabava de chegar de um encontro no Bairro de Sants, onde a prefeitura está transformando uma antiga prisão em um espaço comunitário. Conversamos por 45 minutos em seu local de trabalho, uma sala de pé direito alto e arejada em um edifício que já foi um manicômio e hoje é um espaço de atendimento cidadão da Prefeitura.
Na pauta, as políticas de mobilidade urbana, habitação e ecologia da cidade: ciclovias, corredores exclusivos, ampliação dos bondes elétricos, melhoria da frota de ônibus, congelamento de tarifa, habitação pública, gentrificação, disputas com Airbnb, poluição do ar.
A gestão atual de Barcelona tem o feminismo como política transversal de várias áreas. Como é a questão da perspectiva de gênero nas políticas de mobilidade e urbanismo?
O que buscamos fazer, basicamente, é desenvolver o princípio da cidade para viver. Queremos garantir o direito aos elementos básicos necessários para a vida. Isso necessariamente tem uma perspectiva de gênero. O que estamos tentando implementar é o urbanismo da vida cotidiana, o urbanismo de gênero, nas políticas de transformação do futuro da cidade.
O modelo de cidade tem que incorporar todos as perspectivas. E, historicamente, as perspectivas que prevalecem são muito masculinas. A cidade é muito voltada para o fluxo casa-trabalho. No entanto, nós, as mulheres, somos as que mais saímos e entramos no mercado de trabalho, porque somos mães, porque temos outras prioridades, ou porque cuidamos dos nossos familiares. Ou porque combinamos o trabalho com tudo isto, as duplas e triplas jornadas de trabalho.
É importante que o desenho e o planejamento de qualquer serviço, que defina modelos de cidade, incorpore os diferentes usos que até agora têm sido esquecidos. Hoje, em Barcelona, as ruas estão destinadas majoritariamente à circulação de automóveis.
Mas nem sempre foi assim…
Não, claro. Quando Ildefons Cerdà, que foi quem planejou a trama urbana de Barcelona, desenhou as nossas ruas, não as desenhou para que passassem carros. As desenhou para que as pessoas pudessem caminhar, se encontrar, viver a cidade.
Inclusive as desenhou com espaços de estar dentro das quadras, nos interiores dos edifícios. Hoje muitos desses pátios estão fechados para uso particular, mas fizemos na nossa gestão uma política de recuperação e abertura dos pátios. Estamos abrindo muitos. Queremos chegar ao final do mandato com mais de 70% dos pátios abertos. Abrindo espaço para crianças, idosos, mulheres.
Esta é a perspectiva de gênero: é um olhar global, integrador, que inclui todos, não somente as mulheres. O problema é que as mulheres foram historicamente as grandes excluídas. E com elas, crianças e as pessoas mais idosas.
Então, no nosso projeto de transformação, a mobilidade é um elemento fundamental, porque nos permite reorganizar as linhas de ônibus, redefinir a destinação das ruas. Hoje 60% das ruas são destinadas aos automóveis, e queremos inverter esse percentual. 60% tem que ser para as pessoas.
É nesse contexto que entram os projetos das Super Ilhas [ruas peatonais em grandes blocos de nove quadras], certo?
Sim, vão na direção de recuperar as ruas para as pessoas. O primeiro protótipo foi feito no bairro de Poble Nou, e o que vemos é que são as mães, que vão buscar os filhos nas escolas, que utilizam dessas ruas peatonais para brincar com os filhos depois da aula.
Os dados são evidentes. O percentual maior de uso de transporte pelas mulheres é público, enquanto dos homens é transporte privado — utilizam mais carros e motocicletas. E as mulheres, cada vez mais bicicletas, a pé e transporte público. Investir em transporte público e em modos não motorizados não é somente promover justiça ambiental, mas justiça social.
Se esses dados são cruzados com renda, fica ainda mais evidente: as pessoas mais pobres utilizam menos veículos e as mulheres mais pobres menos ainda. O que estamos tentando fazer é fortalecer a mobilidade democrática.
Diminuímos as tarifas de transporte público e estamos ampliando as linhas de ônibus. Estamos buscando melhorar as ciclovias: construímos 25 novos quilômetros e agora acabamos de licitar mais 65. Nossa meta é triplicar, em quatro anos, as ciclovias em Barcelona.
Sobre as super ilhas, você pode nos falar um pouco mais sobre o protótipo feito em Poble Nou, como foi a reação das pessoas e qual o planejamento para a cidade?
Esse é um debate histórico em Barcelona. O Bairro de Gracia se tornou uma Super Ilha em 2006, e naquele momento houve bastante protesto de moradores. Hoje, todos estão acostumados e o bairro é muito pulsante, mas naquele momento foi um processo difícil.
Sempre haverá moradores a favor e contra. Nosso primeiro protótipo, vizinho a Poble Nou, gerou muita tensão. Não é uma região de ocupação histórica, os prédios são mais novos. Depois faremos uma Super Ilha em Sant Antoni, próxima ao mercado. Depois outra em Sants, em Hostafrancs, Horta Guinardó, Sant Andreo.
O projeto tem sido de muita aprendizagem, de fazer urbanismo ao pé da rua. Descemos às ruas com cadeiras e mesas e começamos, junto com os vizinhos, a desenhar como as ruas vão ser. Mas claro que o projeto não está isento de polêmicas. Quem mais tem reclamado são os vizinhos do entorno, e não aqueles que vivem dentro das super ilhas.
Nessa região do Poble Nou, muitos vizinhos têm espaços de lazer dentro dos edifícios. E por isso dizem: “não preciso de espaço de lazer nas ruas”. Embora seja bastante legítimo que cada um queira usar seu espaço de lazer privado, é importante pensar uma questão de justiça urbana e de acesso a lazer para todos.
Os vizinhos reclamam que seu trajeto para casa ficou mais difícil, pois algumas ruas estão mais cheias. Mas nossa visão de cidade é que temos que deixar as coisas um pouco mais difíceis para os carros.
Como dizia a Jane Jacobs…
Sim. Há um gráfico, que desenvolve os argumentos de Jane Jacobs, que mostra: o carro vai em linha reta, o ônibus tem um pouco de dificuldade, a bicicleta e os pedestres têm mais dificuldades. Temos que inverter isso. A pessoa que caminha, os ciclistas e usuários de transporte público tem que ir em linha reta, ter o caminho mais fácil. E o carro, se quiser, dar voltas. Para desincentivar os automóveis.
E para quando vão ser as Super Ilhas novas, nos outros bairros? O que vocês aprenderam com o experimento do Poble Nou?
São para 2018. Estamos ajustando um pouco o processo, a partir do que aprendemos. No primeiro, jogamos um pouco com o urbanismo tático, com coisas reversíveis, em paralelo ao processo participativo. Enquanto íamos discutindo, algumas transformações provisórias foram sendo feitas.
Isso teve seu custo. As pessoas muitas vezes reclamam que as transformações urbanas são abruptas, mas elas muitas vezes querem uma transformação maior e rápida. E então, pessoas que apoiavam as super ilhas, vêm reclamar que apenas pintamos o chão e colocamos alguns móveis.
Para as próximas super ilhas, decidimos fazer primeiro o processo participativo e definir, junto com as comunidades, que atuações táticas e que atuações estruturantes faremos em cada Super Ilha. Para que as pessoas não pensem que estamos fazendo algo mal feito.
Há críticas sobre o fato de melhorias como as Super Ilhas gerarem gentrificação nos bairros. O que vocês pensam disso e que políticas têm implementado para combater a gentrificação?
Esse é um grande tema. A gentrificação é uma evidência do conflito capital / pessoas jogado no território urbano. Nas cidades, não temos as competências para resolver inteiramente um conflito que é global. Claro que em Barcelona tivemos um processo de gentrificação prévio, que vem das Olimpíadas de 1992, que atraiu muita gente para a cidade.
E agora vivemos um processo de gentrificação que tem a ver com as pessoas que trabalham nos Estados Unidos ou em outras cidades mais ricas da Europa, mas trabalham à distância e resolveram viver em Barcelona. Tem um salário em média mais alto do que os daqui, o que provoca o aumento dos preços dos imóveis em algumas regiões e gera a expulsão de pessoas com menor poder financeiro.
As soluções são um tanto diversas. Hoje está na moda viver em regiões centrais, de ruas peatonais, com praças. Então, hoje há muita concorrência para viver em bairros centrais de Barcelona.
Então, o que estamos fazendo? Buscamos atacar este problema de duas perspectivas. A primeira é a do turismo. Buscamos regular e governar o turismo de uma maneira diferente. Até agora, a política era de desregularização do turismo. Fizemos um plano de usos, que determina a regulação de praticamente todo o centro amplo da cidade. Nestas regiões está proibido abrir mais imóveis turísticos e hotéis.
Ao mesmo tempo, estamos incentivando o aumento de oferta turística em outros bairros. Também estamos trabalhando para criar mais habitação pública — Barcelona é uma cidade limitada, não tem muito para onde crescer. Hoje menos de 2% das habitações de Barcelona são públicas
E de todas as habitações de Barcelona, apenas 30% são aluguel. Precisamos mudar essa cultura de ênfase na casa própria, em que as pessoas passam toda a vida tentando comprar uma casa, e quando há uma crise imobiliária, a casa não vale nada.
Estamos buscando mudar as regras urbanísticas para ampliar a possibilidade de oferta de habitação pública. Também queremos incindir no mercado privado. Temos uma proposta de que cada projeto novo que seja construído em Barcelona incorpore um percentual mínimo de habitação social, como já acontece em Paris. E para isso temos que mudar as leis municipais.
Também estamos implementando uma proposta de áreas de preferência pública de compra. A cada venda de imóveis, o proprietário terá que notificar primeiro a prefeitura, que vai ter preferência de compra. A prefeitura pode não querer, mas terá a opção de comprar e criar habitação pública.
Precisamos de ferramentas como essa para combater a especulação, que é muito forte. Por exemplo, estamos realizando a renovação de uma antiga prisão em Sants, que agora será um centro comunitário, cultural, com áreas de lazer. Há duas semanas, os moradores do entorno começaram a denunciar que fundos de investimento internacionais estavam jogando pesado para comprar edifícios inteiros.
As reformas que fazemos para melhorar a cidade geram expectativas de valor muito rápidas, que esses fundos tentam capturar. Para combater isto, em cada um desses projetos de melhoria urbana, a Prefeitura faz no entorno um projeto de habitação social. É uma maneira de compensar e baixar a pressão do mercado imobiliário.
E vocês vão fazer habitação social também nas Super Ilhas?
Exato. Na Super Ilha do Poble Nou já temos um projeto que deve começar a ser construído. E em cada uma das Super Ilhas estamos propondo habitação social pública.
Isso acontece também quando recuperamos edifícios históricos. Recentemente, fizemos investimento público para ajudar a recuperar algumas casas, históricas, bastante características. E, logo ao lado, vamos fazer habitação social em um terreno vazio. Os proprietários das casas vieram reclamar, que não queriam habitação social ali. O que afirmamos foi: se vocês querem receber ajuda do governo para recuperar suas casas, a contrapartida é termos habitação social.
Temos que ir atuando caso a caso para evitar a gentrificação. Não podemos abrir mão de melhorar a cidade: ter ruas agradáveis, peatonales, reabilitar edifícios.
Falando em reabilitação de edifícios, vocês em Barcelona tem uma grande disputa com o Airbnb, certo?
Em Barcelona há aproximadamente 10.000 imóveis turísticos legais e cerca de 10.000 ilegais — muitos deles em Airbnb, mas também em outras plataformas. Estamos trabalhando pela legalização, para que os imóveis turísticos tirem a licença.
Então nossa gestão aplica a lei e exigimos às plataformas que só divulguem em seus sites os imóveis com licença. Se o imóvel não tem licença, não pode ser divulgado nos sites. Se as plataformas divulgam imóveis ilegais, a prefeitura multa os proprietários de imóveis e as plataformas.
Já multamos o Airbnb duas vezes, cada multa foi de 600.000 euros. Outras plataformas, como Trip Advisor, Booking, Home Away, quiseram cumprir a lei. Quando não cumpriram, aplicamos as multas e eles mudaram de conduta. Agora, só colocam anúncios com números de registros de licenças. Às vezes esses números são falsos. Quando isso acontece, notificamos, e eles retiram.
Então estabelecemos um protocolo de trabalho com essas plataformas muito positivo. Exceto com o Airbnb, que não quer dialogar.
E como vocês diferenciam os bed and breakfast dos imóveis para aluguel?
Na Catalunha, não existe legislação que regule os bed and breakfast (B&B). Eles são alegais — nem legais, nem ilegais. E cabe a cada município decidir como vai lidar com os B&B.
Para mim, há uma diferença entre a pessoa que vive em sua casa e aluga um quarto, e a pessoa que aluga um imóvel inteiro durante todo o ano. Então, o que estamos fazendo? Se você tem um quarto extra e quer alugá-lo por temporada, você tem que se registrar na prefeitura e tem uma limitação de dias de aluguel daquele cômodo.
Porque se você aluga o quarto durante todo o ano já não é mais a sua casa, passa a ser um negócio. Se você aluga 60 dias ao ano, tudo bem. Mas, se não, o direito à habitação se perverte e gera uma corrente especulativa: os proprietários dos imóveis passam a alugá-los mais caros, porque já sabem que o locatário vai sublocar um quarto para turistas. Isso gera um ciclo vicioso, e quem quiser um apartamento só para morar fica prejudicado.
Nosso desafio é regular esse mercado. Em um ano, passamos de 12 fiscais de imóveis turísticos para 100. Aplicamos mais de 3.000 sanções a proprietários pequenos, estamos processando mais de 200 imóveis, e temos hoje quase 3.000 ordens de interrupção de atividade ilegal. Tudo isso começa a aparecer, e agora as pessoas sabem que a prefeitura multa.
Voltando à questão da mobilidade e da poluição do ar. Como as políticas de mobilidade e espaços públicos pretendem reduzir esse problema de saúde pública?
Em Barcelona estamos morrendo graças à péssima qualidade do ar. Em Barcelona e em qualquer cidade.
Além de medidas urbanísticas e de mobilidade, implementamos restrições permanentes que começam a valer de forma pontual este ano e terão plena operação em 2020. Temos superado, constantemente, os limites de poluição do ar estabelecidos pela União Europeia.
Primeiro, temos que evitar superar os limites. Então, a partir do outono deste ano, quando ultrapassarmos os limites de poluição, tocará um alarme e restringiremos, naquele período, o deslocamento dos veículos mais poluidores. A partir de 2020, todos os veículos Diesel, fabricados antes de 2006, e Gasolina, fabricados antes de 2001, não poderão circular de forma permanente.
Isso porque temos um clima favorável em Barcelona. A brisa do mar leva a poluição aqui gerada para o interior do país. Ainda assim, temos superado os limites de poluição. E há cidades da Catalunha que tem recebido a poluição gerada em Barcelona.
Para além da restrição a automóveis, buscamos aumentar o uso do transporte público e dos modos não motorizados. Triplicar as ciclovias, desenvolver a nova rede de ônibus, congelar as tarifas de transporte público, incrementar todo o transporte metropolitano em ônibus interurbano e em trens. Tudo isso para conseguir que Barcelona não ultrapasse mais os limites de poluição e que reduza, ano a ano, os níveis de poluentes no ar.
A meta é reduzir em 40% as emissões de poluentes na cidade até 2030. Hoje sabemos que mais de 3.000 pessoas morrem anualmente na região metropolitana graças à poluição do ar. Esse número precisa ser reduzido, com urgência.
Você pode detalhar mais as políticas que vêm realizando para o sistema de ônibus?
Acabamos de fazer uma grande renovação no sistema de ônibus. Criamos uma rede ortogonal, mais eficiente, em que cada ônibus passa entre 7 e 8 minutos, e que conecta toda a cidade.
Redistribuímos a cidade com linhas principais, com pistas exclusivas, que se conectam a linhas complementares e, finalmente, às linhas de bairro, que têm ônibus menores. O governo anterior, de direita, retirou várias linhas de ônibus dos finais de semana. Recuperamos esses ônibus de bairro nos finais de semana. Aumentamos também as conexões das linhas com os equipamentos públicos.
Então o ônibus tem se tornado um transporte muito eficiente. Crescemos bastante o uso de ônibus em dois anos. Em 2016, tivemos cerca de 8 milhões de viagens a mais do que em 2015, um aumento de quase 5%.
Nossos ônibus já poluem menos, porque foram convertidos parcialmente para gás natural. Agora estamos trabalhando para ter ônibus elétricos. Colocamos quatro linhas de ônibus elétricos e queremos ir substituindo, pouco a pouco, a frota atual por ônibus elétricos.
E como é a participação do Tram (bonde elétrico) no planejamento de mobilidade de vocês?
Estamos também em plena batalha para aumentar a presença do bonde. Hoje as linhas de bonde estão fragmentadas entre a região sul e a norte, sem conexão. Temos então o projeto de conectar as duas áreas, criando trilhos na Avenida Diagonal, na região do Eixample, o que aumentaria muito a utilização do bonde na cidade.
Mas, para isso, teremos que tirar espaço de automóveis. E o desafio é que nessa região mora gente com bastante dinheiro, que não quer ver a troca de pistas de carros por bonde. Mas é uma questão de justiça social e ambiental.
Hoje o bonde é o transporte da moda. Na Europa, estão fazendo trilhos de bonde para todo lado. Em Nova Iorque acabaram de propor a conexão do Brooklin com o Queens através de bonde. Porque é muito eficiente: é cômodo, não polui, não gera impacto de ruído.
Roberto Andrés
Um dos fundadores da PISEAGRAMA, foi editor da revista de 2010 a 2020.
Como citar
ANDRÉS, Roberto. Entrevista com Janet Saenz. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, seção Extra! [conteúdo exclusivo online], 06 ago. 2017.