ESTAMOS AQUI
PARA RENOVAR
Texto de Lourdes Seixas Evarista, Libertina Seixas Ferro, Benedita Olaia Bezerra, Rosa Seixas Ferro Bezerra e Isabel Cavalcante Bezerra, em conversa com Adriano Mattos Correa, Ana Rabelo Gomes e Margarete Leta
Pintura de Toá, desenhos de Isabel Bezerra, Marina Seixas, Valdineia Pereira, Ivanir Silva e Nei Leite Silva
Cinco mestras, referências da construção em barro e da pintura de toá, contam as histórias do tempo dos antigos e refletem sobre os desafios da resistência do modo de vida Xakriabá junto ao território e às novas gerações. A construção de casas de barro permite que seja feita sobre elas a pintura de toá, gesto feminino que implica encontro, cuidado, afeto e beleza.
No tempo dos antigos, as casas usadas por nós, Xakriabá, eram de capim. Quando eu era pequena, a nossa casa era coberta com capim. Meu irmão cresceu, saiu da aldeia para trabalhar, ganhou algum dinheiro, voltou e comprou telhas de barro. Começamos então a cobrir a casa com as telhas. Tio Estácio nos ajudava, crescemos aprendendo com ele. Fazia as paredes, amarrava e nos mandava segurar: “Você, segura aqui! E você, consegue amarrar?”. Aprendi com ele a levantar as paredes de barro e, com dez anos de idade, eu já construía a nossa casa. Naquela época, tio Estácio já estava cansado, mas continuamos a fazer o que ele havia nos ensinado.
Desde aquele tempo, nunca mais precisei de alguém para construir para mim. Eu mesma faço a casa, preparo as furquias, conserto o telhado, levanto a parede e amarro tudo. Certa vez, negociei com um empregador que ele pagaria pelo meu trabalho tirando os enchimentos para a construção e carregando até a minha casa. No mato, eu tirei as varas e o cipó. Com os enchimentos que ele me trazia, fiz as paredes. Enchimentei a casa, embarreei e reboquei. Depois fui à fonte e trouxe o barro branco para passar sobre a casa.
Eu e Libertina íamos juntas até a fonte. Apanhávamos o barro para fazer as pinturas de toá porque não havia outro jeito de deixar a casa bonita. Achávamos bonito pintar a casa! Depois de pintá-la, costumávamos ir até a estrada e, de lá, ficávamos olhando para a casa, para ver se estava bonita mesmo. Daquele tempo em diante, as nossas casas nunca ficavam feias, estavam sempre bonitas! As mulheres gostam de ver as suas casas bonitas.
Levamos uma colherzinha, cavamos e derrubamos os torrões até encontrar o toá. Com uma colherzinha, pegamos um pouquinho e botamos em uma vasilhinha. Naquele mesmo lado, você acha outra cor e coloca em outra vasilha. Você procura as cores que precisa até juntar a quantidade. Tem gente que pensa que vai encher um saco, que vai achar um monte de toá, mas não é assim. É muito difícil tirar o barro para pintar. Os meninos não têm paciência, mas eu e Libertina temos. Saímos bem cedo e voltamos quando o sol já está de tarde.
“Como é que junta esse tanto?”, nos perguntam. Digo que é com paciência! Porque é difícil, sabemos que não vamos achar muito. Por isso, quando temos um tiquinho de barro, costumo dizer: “Vocês usem na pintura e, o que sobrar, deixem secar na vasilhinha! Botem para secar, juntem e amarrem em um saquinho que vai servir para vocês pintarem de novo, porque é muito difícil achar e trazer. Não podemos desperdiçar!”
Se tivermos paciência, achamos o barro de todas as cores procurando nos lugares que costumamos passar e já conhecemos. Há uma nascente aqui perto que tem todas as qualidades – preto, amarelo, roxo, rosa, azul, vermelho… Preparamos cada tinta de toá separada uma da outra. Você tem que ter os copinhos separados. Preparamos todos do mesmo jeito, mas é preciso separar as cores. Lá em casa eu guardo para pintar todo ano. Coloco em uma garrafinha e, as que sobram, não jogo fora, guardo tudo. Não podemos misturar uma cor na outra porque, se misturarmos, vira uma cor só. Se você botar separado, cada uma vai ter a sua cor. Podemos colocar um pouco de água, mas é importante deixar um pouco grosso. Se botarmos muita água, a tinta fica rala e não dá para pintar.
Alguns tipos de toá precisam ser pisados e depois misturados com água, outros não. Têm os mais duros que a gente precisa machucar. O preto mesmo é muito difícil para tirar porque ele é uma pedra dura. O preto daqui é bem preto mesmo. O povo até fala que estamos botando tinta no barro. Há outros lugares que tem barro preto, mas quando você vai pegar, ele não é preto como o barro que pegamos aqui para fazer os nossos desenhos.
As crianças se envolvem com as pinturas de toá e gostam de ajudar. Os meus filhos mesmo gostam. Quando estou pintando, um pega o barro e quer logo fazer. Quando estou sem tempo digo: “Este ano não, ano que vem vocês fazem!” Quando estive com a tia Rosa, tinha tanto menino envolvido… Tinha gente que não era da nossa aldeia Caatinguinha, era da Rancharia. Ficaram muito empolgados, nunca tinham visto uma pintura dessas. Um menino disse que era para a mãe dele fazer uma casa igual à da tia Rosa. “Para quê?”, ela perguntou. E ele disse que era para poder pintar. Aquilo alegrou o meu coração! Porque tem muitas falas que dizem que ninguém se interessa mais. Ainda tem gente que se interessa sim!
Eles me perguntaram onde eu tinha pegado o barro. Brinquei com eles: “Está em cima do seu nariz!”. Eles riram. Os meninos gostam. É por isso que a pintura de toá não deve acabar. Estamos aqui agora, mas vai chegar um tempo em que não estaremos. Então os nossos netos e filhos vão ficar para não deixar acabar. Um pegava um copo dali, outro pegava daqui, muito interessados em saber como a pintura funcionava. Perguntando e procurando aprender. Gostei de ver! Porque o certo é procurar. A pessoa que procura, sabe de tudo. Aqueles que não procuram, não vão saber.
Se tem um menino de quatro anos que nunca viu como é feita a pintura, quando ele ver, vai especular como ela é feita. Se acabarmos com esse modo de fazer as casas, ele não vai saber como se faz. Vai ficar curioso, mas sem saber como funciona. Por isso não pode acabar. Estamos aqui para renovar, para não deixar acabar.
Os mais velhos sabem que na época dos nossos avós existiam outras coisas, outras histórias. Minha mãe conta que a casa da mãe dela era tampada com casca de pau. Eu não cheguei a ver casas assim, mas ainda conheci as antigas casas de capim. Agora as coisas mudaram. Recebemos as casas de alvenaria, o que foi uma benção para nós, porque antes tínhamos que reconstruir a nossa casa de barro todo ano. Se hoje temos as casas de alvenaria, continuamos também com as casas de enchimento de barro. Nunca abandonamos as casas de enchimento, precisamos delas, pois é lá que nos sentimos bem. Não podemos abandoná-las, elas fazem parte da história Xakriabá.
Lourdes Seixas Evarista
Os nossos avós e bisavós cortavam as varas e as madeiras para fazer os enchimentos das casas. Os homens cortavam as furquias e as mulheres assentavam as varas de enchimento para serem embarreadas com o barro do chão. Sabiam que o barro mais forte era o de formigueiro. Era o barro mais seguro para embarrear a casa toda. Costumávamos amarrar com cipó, porém, como o cipó acabou nas matas, hoje temos que utilizar pregos. Assentar em riba era sempre com as varas, não era com os materiais que usamos agora. Se antigamente o telhado era de capim, com o tempo também começamos a usar telhas de barro, que vêm daqui mesmo. Além disso, não usávamos portas como as de hoje: colocávamos pauzinhos no lugar da porta.
As comidas também eram diferentes. Não conhecíamos arroz, comíamos canjica. Não tinha óleo, era gordura de porco. Comíamos feijoa, andu, feijão misturado com canjica, com angu e mongoló. Eram comidas muito fortes. Nós pisávamos o milho para tirar a canjica, o fubá e depois fazer o cuscuz. A vida não era ruim, era boa!
Às vezes, meu filho olha para a minha casa de enchimento e fala: “Mãe, por que a senhora não desmancha essa casa e faz de adobe? Sua casa está muito feia”. E eu digo: “Não, a minha casa de segurança é a de enchimento. Ela é de furquia”. Quando está chovendo, fico na minha casa de enchimento porque tenho medo de ficar na de bloco, ela é muito alta.
Aprendi a fazer a pintura de toá com as mulheres mais velhas que viviam aqui, as Xakriabá dos tempos antigos. Não fui eu que comecei. A pintura de toá teve início com uma tia que tinha habilidade. Ela pintava as paredes da casa, isso me chamou atenção e perguntei como ela fazia. Lourdes aprendeu comigo, quando era ainda pequenininha e vinha ajudar a pintar a minha casa.
Para embarrear toda a casa, minha tia demorava uma semana e, só depois, ela começava a alisar a casa. Pegava o barro branco, colocava na água e passava na casa toda, alisando para ficar branquinha. Cerca de quinze dias depois, ela começava a pintar a pintura de barro que nós Xakriabá chamamos de toá.
O toá é uma massinha de barro colorido que encontramos nas grotas e usamos como tinta – temos o barro preto, o amarelo, o azul… Separamos um pouquinho de cada um dos barros e colocamos em potinhos. Para fazer as pinturas de Toá, usamos um pouquinho de algodão enrolado em um pauzinho e pena de galinha. Pegamos um pau bem fininho, enrolamos o algodão e fazemos o risco. Vamos riscando com essa faquinha e passamos o barro com a pena de galinha. Pintamos galinhas, onças… Gosto de desenhar muitas plantas também. Hoje não pinto mais porque não aguento descer lá nas grotas para pegar os barros, já estou descadeirada. Temos que ter força para aguentar!
Libertina Seixas Ferro
Nós morávamos numa casa de palha de cabiçudo. Tirávamos as furquias e os caibros na mata, pegávamos para encaibrar tudo. Costumávamos tirar as linhas, a terça e a travessa e envarar por cima. Pegávamos as cobrinhas da palha, puxávamos e cobríamos. Quando chovia, não molhava não! Nós embarriávamos tudo e depois amarrávamos com o cipó de lagartixa. Quando não era cipó de lagartixa, era cipó de macaco.
A casa de barro era mais confortável, com menos calor que a casa de cimento e de piso. Era tudo aberto, porta não existia nessa época que nós vivemos. Alguns anos atrás, não tinha essa perseguição que temos hoje. Hoje, ninguém pode dormir com a porta aberta.
Eu gostava também de fazer umas barraquinhas de piteira, casinhas de piteira para torrar farinha. Nós aproveitamos aquilo que veio antes e seguimos em frente, mas nunca perdemos o passado pelo futuro. Até hoje eu tenho minha casinha antiga, só que a gente está mais de idade. Fica pesado para apanhar tanta coisa. Apanhar o barro para passar e poder pintar. Também sei fazer pinturas de toá. Eu gosto muito de desenhar e de fazer barrado nas casas. Gosto de desenhar pés de árvores, uns pés de café bem grandes!
Benedita Olaia Bezerra
Nós nos sentimos fortes quando as pessoas dão valor aos modos com que fomos criadas e dos quais nunca nos esquecemos. Nasci em um barraco de palha e fui criada dentro dele. Era um barraco beira chão feito pelo meu pai, onde convivíamos todos, sem divisórias. Cozinhávamos nas trempes colocadas no chão, porque éramos pequenininhos e nossa mãe tinha medo de ir para a roça e colocarmos fogo na casa. Não fazia o fogão para a gente não se queimar. Ela nos ensinou a fazer as coisas assim desde pequenininhos, é da nossa criação.
Somos da geração que viveu nessas casas e que tem grande amor por elas. Não desistimos nunca das casas antigas porque nelas nos sentimos fortes e mais à vontade. A respiração é outra. As casas de alvenaria foram feitas por causa do “chupão”, o barbeiro. Aqui tinha muito chupão porque as palhas iam apodrecendo e vinham os insetos. Foi quando a Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) decidiu fazer as casas novas. Ainda assim, quando falaram para a minha sogra que iam derrubar a casa dela com o trator para construir a nova casa, ela disse: “Não quero a sua casa não! Não vou perder o amor da minha casa!”. E ela não viveu na casa nova. Deu a casa de alvenaria para o filho e continuou cortando a madeira para fazer a casinha dela de enchimento. Sentimos esse amor porque veio dos antigos, porque nascemos vendo assim.
Meu pai nos criou na roça trabalhando nas cercas. Não conhecíamos arame, cercávamos a roça com a madeira que tirávamos ali mesmo. Ele fazia uma cerca chamada “espinho de peixe” que não deixava passar nada! Fomos criadas dormindo no chão, mas depois, quando fomos crescendo, passamos a cortar varas para fazer as camas de vara. Os colchões eram feitos com palhas de banana apanhadas no brejo. Depois de trabalhar na roça, não se jogava as palhas fora, elas eram guardadas para encher o colchão e os travesseiros quando algum jovem casal ia se casar.
Eu tenho saudade dos tempos antigos! Sempre me lembro da nascente da Aldeia Caatinguinha. Nós saíamos da Aldeia Custódio à noite para pegar água ao pé do morro, caindo dentro das grotas. Era uma cabaça de areia e uma de água. Quando a nascente secou, fiquei me lembrando de tudo que vivi lá. Todo dia você encontrava a família e a comunidade inteira. Você vinha de casa com a cabeça preocupada e quando chegava na nascente estava cheio de mulheres. Conversávamos e já saíamos saudáveis. Ficávamos sabendo de tudo na nascente.
Hoje, todo mundo tem água encanada em casa, porém não temos mais onde nos encontrar. Nós nos afastamos. Para você ir à casa de um amigo, tem que marcar dia e horário. Naquela época era tudo simples, mesmo sem telefone. O amor, o respeito e a amizade eram outros. Lávavamos roupa naquela pedra, pegávamos a gamela, íamos lavando e estendendo ali mesmo. Levávamos rapadura para comer com farinha.
A lembrança nunca morre. Foi um tempo sofrido, mas foi saudável. Nós não víamos o sofrimento. Hoje, se você der um pilão para uma menina nova pisar, a mão enche de calo. De madrugada, nós já estávamos no pilão! Foi como convivemos, por isso nunca nos esquecemos. Nunca podemos esquecer. É a cultura em que nascemos e que vamos segurar até o fim, enquanto estivermos vivas. Hoje, mesmo que tenhamos uma casa melhor, temos que ter o nosso lar do jeito que fomos criadas. Essa cultura não pode acabar, precisa ser passada de geração a geração, transmitida para os nossos filhos e netos. Se Deus der a oportunidade, também alcançaremos os bisnetos.
Quando fizemos o barraquinho beira chão na escola da Aldeia Custódio, envolvemos os alunos. Os professores trabalharam a matemática durante a construção, contando as varas: “Quantas varas vão para uma parede? Quantas varas vão para o telhado?” Fomos todos para o mato, tiramos as madeiras, tiramos as furquias, os caibros, as varas e os cipós. Mostramos aos alunos o que era o cipó e como se tirava o cipó. Há uma mata para tirar os cipós que amarram as paredes. Foram contadas quantas varas iam nas paredes, quantos nós amarravam as varas para segurar. Dividimos a construção em duas partes: uma foi tampada com a palha e a outra parte foi enchimentada para ser embarreada.
O trabalho que fazemos na escola é com todas as crianças, porque pensamos que se hoje estamos vivas, amanhã não sabemos! A cultura não pode acabar, ela tem que ficar. Os mais novos têm que aprender a nossa história. Preferimos não acabar com as madeiras, então tiramos falhado para deixar os matos. Precisamos ter sombra para a transpiração e para os passarinhos, porque os passarinhos vivem nos matos. Também fazemos adobe, cavamos o barro, amassamos e colocamos na fôrma para fazer as casas de adobe.
Sabemos fazer os trabalhos das construções antigas. Das novas, não temos conhecimento e dependemos dos outros. Mas o que a gente já aprendeu, a gente mesmo põe a mão na massa. Meu genro fez o meu fogão de cimento, tudo bonitinho. Colocou cimento e quando ele deu as costas, eu: “Barro nele!”. Ele falou: “A senhora não deixou o cimento”. Não, eu não queria cimento! Não queria porque com o barro, a qualquer momento, eu posso renovar o fogão. Deixo o meu barro lá no saco e quando o fogão sujar de carvão, eu faço o barrinho, passo ali e ele está novo. “Não tem jeito com a senhora não!”, ele disse. Falei: “Não tem jeito mesmo não”.
Às vezes, a pessoa não conhece a pintura de toá, mas sabe fazer o desenho, sabe riscá-lo, e talvez a outra não sabe. Então aquela que não sabe desenhar, pinta. Uma pessoa vai riscando enquanto a outra vai pintando. Fomos acostumadas a viver assim, no mutirão. Nos juntamos e limpamos a roça. Quando terminamos a nossa roça, ajudamos outra pessoa. Os mais velhos sempre viveram assim.
A madeira para construir casa tem que ter “ambro”, um ferro que tem dentro da madeira. Se a madeira for branca, ela não atura. Quando serrada e cortada, ela tem um cerne marrom dentro. Você tira a casca branca e deixa só o cerne. Aquilo ali atura. O jatobá é fraco. A aroeira é a melhor madeira para fazer a furquia, mas não achamos muita aroeira hoje no nosso território. Estamos preocupadas com a juventude e como vai construir. A nossa maior preocupação hoje é achar as madeiras no território.
A história nunca acaba. Nós acabamos, mas a história continua para tudo sempre ser renovado. Enquanto eu estiver viva, vou ensinando para a juventude. Às vezes, você não pode fazer, mas pode falar. Hoje, o nosso conhecimento também está registrado em papel, mas continuamos podendo renovar. Se um papel ficar velho, passamos para outro. Se algum dia nós não estivermos mais aqui, o que fizemos estará registrado e nossa família saberá que temos uma história.
Todo tempo nós aprendemos e fortalecemos aquilo que vivemos. Hoje, vejo as pessoas preocupadas com a construção das casas e sempre digo aos meu netos: “Quando vocês crescerem e quiserem construir, não pensem em fazer uma casa de bloco, porque nós vivemos na terra, nascemos dela e temos todo o material que precisamos aqui”.
A minha filha fez uma casa de adobe e rebocou com cimento para a chuva não derrubar as paredes. Por um tempo ela falava que queria uma casa de bloco e eu dizia: “Deixei a minha casa de adobe para construir a minha casa de bloco para receber as pessoas que vinham nos visitar, mas sonho em morrer numa casa de adobe e chão batido!”
Na casa de bloco, não tenho o sono que eu tinha numa casa de chão batido. A casa de barro tem respiração. Ela mesma tem o oxigênio dentro dela. Só quem constroi é que sabe como ela é. Na seca, é fresquinha. Nas águas, é quente. Ela funciona por si mesma. Na casa de bloco, para sentir o ar fresco, só ligando o ventilador. A casa de bloco também é complicada porque se você não tiver dinheiro, não consegue renovar com o que tem no território e ela fica suja. Tem que ter dinheiro para comprar tinta. Uma casa de barro, você mesma pode renovar a hora que quiser, é incrível!
Rosa Seixas Ferro Bezerra
Nasci e vivi muito tempo em casa de capim e em casa de casca de pau também. Aprendi a fazer muitas coisas com os meus avós nessas casas, pois não havia casas de outro jeito. O costume, como é até hoje, é fazer as coisas e os filhos e netos vão ajudando. Crescemos dentro dessa cultura, aprendendo ali mesmo. Os meus filhos também aprenderam a nossa forma de viver.
Para fazer casa de casca de pau, havia aroeira, embiruçu e angico. É preciso, porém, saber o tempo certo para tirar, que é quando o tronco solta a casca. Se você tirar direto, acaba com os paus. Depois, começamos a fazer a cobertura da casa com capim, mas as paredes continuavam sendo feitas com os mesmos materiais: vara, cipó e barro. Às vezes, apenas com uma semana já estávamos dentro da casa, porque chegava um bando de gente que se juntava para ajudar a fazer. Ninguém tinha medo de cair parede nem de estar mal construída, pois fazíamos sabendo da firmeza: como é que vai cair se não está por cima da terra, está dentro da terra, vindo de baixo para cima?
Não consigo viver nas casas de alvenaria. Não consigo ficar sem a minha casa de barro e o meu fogão a lenha, meu forninho de torrar farinha e a fornalha de cozinhar panela grande. Se não for para ser assim, não está bom para mim! É uma tradição que vem dos antepassados. Aprendemos dessa forma e hoje temos força de vontade e coragem para continuar.
Conhecemos tudo o que botamos a mão e sabemos fazer. Só fica no tempo quem quer, porque basta entrar na mata, cortar uns paus e, daqui a pouco, tem um barraco feito e está dentro de casa, guardado. Uma coisa que não aprendemos foi ter medo de viver dentro de casa; para mim tanto faz fechar a porta ou deixar aberta. Muitos me dizem: “Mas você não tem medo? E se alguém chegar aqui de noite?”. Eu não tenho nada com ninguém para chegar aqui de noite e me atacar. Eu não tenho medo.
Os filhos são criados dessa forma e os netos também. Isso é um conhecimento; se não tivéssemos essa cultura, hoje poderiam acontecer coisas piores. Hoje muita gente só quer mordomia, vida boa. Mas a vida não é assim! Uma hora está em cima, outra hora está embaixo. Sobreviver é difícil. Valorizamos o que aprendemos com os mais velhos, o que conhecemos e sabemos fazer.
Às vezes, você tem tudo dentro de casa, mas acha que não tem nada! Você tem um forno de torrar farinha, um pé de mandioca que você arranca, lava, coloca no forno e daqui a pouco a farinha sai. Você tem a lenha no mato. Eu não ligo para fogão a gás. Tenho um novo em casa, mas não ligo, fica lá tampado. É o meu jeito, fui criada assim. Levantar de manhã cedo, limpar o fogão, botar a lenha, acender o fogo, botar a água do café, esperar ferver, coar. Adoeceria na mordomia!
Temos um conhecimento grande do barro, da terra que vivemos em cima. Com o que temos nela, todos sobrevivemos. Ela nos ajuda muito, se soubermos usá-la. Quando você está envolvido com a roça ou já se aproxima a chuva e não tem tempo de reformar a casa de enchimento, de ver quais paus prestam e quais não prestam para tirar e colocar outros, você reforma a casa com barro. Ela cola nesse barro e não vai cair. Até que dá tempo de correr atrás e reformar a casa.
Aprendi a fazer casa de adobe com meu pai. Ele nos ensinava a riscar, botava a linha e ensinava a esquadrejar certo. Ensinava tudo para nós, da casa, das madeiras. “Cada peça dessa aí tem um nome!”. Às vezes eu falava: “Essas madeiras são de riba”, mas cada madeira tem um nome. Se vai tirar e não sabe, dá errado. Ele ensinava: “Isso aqui é linha, isso aqui é travessa, isso aqui é terça, esse daqui é esteio, que é a furquia que poda. Você enfia a furquia ali, a travessa de lá ou a linha, coloca dentro do gancho dela”. Quem vai arrancar aquela furquia? Não tem como pensar que a casa vai cair! Nem na ideia ela cai, pode ficar tranquila!
O meu pai não teve o privilégio de estudar, porque não tinha escola. Ele, contudo, fazia um tipo de estudo com a gente, por isso agradecemos a criação que nos deu. Não deu estudo, mas deu essa criação. Isso foi muito importante. Ele explicava para nós, quando íamos para o mato, o que tirar dali. Chegava, amontoava as madeiras, espalhava no terreiro e nos pedia para apanhar tal madeira. Já íamos certos naquela madeira que ele queria. Não sabíamos o nome, mas trazíamos para ele. Quando ele pedia outra, falava o nome. Nós então íamos naquela outra, que já conhecíamos. E assim fomos aprendendo, fazendo o serviço juntos, e os nossos filhos vão aprendendo conosco também. E vão passar para os filhos deles.
Os meus filhos todos sabem fazer. Eles botam a mão. Se eu chegar e tiver alguma coisa fora do lugar, eu falo: “Podem consertar isso que está errado!” Meu pai foi duro com a gente para ensinar, então também fui. E eles consertam. Pai não era de ficar repetindo. Falava duas ou três vezes e já estávamos com o que ele falou na cabeça. Cortava primeiro a madeira da cumieira, depois a terça e a travessa. E botávamos tudinho dentro da cabeça.
Minha neta tem dez anos e preciso brigar com ela porque está sempre cortando os brotos do tinguí para fazer casinhas de brinquedo. “Corta esses paus não!” Ela entra lá no fundo, corta e finca as furquias direitinho, botando os paus em riba. Só que não tem segurança e nem corrida, mas não é para morar mesmo! É assim que as crianças vão aprendendo.
Nos pés de mato, Deus já deixou o cipó. Mato que já é de geração. Já temos o lugar onde pegamos. O cipó nasce no mato, vai produzindo por raiz na terra e enrolando nos paus. Depois, você vai e corta, cuidando para não destruir, cortando as galhas do cipó que estão menores. Quando você junta um montão, amarra e arrasta para fazer a casa.
O cipó serve para amarrar as varas em riba da casa. Você dá o nó na primeira vara. Depois, vai botando as outras, de duas pessoas, porque não vai de uma só, a não ser que você use a boca para segurar, como costumamos fazer quando não achamos ninguém. Você amarra o primeiro nó, bota as varas e vai amarrando o cipó em cada vara que passa. Dá um nó e torna a vir com o cipó arrochado na madeira até que chegue na última de baixo. Depois de tudo amarrado, você enche os buracos da parede.
Existem vários tipos de cipó: o cipó branco, o de boi, o de lagartixa, o chato, a cobra… Todos servem. Tem um que é grosso e precisa rachar em dois ou três. Com o cipó croatá você faz corda, porque ele é forte. Mas tem época de arrancar. É antes de chegar a seca, quando está com as folhas cheias, porque quando seca, gruda e não solta. É cheio de espinhos que devem ser arrancados. A casca verde, você espreme e abre, sai e fica a seda. Você tira seda por seda, raspa com a faca, faz um fiapão e bota pendurado para secar. Com ele você faz bolsa, chapéu, esteira, o que quiser!
O barro tem várias veias. Você abre um buraco e vê uma barroca de uma cor e outra de outra. Você vai cavando… Pode ser que o de cima seja mais fraco e você não queira usar. Vai descendo e o barro vai ficando mais forte. Quando você faz o barreiro para embarriar o pé da parede de barro, vai torando com a mão os pedaços de barro e, de onde você tora, vem enrolando, faz o tubo dele e coloca dentro da bolsa. Assim eles já ficam do tamanho do buraco do enchimento e você só coloca um atrás do outro e rapidinho consegue encher uma parede. Depois, é só rebocar os buracos para ficar uma belezinha!
Ainda vai ficar enchimento de fora, vara de fora. Para tampá-los, você vem com o mesmo barro e enche a parede. Depois que ela secar, você vai ao formigueiro, que é uma terra macia, mais lá de dentro da terra. Ela é fácil de trabalhar. O barro fica bem mole e vai jogando na parede, passando a mão. Rapidinho a parede está rebocada e, com um pouquinho de água, passa a mão e ela já fica lisinha. Deixa secar e pode vir com o barro branco: nem parece que lá dentro tinha cipó! E agora você já pode trabalhar nos desenhos. Há tempo que você está com o toá de molho para fazer as pinturas.
O toá é de grota, só tem em grota. Quando saio para apanhar, é um dia. Conhecemos o toá só de olhar, é da tradição. Há vários para quem conhece e vai fazer a pintura da cor que quiser. O toá é leve, é um barrinho. É como uma lajota, mas é bem lisinho e macio, parece um talco. Por fora, parece uma pedra, mas depois de trabalhado, é bem cremoso.
Temos que fazer juntas. Não é todo mundo que faz tudo. Uma tem um desenho na cabeça mas, às vezes, não tem a cultura de trabalhar nele bem e faz torto. E não pode fazer torto! Se errar, você tem que passar uma pazinha, pode ser de aroeira ou de outro pau para arrumar. Depois, você vem restaurando tudo em volta dele. Se você errar um desenho, tem que raspar a parede para desmanchar e tem que passar outro barro branco. E não dá para fazer o desenho naquele momento, porque está molhado. Dá mais trabalho. Se todo mundo está junto e todo mundo sabe o que está fazendo, fica feito para toda a vida.
Nem sempre pintamos de uma cor só. Fazemos muitos tipos de árvores do campo. Às vezes, se um barro não combina com uma árvore, misturamos com outro. Cada desenho tem uma opção de cor ou mais: se a árvore for ter uma madeira escura, ela pode vir com o rabisco preto e terminar com a folha verde. Não tem como acabar com ela de outro jeito, porque ela é assim. Para fazer a folha do pau, nós tiramos as folhas das árvores, pois não tem barro verde. Olho nas árvores a cor das suas folhas, se é escura ou se é mais clara. Pego as folhas e amasso num pano com um pouquinho de água. Não bato as folhas no liquidificador. Dissolvo e espremo no barro. Tudo natural do mato. Não tem outro jeito de fazer árvore.
Qualquer tempo é tempo de fazer essas casas. A gente só tem uma avaliação da lua por causa das madeiras. Lua boa é a que a gente tira para a madeira durar. Para fazer as furquias utilizamos aroeira, braúna e às vezes jatobá. Se você tirar quando a lua não está boa, ela não dura muito tempo. Algumas madeiras dão cupim, porque tem pau que isso já é de nascença dele. A tendência dele já procura o cupim. E tem outros que não. A lua boa é depois da nova, no quarto ou quinto dia depois. Enquanto não tivermos a lua assim, não tiramos a madeira.
Sempre me lembro de quando íamos ao brejo tirar a taboca. Tem a taboca de canudo com vara e a taboca de palha. Pegávamos a taboca, trazíamos para casa na cabeça, usávamos o croatá e tirávamos a imbira para amarrar as palhas e fazer as esteiras. Hoje, nem brejo tem mais por conta da escassez. Eu sinto muito porque não acho mais a palma para fazer esteira. Não temos esteira, mas a vontade de fazer nós temos. Sabemos fazer e ensinamos para quem quiser aprender. Nunca tive um emprego, sempre trabalhei na roça. Se o tempo mudar e não tiver mais emprego, como as pessoas vão viver? Vão sofrer. Se os jovens tiverem na ideia o nosso jeito de viver, não vão sofrer. Quem tem coragem, levanta e faz.
Tenho nove filhos. Eu podia ter o que houvesse de bom, mas deixava no canto. Fazia primeiro o que era da tradição para dar aos meus filhos. Perguntavam: “Por que a senhora não fez aquele?”. E eu dizia: “Fiz esse aqui para te ensinar, porque não sabemos se aquele ali vamos achar amanhã. No dia em que você não achar, vai querer o da tradição e não vai ter mais”. Não criamos os nossos filhos dando tudo. Criei os meus com um pouco do duro e um pouco do mole. É beiju, cuscuz, farinha, pipoca e paçoca. Deixa o pão lá, depois você come!
Quando a pessoa tem força de vontade, ela consegue tudo o que quer. Hoje, com a internet, a juventude não está mais focada na tradição. O que temos, nós passamos, porque o nosso desejo é que todos aprendam. Mas não são todos que querem. O que eu tenho, nunca esqueci, mas uma hora posso esquecer. E o que está no texto, nunca será esquecido. Temos vontade desse conhecimento não acabar. Éramos todos saudáveis, não tinha ninguém doente. Os que aprenderem, poderão ter uma vida boa como foi a nossa. Tínhamos uma vida sofrida, mas não a sentíamos assim. A vida era boa. Nós trabalhamos com o nosso esforço, vivemos dele e é isso que temos para ensinar. Não ganhamos nada para isso e queremos ensinar mais. Bem-aventurado aquele que cata, guarda e tem todo esse conhecimento. Isso é lutar com sabedoria. Sabedoria para sobreviver. Queremos mostrar a vida desse povo que é vivo e forte.
Isabel Cavalcante Bezerra
Lourdes Evarista foi lavradora, construtora e pintora da Aldeia Caatinguinha, Terra Indígena Xakriabá, em São João das Missões, Minas Gerais. Atuou também como professora na Formação Transversal em Saberes Tradicionais da UFMG.
Libertina Ferro, Benedita Bezerra, Rosa Bezerra e Isabel Bezerra são lavradoras, construtoras e pintoras da Terra Indígena Xakriabá, em São João das Missões, Minas Gerais. Libertina e Benedita vivem na Aldeia Caatinguinha; Rosa e Isabel vivem na Aldeia Custódio. As mestras atuaram também como professoras na Formação Transversal em Saberes Tradicionais da UFMG.
Marina Seixas e Valdineia Pereira são pintoras e vivem na Aldeia Caatinguinha, Terra Indígena Xakriabá, em São João das Missões, Minas Gerais.
Ivanir Silva e Nei Leite Silva são educadores, pesquisadores e artistas e vivem na Aldeia Caatinguinha, Terra Indígena Xakriabá, em São João das Missões, Minas Gerais.
Ana Rabelo Gomes, Adriano Mattos Correa e Margarete Leta são pesquisadores e professores da Universidade Federal de Minas Gerais. Ana Gomes é antropóloga e atua na Faculdade de Educação da UFMG; Adriano Correa e Margarete Leta são arquitetos e atuam na Escola de Arquitetura da UFMG.
Notas
Este ensaio foi produzido a partir de uma roda de conversa entre Adriano Mattos Correa, Ana Rabelo Gomes, Margarete Leta e as mestras xakriabá, no dia 21 de setembro de 2021 na Aldeia Caatinguinha, Terra Indígena Xakriabá, São João das Missões, Minas Gerais, no contexto das articulações de apoio da UFMG após o incêndio da Escola Xukurank ocorrido em junho de 2021. A conversa foi registrada em áudio, transcrita por Juliana Alencar e Lucas Carvalho e editada por Lucas Carvalho e Renata Marquez, em diálogo com as autoras. Este ensaio é também uma homenagem à memória da mestra xakriabá Lourdes Seixas Evarista, que nos deixou em junho de 2023, na Aldeia Caatinguinha. Registramos aqui nossa saudade e imensa gratidão por seus ensinamentos e pela generosa convivência. Salve Lourdes!
As pinturas de toá que acompanham este ensaio foram elaboradas por Isabel Bezerra, Marina Seixas, Valdineia Pereira, Ivanir Silva e Nei Leite Silva in situ sobre parede do Museu de Artes e Ofícios, Belo Horizonte, Minas Gerais, no contexto da exposição A água é mãe da terra, em cartaz entre 01 de setembro e 04 de novembro de 2023, com curadoria de Juliana Gontijo. As pinturas foram fotografadas por Lucas Carvalho e Thaís Braga.
Como citar
EVARISTA, Lourdes; FERRO, Libertina; BEZERRA, Benedita; BEZERRA, Rosa; BEZERRA, Isabel. Estamos aqui para renovar. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, seção Extra! [conteúdo exclusivo online], 10 mai. 2024.