EXPEDIÇÃO PELO
RIO DOCE
Bárbara Ferreira
Durante 11 dias, a jornalista Bárbara Ferreira percorreu todo o itinerário da lama da barragem de rejeitos que se rompeu em Bento Rodrigues, em Minas Gerais, e foi até o Espírito Santo. Foram 700 quilômetros e 12 cidades visitadas. O que ela relata traz as múltiplas dimensões concretas da maior tragédia ambiental do país.
O poeta Pablo Neruda perguntou uma vez: “se todos os rios são doces, de onde o mar tira o sal?”. Mas ele não sabia que nem todos os rios eram doces. Eles são de águas doces, mas doce mesmo é o rio que corta parte das Minas Gerais, que forma um grande vale e que corre até o mar pelas terras do Espírito Santo. Esse vale tem seu nome: Vale do Rio Doce. Poético até, se não fosse irônico. Nem o rio é mais doce e tampouco o vale. E a culpa é justamente de uma empresa que se criou ali e carregou em seu nome essa preciosidade. E é assim que a Vale (antiga Vale do Rio Doce), por meio da irresponsabilidade de uma de suas empresas, a também mineradora Samarco, matou tudo isso. Com uma enxurrada de lama, vidas foram tiradas, animais foram mortos, espécies estão ameaçadas e falta água para beber. Mas talvez, o mais doloroso é pensar que esse rio nunca mais será o mesmo. Esse imaginário de uma terra de riquezas e de águas que carregam lembranças de uma vida, foi embaçado pela cor alaranjada da lama de minério. Ainda mais irônico do que pensar que o Vale do Rio Doce foi morto pela empresa que nasceu dele, é pensar que ele foi morto por rejeitos do minério que vem de suas terras.
Hoje, não se trata de falar apenas de fatos, números e mensurar o dano. Mas sim de lembrar dessas vidas que surgem e se mantém ao longo do rio. São indígenas, ribeirinhos, vilas, produtores rurais, e até grandes cidades. Vamos dar voz a essas pessoas e lembrar que a sua força – que vinha dessas águas – está abalada e o futuro ainda é incerto. Ao longo dos mais de 800 km de extensão do rio Doce, incontáveis famílias se formaram, se criaram e fizeram uma história. O rio, que já vinha sofrendo com uma seca, desmatamento e poluição, parece ter recebido agora, o seu desfecho mórbido. Quase como um cortejo fúnebre, a lama chegou ao mar carregada não só de metais e rejeitos, mas também do choro de milhares de pessoas.
Água
Um dos primeiros impactos quando a lama atingiu a bacia do rio Doce é a iminência de uma falta de água. Depois de assolar o distrito de Bento Rodrigues, grande parte da zona rural de Mariana e a cidade de Barra Longa, ela chega ao rio Doce. Nos primeiros dias, o aviso já era claro: chegará até o mar. Mas a maioria das pessoas que dependem dessa água para consumo próprio não acreditava nessa sentença de morte.
A primeira grande cidade atingida – que capta água diretamente do rio Doce – foi Governador Valadares. Dois dias antes da chegada dos rejeitos, já era montada uma força-tarefa, mas os moradores ainda pareciam não acreditar. Enquanto a prefeitura soltava um carro de som anunciando em alto e bom som que a situação era grave, muitos se aglomeravam na ponte da Ilha dos Araújos – no centro da cidade – para ver a chegada do mar de lama.
“Estamos preocupados, mas há tempos não via o rio assim, cheio. Tenho medo de uma contaminação, mas acredito que se houver chuvas, essa lama vai embora”, disse a autônoma Marina Carvalhaes, 51.
A cidade ficou com o abastecimento interrompido por quase duas semanas e foi preciso buscar água em outras cidades e montar um esquema de distribuição de garrafas de água mineral. Distribuição essa, controlada pelo exército. Em meio ao desespero pela água, houve saques a carregamentos e uma carga contaminada por querosene – enviada pela Vale.
A partir de Governador Valadares, várias outras pequenas cidades foram prejudicadas até a divisa com o Espirito Santo. Talvez uma das menores e mais impactadas tenha sido Galileia. Ali, moradores se viram como podem. Buscam água em fazendas vizinhas, enchem galões, estocam e até pagam frete para quem pode ir em minas, na zona rural do município. Para a auxiliar de serviços gerais, Cíntia de Jesus, 49, o sentimento era de que eles estavam deixados ali, naquela situação. “Não sei mais o que vamos fazer. Não temos água para beber, para tomar banho, para nada. A situação é crítica, muitas famílias tem crianças pequenas e ninguém sabe como resolver essa situação”, lamenta.
O desespero por água chegou também ao Espírito Santo, mas aos poucos, as prefeituras tem procurado alternativas para a captação. O maior problema é para quem vive na zona rural e estava acostumado a captar diretamente do rio. E para muitos, a incerteza, já que essas alternativas de tratamento e captação de água ainda são novidade e ninguém sabe ao certo como será o futuro.
Ofício
Muitas vezes, não é preciso ser biólogo, ambientalista ou ter diplomas para entender o que está acontecendo com o rio Doce. Para os pescadores, que conhecem cada cantinho desse curso de água, é tudo muito claro. “Ah, acho que pescar aqui agora, só daqui há uns 20, 30 anos”, dizem todos eles. É unânime. Para eles, que sobrevivem dos peixes desse rio, ver a morte dos animais é desesperador. “Eles não conseguem respirar. Ficam sem oxigênio”, também concordam todos eles.
Mesmo sem saber exatamente qual é o processo que leva a essa “falta de oxigênio” e o que tem naquela lama, eles garantem: os animais estão morrendo, sendo asfixiados um a um. Ao invés de retirar os barcos da água e esquecer o rio, eles fazem o contrário. Alguns preferem recolher os peixes e enterrá-los, outros resgatar os que ainda tem vida. Alguns apenas rodam pelo rio, tristes, tentando entender a situação.
São milhares de pescadores até a foz do rio e todos eles dizem sempre a mesma coisa. Questionados sobre qual é o sentimento em ver a lama chegar, eles respondem: tristeza. E uma palavra que define tudo isso: morte. E o que eles esperam: que os responsáveis venham apresentar uma alternativa de vida a eles, já que a que eles conhecem morre com o rio.
O pescador Reinaldo Gonçalves, 55, é um desses. Ele diz não saber mais como levará a vida e acredita que nunca mais pescará nesse rio. “Ah, com a minha idade não sei mais se pesco aqui. Agora fica o questionamento sobre o que vamos fazer. Pescar é o que eu sei fazer e eu não posso mais”.
E assim, eles aguardam o desfecho dessa história. Junto com os pescadores, também estão ameaçados os produtores rurais, as populações ribeirinhas e principalmente quem é da zona rural, que tem o rio como fonte de água, alimento e vida.
Mineração
Há alguns séculos, a região de Mariana viveu tempos áureos com a descoberta de riquezas incontáveis em suas terras. Ouro, ferro, minérios tantos. Uma abundância só. Até então, uma terra cheia de montanhas, todas elas lotadas de metais reluzentes. Aos poucos, esse ouro e todas essas preciosidades naturais começam a ser exploradas e lá nesse tempo distante, pessoas já começavam a sofrer os impactos da mineração.
Durante as bandeiras, eram os paulistas quem usufruíram de nossa riqueza. Em seguida, a coroa portuguesa, que vê no Brasil e mais especificamente em Minas Gerais, o balde de ouro que os salvaria. Ouro esse, que era extraído mediante trabalho escravo e com impostos altíssimos. Parte dele, inclusive financiando a revolução industrial na Inglaterra. Essa reflexão leva a pensar em como tudo começa, mas salientando, que a ganância sempre falou mais alto.
Independência vem e a extração mineral começa a ser um tesouro para o país, ou pelo menos deveria ser. Mas mesmo livres do império, o sistema capitalista transformou essa extração em mercado, em exploração do trabalhador, em matéria prima para exportação. Dando nome aos bois, chegamos a Vale do Rio Doce. Estatal, prestigiada e motivo de orgulho dos brasileiros até meados dos anos 1990. Privatizada a preço ínfimo, essa lógica de mercado se torna ainda mais brutal. Exportar para a China, otimizar a produção, vender a qualquer custo. E agora, vem o custo. O mesmo da época da monarquia: vidas, nossos recursos naturais e hídricos, nossas belezas e nosso povo. Povo esse que está sofrendo ao ver com olhos incrédulos, tudo acabar em lama.
Séculos depois a Vale conseguiu fazer com o rio doce, o que toda essa longa história da mineração ainda não havia conseguido. Matá-lo. E agora, quem vai pagar essa conta?
Bárbara Ferreira
Jornalista, formada pela PUC Minas, especialista em Jornalismo Cinematográfico e repórter de Cidades no jornal O Tempo.
Como citar
FERREIRA, Bárbara. Expedição pelo Rio Doce. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, seção Extra! [conteúdo exclusivo online], 01 dez. 2015.