
MISTURADO
IGUAL A GENTE
Texto de Jera Guarani, em conversa com Manuela Carneiro da Cunha, Lucas Keese e Karen Shiratori
Ara Pyau, fotografias de Luiza Calagian, com edição de Bruna Keese e Julia Tranchesi
A aldeia Kalipety, onde vive Jera Guarani, localizada na Terra Indígena Tenondé Porã, no extremo sul da cidade de São Paulo, toma seu nome dos eucaliptos que ainda se encontram na região e que hoje são utilizados como lenha e material de construção pelos Guarani. Jera é uma das lideranças que, junto a um coletivo que se organiza politicamente através do território tradicional, anima o trabalho de recuperação da terra, das sementes tradicionais e dos conhecimentos associados à biodiversidade, a partir de uma dinâmica política descentralizada e antipatriarcal.
No extremo sul da maior cidade da América Latina, o povo Guarani vive na Terra Indígena Tenondé Porã. Até 2016, cerca de mil pessoas deste povo viviam em duas aldeias localizadas em um diminuto território de 56 hectares de terras reconhecidas oficialmente pelo Estado. Após décadas de lutas, os Guarani conseguiram o reconhecimento da ampliação dessa área, que passou a quase 16 mil hectares. Ali foi formada, em 2013, a aldeia Kalipety, uma retomada que se converteu em um dos mais importantes polos de recuperação da vegetação da Mata Atlântica da cidade e um polo de produção de agro biodiversidade.
Retomada é um modo de chamar as novas aldeias levantadas em locais afastados da cidade. Algumas foram criadas em áreas do território tradicional não ocupadas anteriormente; outras, em locais que já haviam sido ocupados, mas que os Guarani abandonaram por diversos motivos, incluindo a violência dos não indígenas. Na última década e meia, houve uma redispersão dos Guarani da Terra Indígena Tenondé Porã em direção a essas regiões, formando doze novas aldeias. São aldeias com população menor e acesso à mata e a áreas de plantio importantes para o modo de vida tradicional.
As retomadas são uma estratégia política dos Guarani para garantir e cuidar do seu território em toda a sua extensão. Em contrapartida, elas ficam em áreas com difícil acesso ao comércio e aos serviços fornecidos pelo Estado, como os postos de saúde, instalados nas duas aldeias antigas. Ao longo dos séculos, os Guarani foram expulsos dessas áreas, ao mesmo tempo em que eram utilizados como mão de obra por sítios, fazendas e empresas em diferentes atividades econômicas, incluindo o plantio e a exploração de eucalipto ligado à indústria de celulose. Atualmente, as aldeias guarani se multiplicaram e iniciaram o trabalho de recuperação da floresta e do rio, fortemente impactados pelas atividades econômicas na região.
[Manuela Carneiro da Cunha] O número de variedades do milho tradicional está sempre aberto em virtude da maneira pela qual vocês cultivam e que permite a criação de novas variedades através da mistura na roça. Quantas variedades de milho existem hoje na Kalipety? E como essas variedades foram criadas, conservadas ou recuperadas? Qual a história dessas variedades?
Eu nasci na Terra Indígena Tenondé Porã, um território que tinha cacique, vice cacique, cabo e capitão. Em 2008, começamos ali o pensamento de uma outra vida para o território, que se soma à luta pela demarcação. Iniciamos então o movimento de sair da aldeia para fazer as retomadas, com todo mundo junto. É quando também começamos o trabalho de sustentabilidade, para trazer de volta as nossas comidas. Até os meus 22 anos, eu nunca tinha visto a variedade tradicional de milhos guarani que os mais velhos contavam.
Há alguns anos, o Centro de Trabalho Indigenista nos enviou caixas de fotografias nas quais havia muitas fotos dos milhos. Os Guarani estavam sempre acompanhados de montinhos de milhos. Avaxi para é o milho mais comum e que o pessoal mais gosta. Avaxi paraguaxu tem a semente maior. As pessoas também apareciam nas fotos com montinhos de milho avaxi ju, que é o amarelinho, e milho avaxi pytã, que é o vermelho. Na casa de reza, o milho aparecia nas fotos pendurado num pauzinho, na beira ou em cima do fogo, para preservar. As variedades de avaxi sempre estavam separadas. Pensei: Como eles faziam para preservar a variedade?
Avaxi pytã, avaxi ju, avaxi para’i, avaxi paraguaxu, avaxi tove, avaxi pororo… as aldeias guarani preservam muitas variedades de milho até hoje. Os milhos têm também uma diversidade de cores: vermelho, branco, amarelo, preto… Os Guarani têm essa dinâmica de plantar separado ou em tempos diferentes para preservar as variedades. Aqui temos tipos de avaxi que buscamos na Argentina, no Rio Grande do Sul e no Paraná e que foram incorporados à nossa dinâmica de plantio. Além disso, na Kalipety, estamos no último pedacinho da Mata Atlântica, ainda com muita presença de abelhas nativas. Elas é que fazem o trabalho de polinizar os milhos.
Neste novo território retomado, que hoje tem 14 aldeias, existe uma dinâmica interna muito positiva de pensar a vida sem o poder do patriarcado e de não concentrar nada, porque concentrar as coisas significa padronizar. Pensando em mim mesma, tenho o trabalho com os jovens e com as mulheres, o trabalho de continuar fortalecendo essa política diluída, na qual se troca a palavra poder – que não tem tradução em Guarani – pela palavra força. A força você pode diluir, você pode dividir, mas o poder, não. Na aldeia Kalipety, é necessária a participação de várias pessoas para termos esses milhos, a comida tradicional, o trabalho de reflorestamento e a recuperação das áreas degradadas.
Nessa diversidade de acontecimentos e necessidades, propus plantar os milhos juntos, para ver que mistura sairia. Contei sobre o plantio de avaxi do povo Xavante que, em uma área quadrada, planta diferentes tipos de milho em cada ponta da roça, indo da borda até o meio. O milho que vai nascer nas quatro pontas preserva a variedade de cor e tamanho. Só que vão se misturando conforme se aproximam, e quando os quatro tipos de milho se encontram, no meio do roçado, saem vários outros tipos de milho. Isso me encantou, mexeu comigo!
A gente também já é misturado. A Kalipety, especificamente, é a única aldeia que tem famílias diferentes pelos quatro cantos da aldeia. De alguma forma, conseguimos compreensão e harmonia com essa diversidade de famílias, como a diversidade do milho guarani, que também vai nascendo diferente. Alguém me falou: “Mas vocês não têm mais avaxi ju, avaxi para’i, está muito misturado”. Sim, está misturado igual a gente! E outros dizem: “Mas eu quero avaxi ava’i, que é do Rio Grande do Sul.” E eu respondo: Ele foi plantado junto, então a sua genética está aqui também. Você pode plantar que vai nascer tudo misturado, igual a esses. Os milhos da Kalipety são um reflexo de como pensamos, de como vivemos essa mistura.
[MCC] Você está mostrando que a diversidade é uma opção ao mesmo tempo política, culinária e agrícola. Eu e muitos antropólogos temos reparado que, em geral, os povos indígenas gostam da diversidade na agricultura. E que essa diversidade pode sempre ser aumentada. Em que momento você começou a pensar sobre a importância do milho avaxi? Qual é o valor e a força dessa alimentação?
No Encontro de Educação Tradicional na Tenondé Porã, em 2001, eu soube dos milhos tradicionais guarani deixados por Nhanderu Tupã Mirï. Os mais velhos se concentraram na questão da alimentação e traziam, nas suas falas, a tristeza profunda de não ter mais as comidas de antes. “Quando eu era jovem, eu comi mbojape, mbaipy, mbyta, avaxi ku’i, ka’i repoxi, avaxi maimbe, avaxi pororo.” Muitos falavam de outros alimentos, mas incrivelmente todas as falas eram voltadas para os milhos. Ali eu entendi que essa é a base da alimentação guarani. Por ser um alimento forte, o milho permite que os Guarani dependam menos de carne. E por termos só dois tempos, ara yma (tempo velho) e ara pyau (tempo novo), só podemos caçar em certos momentos, durante dois meses. Assim, para lidar com isso de forma generosa e alegre, e para respeitar a espiritualidade guarani, temos que dividir a comida. Além disso, o milho pode ser estocado duro, podendo ser conservado por bastante tempo. Em 2008, quando visitei uma aldeia Guarani Mbya na Argentina, vi que as casas organizavam os milhos secos em uma dispensa para durar o ano inteiro. Isso me trouxe a lembrança do encontro de 2001 e das falas dos mais velhos.
Uma das falas dos mais velhos que sempre repito é que a alimentação guarani se baseia no milho. E para ser plantado, o milho deve ser consagrado na casa de reza. O milho, então, não é apenas um alimento para o corpo. Está ligado à nossa vida aqui neste plano porque foi deixado por um de nossos Nhanderu, o Nhanderu Tupã Mirï. Os mais velhos ensinam que plantar e cuidar do milho, passando por esse processo da espiritualidade, consagrando as sementes, alegra o espírito não só de quem cultiva, mas também de toda a família, principalmente das crianças. Sem a comida tradicional, as crianças são as que adoecem mais facilmente. No Encontro de Educação Tradicional de 2001, os mais velhos contavam que na consagração do milho também se davam os nomes às crianças a partir de um ano de idade.
O milho tem valor tanto para o mundo físico e para o corpo, como para fortalecer o espírito guarani, deixando-o alegre e forte. Comer comida transgênica, a comida dos jurua que já vem doente, que já vem morta porque é plantada com veneno, não alimenta o corpo, nem alegra o espírito. Quando a menina ou o rapaz vão passar da vida de criança para a vida adulta, fazemos uma sopa com o milho de espiga menor, que é para deixar o corpo protegido. Porque nessa mudança de criança a adulto, muitos ija, espíritos de outros seres, ficam de olho para roubar o espírito, ojepota. Alimentar-se com esses milhos é uma forma de proteção nessa mudança de estágio da vida.
Cada um nasce com um espírito (nhe’ẽ) que vai se dar melhor fazendo certo tipo de coisa, seja o artesanato, a fala, a espiritualidade, o plantio. Alguns vão ter a mão boa para certos tipos de alimentos. Outros – que são mais raros – vão plantar de tudo e vai dar de tudo. Mas a grande maioria só tem, no máximo, a mão boa para dois alimentos. Eu achava que tinha a mão boa para batata doce, mas já entendi que não!
[Lucas Keese] Ninguém tem mão melhor que Jera para fazer a plantação de pessoas. Na Kalipety, tanto a roça de milho quanto a roça de pessoas têm essa característica em comum: prezam pela diversidade. Receber uma família diferente requer lidar com as diferentes exigências que ela tem, como as plantas têm do solo, e isso às vezes pode gerar brigas. Mas quando você sabe conviver, acaba fortalecendo o solo, o território. Conforme os milhos que, a cada nova safra, vão crescendo e vivendo bem aqui, as novas gerações vêm mais fortes e diversas. A dinâmica política está relacionada com a dinâmica do plantio. Na Kalipety, pela presença de Jera e outras lideranças que têm o mborayvu muito forte, se consegue essa diversidade. O mborayvu pode ser traduzido como generosidade, mas não é somente a generosidade. É a principal característica das lideranças que são boas anfitriãs. É um saber muito difícil de ser exercido. Kalipety conseguiu ser uma boa anfitriã para as famílias que foram chegando. A oposição ao modelo político patriarcal e mais restritivo no compartilhamento das coisas produzidas é forte característica daqui. Restaurar a terra é tornar o espaço um bom anfitrião para a diversidade de seres, fazer com que consigam orquestrar uma composição diferente trabalhando juntos. Isso tem a ver com o plantio e a colheita em mutirões coletivos e com a produção das comidas, feita em encontros em que as famílias participam. O jeito das mulheres de compor, e também dos homens que aceitam e entendem a importância de atuarem dessa forma, é um modo de buscar ser um bom anfitrião, trabalhar junto e compartilhar o território. Como alguns mais velhos guarani dizem, a floresta é a plantação de Nhanderu, por isso não tem uma coisa só como nas monoculturas do jurua. Tem um monte de coisas diferentes porque Nhanderu sabe fazer todo mundo conviver bem, em suas complementaridades. Plantar muita coisa junto: é assim que se faz nas áreas de recuperação e é assim que acho que é exercer a liderança pelo mborayvu, que é saber ser uma boa anfitriã.
Ha’evete. Vou plantar mais pessoas! Mborayvu é mais do que generosidade, é cuidar-se e cuidar do outro todos os dias. Você pode ser uma pessoa boa, que busca o bem-estar, que quer ficar bem e fazer o bem, mas quando acontece um problema na aldeia, e, para piorar, vem de alguém que você não gosta ou que não gosta de você, como reagir a isso? É preciso ponderar, agir e falar com calma, seja na família, com os filhos, seja com a natureza, com tudo o que está à sua volta. Nesse território, trabalhamos a longo prazo para que não exista mais nenhuma palavra que se refira ao modelo de liderar entendido como padronizar, concentrar o poder, deixar que uma pessoa determine tudo, saiba de tudo e decida por todos.
Agora, na Tenondé Porã, temos mais mulheres do que homens. Por isso, temos no território a aldeia da Laura e Beatriz, da Yara, da Jera Lurdes, da Lídia, da Luciana, da Elizete… Isso mostra que é possível às mulheres iniciar uma aldeia, construir uma aldeia, fazer as coisas acontecerem.
[MCC] O que você pensa do território com 14 aldeias? Qual é a vantagem?
Em um território com muitas aldeias há maior proteção sobre o território indígena – que está sendo demarcado recentemente, já está declarado, mas ainda falta a demarcação física. É muito significativo também em vários outros aspectos, como por exemplo possibilitando aos jovens e às crianças o acesso efetivo, concreto, ao plantio. Nas duas aldeias mais antigas deste território, não temos mais espaço para plantar. E quando você tem espaço com mais calmaria, quando tem espaço para plantar, você tem água limpa, tem a conexão com os donos das plantas e dos animais – ija – e com o ensinamento de que tem que ter respeito com a natureza, nunca tirar em excesso dela.
Há outras coisas importantes, como a possibilidade de restauração de áreas degradadas. Podemos mostrar aos próprios Guarani do território, para nós mesmos e para os jurua que passam por aqui que é possível restaurar. Quando trabalhamos com os jovens e com pessoas adultas que têm problema com drogas – a bebida alcoólica é um dos piores problemas que atingem a aldeia –, usamos a restauração do campo que antes era depósito de entulho, que foi soterrado e que, quando chegamos, transformamos em um espaço aberto que naturalmente virou um campo. Todo mundo jogou muita bola lá. A terra realmente estava muito compactada, muito dura. Não acreditávamos que ali nasceria alguma coisa. Quando entramos aqui, era uma área cheia de plantio de eucalipto, uma terra muito seca, então demorou para começarmos a melhorar o solo e a produzir. Este território inicia a experiência de restaurar – no sentido de possibilitar que a semente brote novamente ali, que a mudinha plantada cresça.
Outro dia fui até lá e fiz muitas fotos. Eu nem sabia que o yvaro dava flor, uma flor roxa, linda. Cachos com várias flores enroladas no pé da mandioca, no pé do ingá, no pé das paineiras. Fechei os olhos e me lembrei de quando ali era um campo com as traves dos goleiros dos dois lados e, de repente, abro os olhos e vejo as flores. É emocionante!
Recentemente, começamos a compartilhar sementes com outras aldeias do próprio território e com aldeias fora da capital – no Litoral Sul, Litoral Norte, Rio de Janeiro. No início da pandemia, quando muitos jurua também estavam passando necessidades, fomos surpreendidos com uma situação muito bonita. No primeiro plantio, depois de quatro meses, estávamos colhendo uma fartura de abóboras. Distribuímos para todas as aldeias e também para os jurua. Muitos jurua que passavam na estrada, entravam e pegavam sem pedir, mas como havia muita abóbora, não nos preocupamos. Ninguém pensou em colocar cerca elétrica, cachorro ou uma placa dizendo “cuidado, cão feroz’”!
[Karen Shiratori] Como era este território antes?
Nosso movimento se inicia forte em 2008. Conversávamos com a comunidade na Tenondé que podíamos pensar uma política diferente. Que não estava bom do jeito como estávamos. Lembrávamos que já tínhamos vivido uma época na aldeia sem escola estadual ou municipal, sem posto de saúde, sem projetos… Falávamos dos nossos problemas, como a questão do número crescente do vício do álcool e das necessidades reais que estavam se apresentando ali naquela terra pequena, com tanta gente, que trazia muita desordem social e espiritual. Quando iniciamos essa transformação, tivemos a coragem de falar com a comunidade numa reunião: Vamos tentar uma vida sem cacique, por um ano, para ver como nos saímos?
Fizemos isso antes da ampliação do território e nos deparamos com muitas pessoas que cresceram nessa educação. Minha mãe é uma delas e imediatamente me disse: “Vocês estão loucos? Como a aldeia vai viver sem cacique? Quando tem um problema, quem vai resolver? Quando jurua entrar na aldeia, quem vão procurar?” Vivemos a transformação da política interna na aldeia e as transformações das mulheres que estão fazendo aldeias. Com isso, diminuiu drasticamente a violência contra as mulheres. Conseguimos também que todos tivessem o direito de se candidatar para os empregos criados na aldeia. Pensamos nos critérios de forma justa para escolher a pessoa que vai ocupar o emprego: se tem família e filhos, se é de uma família mais estruturada ou não. Algumas famílias vieram para a nossa aldeia porque ninguém as queria, porque o marido bebe e é violento, mas nós as aceitamos. Se o vício e a violência continuam, rapidamente tomamos providências e explicamos que aqui é diferente.
Assim nasceu a aldeia Kalipety, que tem esse nome porque o ty é uma partícula que usamos para nos referir às nossas roças. Como avaxi: se falamos jaa avaxity py, “vamos ao avaxity”, estamos falando do milharal. Então, mandioty, é a mandioca, jetyty, é a batata doce. Como aqui tinha muito eucalipto e os Guarani não conseguem falar “eucalipto”, falamos “eucalip”, daí ficou Kalipety. Pensamos em criar esta aldeia e fazê-la crescer no sentido do mborayvu. Para isso, é preciso saber lidar com as pessoas que você não gosta ou que não gostam de você. Tratar bem, ajudar e sempre estar de prontidão para aqueles que você gosta é muito fácil, difícil é fazer isso com pessoas que você não gosta ou que acha que são inimigas. Não iniciamos a Kalipety com a concepção de criar um patriarcado, de criar uma realeza.
[MCC] No Mato Grosso do Sul, quando os Kaiowa, sobretudo, encontram nos caminhos os remédios que costumam usar, dizem que a floresta voltou. Eles dizem que não mexem, que esperam e protegem para que as plantas voltem sozinhas. Os remédios parecem ser muito importantes para poder dizer que a terra foi restaurada. Como é a questão dos remédios antigos na Kalipety?
Agora temos bastante remédio nesta nova terra da demarcação. O que chamamos de guandu, escasso na Tenondé, é muito usado para dores abdominais, para as mulheres, para infecções. Também se toma banho com essa planta quando as crianças não dormem direito e estão muito choronas. Guandu não se planta, está na mata. Nessas aldeias novas, temos essas plantas nos quintais. Muitos Guarani que já vieram aqui de outras regiões, como do Rio Grande do Sul, dizem encontrar muito remédio e fazem coletas. Um Guarani veio do Litoral Sul e saiu daqui com uma sacola com várias plantas, cipós, folhas e raízes, falando que já não tinham mais no seu território.
[KS] Quais as plantas cultivadas vinda de outros lugares e a história delas? A diversidade dos cultivares parece ser também uma diversidade de pessoas, e essa busca pelos cultivos parece ser um processo que amplia a diversidade das relações para fora das aldeias Guarani.
Inicialmente, pensar em plantar, colher e consumir era focado na busca das comidas guarani para o Kalipety. Conseguimos primeiro os milhos, depois as batatas, o amendoim, a mandioca. Mais tarde, passamos a receber pessoas de vários lugares. Da Nova Zelândia, veio a etnia Mãori. Vieram também os Kaiowa, o pessoal do Alto Xingu, do Acre, os jurua de Minas, de Curitiba … Isso vai trazendo a mistura que não é só das comidas guarani ou das pessoas na Kalipety, mas a mistura de alimentos de outros povos, de outros lugares. Já plantamos milho e abóbora da Guatemala. Temos o baobá, uma árvore da África, e Sakura, uma árvore do Japão. Temos inhames dos quilombolas do Vale do Ribeira, lindos e muito gostosos. Da minha viagem para o Acre, vieram as sementes de ingá, que é gigante. Plantei, brotou e já distribuí mudas em uma das aldeias da Terra Indígena do Jaraguá. Temos na Kalipety comidas de vários povos e histórias, de várias concepções e classificações. Plantamos árvores frutíferas que nem os Guarani conheciam mais como o jaracatiá, uma frutinha da Mata Atlântica quase em extinção. A diversidade dos alimentos, das raízes e dos tubérculos vêm de lugares diferentes e cada um tem a sua história.
Como eu falei, a aldeia Tenondé Porã, onde eu nasci e cresci, tinha só 26 hectares e éramos mais de 170 famílias ocupando todo o espaço. Não tínhamos espaço para plantar as comidas tradicionais, ficamos mais de setenta anos sem realizar esses plantios. Hoje, com o território demarcado e as retomadas, conseguimos cuidar dos jovens, das mulheres, dos nossos xeramoῖ e xejaryi kuery (anciãos e anciãs), comer melhor, nos dedicar ao nosso fortalecimento e às atividades de plantio, reflorestamento, recuperação do solo. Isso é muito importante porque também é um jeito de fortalecer o território para outros Guarani que queiram vir para ele, Guarani de outras aldeias que também trazem seus conhecimentos e plantios para cá, e de também fortalecer o território de outros Guarani ou de outros povos que visitamos ou com quem trocamos sementes.
Nesse momento, estamos muito preocupados com as mudanças climáticas. Muita gente já está sentindo de fato a falta de água, a falta de comida. Dizem os nossos xamoῖ e xaryi que os ija kuery, que são os guardiões de tudo o que está na natureza, estão bravos. Mandam chuvas fortes que inundam cidades e destroem tudo. O modo de ser Guarani não destrói a natureza. Assim, a nossa vida no território, a preservação da natureza no nosso território, é importante não só para nós, para a cidade de São Paulo ou para o Brasil, mas também para o planeta como um todo.
Jera Guarani é agricultora e liderança na Terra Indígena Tenondé Porã, no extremo sul de São Paulo, onde também realiza projetos culturais e formações de lideranças de base, principalmente com mulheres. Desde 2008, tem atuado no grupo de lideranças do seu território, apoiando as retomadas e as roças.
Manuela Carneiro da Cunha é antropóloga. Professora da UNICAMP, da USP, da Universidade de Chicago e do Collège de France, é membro da Academia Brasileira de Ciências e do Observatório dos Direitos Humanos no CNJ. Recebeu várias distinções e premiações e publicou dezenas de importantes livros e artigos em antropologia.
Lucas Keese ou Ruka é indigenista e antropólogo, atuando junto aos Guarani Mbya desde 2009. Acompanhou o movimento pelas retomadas na Terra Indígena Tenondé Porã a partir de 2013 e atualmente vive na tekoa Kalipety. É autor do livro “A esquiva do xondaro – movimento e ação política guarani mbya” (Elefante, 2021).
Karen Shiratori é antropóloga e investigadora do projeto ECO (Universidade de Coimbra), do Centro de Estudos Ameríndios da USP e de Patrimoines locaux, environnement & globalisation. Co-organizou Vozes Vegetais (2020) e foi uma das editoras convidadas da edição especial Vegetalidades da PISEAGRAMA.
Luiza Calagian é cientista social, diretora e fotógrafa e trabalha há dez anos com o povo Guarani Mbya nas áreas de audiovisual e comunicação.
Bruna Keese é designer e pesquisadora e trabalha desde 2013 em projetos de design editorial, visualização de dados e identidade visual com foco na área socioambiental.
Julia Tranchesi é artista visual. Mestre pela ECA-USP com a pesquisa São Paulo; fazer e refazer, integra a Escola de Capoeira Angola Raiz Negra.
Notas
Este ensaio foi editado por PISEAGRAMA a partir de uma conversa entre Jera Guarani, Manuela Carneiro da Cunha, Lucas Keese e Karen Shiratori realizada em abril de 2023 na aldeia Kalipety e teve a colaboração de Hugo Salustiano, Emanuele Fabiano, Helena Silvestre e Ana Paula Gonçalves.
Os autores agradecem o apoio do Centro de Trabalho Indigenista, do Comitê Interaldeias, do Projeto ECO – ERC 101002359 e, especialmente, Joshua Homan, revisor da tradução para o inglês e Luiz Eduardo Freitas, que transcreveu a conversa.
As imagens que acompanham este ensaio foram produzidas por Luiza Calagian, Bruna Keese e Julia Tranchesi e integram o livro Ara Pyau, de Jera Guarani, publicado em Brasília pelo Centro de Trabalho Indigenista, em 2021.
Como citar
GUARANI, Jera; CARNEIRO DA CUNHA, Manuela; KEESE, Lucas; SHIRATORI, Karen. Misturado igual a gente. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, seção Extra! [conteúdo exclusivo online], 24 fev. 2025.