NEM PEGADINHA, NEM ARTE: POLÍTICA
PISEAGRAMA
No dia 25 de maio de 2013, uma placa indicando uma obra pública foi instalada na rua Padre Belchior, na região central de Belo Horizonte. Normalmente placas como aquela não despertam o interesse dos cidadãos, acostumados a estar à parte das decisões sobre o futuro da cidade e dos espaços que habitam. Mas a obra de “Renaturalização do Córrego do Leitão” causou polêmica imediatamente. Os passantes paravam, curiosos, frente ao burburinho formado na esquina com a avenida Augusto de Lima. Alguns elogiavam o projeto, outros se surpreendiam com a iniciativa e muitos atacavam, com argumentos variados: tecnicistas (como vai ficar o trânsito?), conformistas (no Brasil isso não funciona) ou higienistas (isso aqui vai encher de mendigo e morador de rua!).
Com essas e outras na ponta da língua, os comerciantes da região discutiam efusivamente e articulavam uma reação coletiva àquela intervenção inesperada. Sua mobilização era também pragmática: a renaturalização colocava em risco as atividades comerciais durante as obras e, acreditavam, também depois delas. Em poucos dias aquele espaço que abriga muitas linhas de ônibus, um trânsito contínuo e dezenas de veículos para carretos transformar-se-ia em um canteiro de obras, cujo objetivo principal era desfazer as quatro pistas de rolamento asfaltadas e, em seu lugar, fazer emergir novamente o saudoso Córrego do Leitão, que há quatro décadas fora completamente canalizado e coberto pelo betume cinza. E que agora se tornaria o protagonista de uma transformação urbana onde água limpa, peixes, bancos, escadarias e ciclovias coexistiriam com o comércio local e a diversidade social e cultural do centro da cidade.
A notícia da inesperada utopia que o Governo Federal, a Prefeitura de Belo Horizonte e os Ministérios da Pesca e Aquicultura e do Meio Ambiente prometiam realizar com recursos da Caixa Econômica Federal rapidamente se espalhou. Na segunda-feira, dia 27, o jornal Hoje em Dia estampou na capa uma foto da placa e dedicou uma página inteira à reportagem sob o título “Córrego do Leitão de volta à cena: ousadia ou pegadinha?”, que além de ouvir moradores e comerciantes locais, reavivou a memória de seus leitores relatando brevemente o destino trágico do Leitão nas últimas décadas e ampliou a discussão ao mostrar o exemplo de renaturalização do rio Cheonggyecheon em Seul, na Coréia do Sul, há cerca de 10 anos.
Do jornal para as redes sociais foi um pulo. A Prefeitura de Belo Horizonte, cuja política implacável com os recursos hídricos tem priorizado a canalização e o fechamento de rios e córregos, estava citada na placa, o que ampliava as dúvidas. Houvera uma mudança de postura? Ou seria uma obra “cosmética”, somente para a Copa do Mundo? Nesse caso, o córrego continuaria poluído e tampado, e aquilo que se via na imagem seria um espelho d’agua artificial? Ou, se a hipótese da “pegadinha”, aventada pelo jornal, fosse a verdadeira, quem afinal teria colocado aquela placa ali?
Na terça-feira, dia 28, a placa já não estava mais lá. Os jornais Hoje em Dia e O Tempo anunciavam que a Prefeitura procurava os responsáveis por desrespeitar o Código de Posturas (multa: R$ 238,49) e a Polícia Federal abrira um inquérito para investigar os autores da “brincadeira com obra fictícia” por uso indevido das logomarcas do governo e dos ministérios. A criminalização e a multa deram mais visibilidade para a questão. Nas redes sociais, foram centenas de manifestações de apoio aos autores. Chegou a ser organizada uma vaquinha online para cotizar a multa.
O que os audazes investigadores não perceberam é que na matéria de segunda-feira, Agnaldo Odorico, citado como proprietário do bar Banzai localizado na fatídica esquina, declarara sobre a chegada da placa: “Parou um caminhão da prefeitura e puseram ali.” Na quarta-feira, em um lance surpreendente, o editorial do Hoje em Dia retomou a polêmica, relativizando o caráter criminoso da utilização das logomarcas oficiais e de certa forma desafiando o senso comum ao considerar válida a ação, já que desperta a população para o desprezo do Estado para com os cursos d’água – apesar de ainda considerar tudo como uma brincadeira.
De “pegadinha” e “brincadeira”, e apesar do testemunho claro de um cidadão que trabalha no local, a placa rapidamente se tornou caso de polícia e agora os autores estavam sendo caçados como criminosos. A renaturalização do Córrego do Leitão em menos de 72 horas passou de uma possibilidade real e instigante a algo comparável ao entetenimento boçal do Domingão do Faustão e suas pegadinhas sem graça, para então chegar à truculência das páginas policiais. O córrego e a possibilidade de transformação do ambiente urbano foram rapidamente encobertos pela excitação da busca pelos “autores”.
Na caça às bruxas, o alvo inicial foi a ONG Undió, que promove ações artísticas e formação de jovens na rua Padre Belchior. Foi preciso que a diretora da ONG reafirmasse diversas vezes para jornalistas e curiosos: a placa não chegou lá pelas mãos da Undió. Na imprensa, apesar da suspeita recair sobre artistas, cujo vasto repertório passa por performances, instalações, intervenções urbanas, site specific, ou ainda o genérico e onipresente trabalho, a ação era descrita como brincadeira e pegadinha.
Mas autoria, bem sabemos, costuma ser reivindicada por artistas ou terroristas. E diante da inquietante ausência de autores para a placa, resta refletir: se não se trata de uma ação artística e se a placa não é exatamente um ataque violento ao governo ou à população com o objetivo de incutir o medo, ainda que tenha inesperadamente iniciado uma fobia coletiva pela água limpa e cheia de peixes, não seria essa placa simplesmente uma ação política? Mas não política no sentido partidário ou eleitoral, de ataque e desmoralização de sujeitos e legendas adversárias, mas no sentido pleno da política que se refere à construção coletiva da polis, ou seja, da vida comum na cidade? E afinal, não é a política uma prerrogativa de qualquer cidadão? Ou será a política domínio exclusivo de candidatos e gestores, legítimos representantes dos anseios dos anônimos e apaziguados?
Pois o que essa mera placa possibilitou durante as poucas horas que permaneceu no passeio público foi a invenção de um micro-parlamento popular e informal dedicado ao debate exaustivo dos problemas e das melhores soluções para o Córrego do Leitão e para a rua Padre Belchior, mas também para os rios das cidades em geral, do ponto de vista das experiências e expectativas particulares de cada cidadão. De um dispositivo desacretidado e banalizado no cotidiano urbano, a placa de obra se transformou em uma espécie de tela em alta definição, capturando a atenção de uma pequena e instantânea multidão para a transmissão de um futuro improvável e agora compartilhável.
A crescente presença das questões ambientais na mídia, em discursos políticos e propagandas institucionais tornou recorrente a discussão sobre os impactos globais (aquecimento, camada de ozônio, desmatamento) das ações humanas, embora com poucos resultados no sentido de adequar os interesses econômicos à uma agenda política que inclua efetivamente a natureza e os saberes tradicionais em consonância com sua preservação. Mas, curiosamente, pouco se diz da teia de relações entre elementos naturais e culturais que deveriam compor um ecossistema equilibrado em todas as escalas, a partir da local. As nascentes, os córregos, as matas, as maritacas e as árvores que restam logo ali na esquina parecem distantes e irremediavelmente condenados ao desaparecimento, enquanto empresas e governos transferem a responsabilidade por seus atos e evocam a importância de cada cidadão na preservação do planeta. A substituição da palavra ecologia (estudo do lugar onde se vive) por sustentabilidade é sintomática: o foco deixa de ser as possibilidades de relações entre seres vivos e ambiente, humanos e não-humanos, e passa a ser uma continuidade possível, agora despistada por campanhas de marketing verde e não importando muito em que condições, desde que “sustentável”.
Assim como a coexistência com peixes e pássaros não está na pauta do Ministério das Cidades, as cidades não estão na pauta do Ministério do Meio Ambiente, muito menos no da Pesca. E enquanto o Ministério da Saúde cuida de doenças, a ideia da cidade como um ecossistema saudável e coletivamente produzido passa longe das agendas federal, estadual e municipal. Pois se a mudança ambiental mais básica deve se iniciar pela valorização da água, enquanto os córregos e rios continuarem a ser canalizados, impermeabilizados e cobertos de asfalto não haverá quem se ocupe deles, pois as consequências dos atos são tornadas invisíveis, reaparecendo somente alguns quilômetros abaixo, bem longe da descarga original. E na lógica desse sistema ineficiente e rudimentar que insistimos em chamar de “saneamento básico”, a natureza é nada mais que um empecilho ao avanço do progresso, e as disfunções causadas por seus ciclos serão sempre esquadrinhadas por técnicos voluntariosos e resolvidos por uma nova tecnologia milagrosa.
Belo Horizonte foi planejada, desde o princípio, sem considerar a presença de seus cursos d’agua. A opção de se utilizar somente uma rede subterrânea, com esgoto e água fluvial, veio já da Comissão Construtora. Ao longo do século vinte, os córregos foram sendo canalizados e tamponados, em geral com eventos de inauguração e comemorações oficiais. Na década de 1960, dois acontecimentos ambientais marcaram a cidade: a cobertura do córrego do Acaba Mundo e o corte dos fícus da avenida Afonso Pena. Houve muitos protestos contra o corte das árvores e quase nenhum contra a cobertura do córrego que um dia presenteou os habitantes da cidade com uma cachoeira dentro do Parque Municipal.
A cobertura do Córrego do Leitão aconteceu na década de 1970, já em meio à truculência do regime militar e seus ideais de modernização predatória. Empreendimentos colossais destruiram canteiros centrais, cortaram árvores, canalizaram e esconderam as águas para garantir a abertura de mais espaços para carros. Não deixa de ser curioso que, apesar da redemocratização e dos governos de diversas matizes políticas, esses continuem a ser os ideais dominantes das gestões municipais e estaduais. Em pleno século vinte e um, enquanto a cidade de Seul vê seu rio Cheonggyecheon voltar a correr aberto, com a supressão de mais de 10 pistas de tráfego – sem prejuízo para o trânsito –, e enquanto Medellín inicia o processo de transformação de 26 quilômetros de vias expressas em um parque ciliar de 424 hectares, Belo Horizonte assiste passivamente ao tamponamento e transformação do seu principal rio, o Arrudas, em um deserto fumegante de asfalto, com mais pistas de tráfego e sem melhoria comprovada do trânsito, sinistramente batizado de “bulevar”.
É notório que aumentar pistas para carros e construir viadutos não melhora o trânsito, mas gera contratos milionários de construção e manutenção. As cidades que conseguiram melhorar o trânsito e a mobilidade fizeram o contrário: reduziram pistas de tráfego, acabaram com vagas de estacionamentos na rua, alargaram passeios, taxaram veículos, investiram em transporte público e bicicletas. Uma piada diz que combater engarrafamentos alargando vias é como combater obesidade alargando os cintos. Mas a troça faz sentido: o automóvel individual é um meio ineficaz e degradante de mobilidade urbana, torna a cidade poluída, barulhenta e congestionada. Mais de 4.000 pessoas morrem por ano em São Paulo por doenças advindas da poluição do ar, cujo principal responsável é o automóvel individual. Mais 1.500, por acidentes de trânsito. O carro é uma epidemia que mata mais que o cigarro ou a Aids e a Tuberculose somadas. E as políticas de manutenção dessa praga matam cursos d’agua, árvores, passeios, parques e esperanças.
Frente a tudo isso, se imprimir logomarcas do Governo é crime digno de investigação pela Polícia Federal, não seria ainda mais criminoso utilizar as mesmas logomarcas para canalizar córregos, construir viadutos, desapropriar comunidades inteiras, gentrificar bairros, derrubar árvores, condenar os cidadãos a uma vida desoladora? Se a Prefeitura, o Governo do Estado e o Governo Federal não conseguem imaginar e produzir cidades saudáveis e felizes com esgoto interceptado e tratado, lixo coletado e reciclado, ruas tranquilas e arborizadas, rios e córregos limpos, mobilidade inteligente e espaços realmente para as pessoas, o ato anônimo de injetar um pouco de imaginação em sua interesseira agenda oficial, através de uma publicidade totalmente gratuita, não seria na verdade uma generosa contribuição cidadã? E se os fóruns públicos de debate parecem cada vez mais obsoletos e política se distancia rapidamente do interesse público, não deveríamos estar todos engajados na invenção e realização de outros modos de fazer política, aproximando os cidadãos e engendrando imaginários de outros ecossistemas futuros.
PISEAGRAMA
Uma plataforma editorial sem fins lucrativos, sem publicidade e open access que se dedica a inventar confluências, catalisar ideias urgentes e reunir pessoas para pensar outros mundos possíveis em aliança com coletivos urbanos, LGBTQIA+, afro e indígenas.
Como citar
PISEAGRAMA. Nem pegadinha, nem arte: política. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, seção Extra! [conteúdo exclusivo online], 02 jan. 2015.