O corpo é o farol
Texto de Mestre Primo (Edson Moreira da Silva) em conversa com Paula Gontijo Martins
Estudos de movimento na Capoeira Angola, desenhos de Helder Cavalcante
O mercado quer pessoas estagnadas, doentes, capazes apenas de reproduzir o que já está. Na capoeira, entretanto, quando você faz uma bananeira, é um movimento que te liberta. Primeiro porque a bananeira inverte tudo. Você vê o mundo de ponta cabeça. Depois, porque você faz o que não fazia. O seu corpo faz mais do que você imaginava. E esse é um exercício de liberdade.
É preciso entender a história. Insistiram em nos contar uma história que começou no século XX, quando o mercado e a folclorização tomaram conta dos nossos processos e, assim, dominaram a nossa forma de pensar. A história que não nos contaram, porém, é a história que trazemos no corpo. É a história que carrega uma memória de luta. É dessa história que queremos falar, é a ela que precisamos dar evidência, é ela que precisa se popularizar. Nosso povo tem a sua memória fragmentada pelo sistema e proponho entender o corpo como o instrumento de interpretação da nossa própria história.
Quando me refiro ao corpo, penso a partir da técnica da capoeira Angola. O mestre de capoeira Vicente Ferreira Pastinha dizia: “Capoeira veio da África. Africano é quem nos trouxe. Quem não conhece a capoeira, não pode dar o seu valor”. Quando começamos a entender que foram os africanos escravizados que trouxeram a memória da luta, entendemos que o corpo, com a sua técnica, era a única arma que os negros tinham. O corpo era e ainda é o instrumento maior de combate ao processo de opressão do negro.
Quando, em 1981, estudávamos as técnicas de ataque e de defesa da capoeira, ainda não conseguíamos conectar a técnica à nossa história. Ainda estávamos presos a certa tradição da capoeira vinculada ao mercado e ao espetáculo, o que prejudicou em muito o entendimento da memória da luta real presente no fazer capoeira. Naquele tempo, ainda estávamos presos à tradição como repetição, uma tradição que não trazia a ancestralidade e a luta real à tona. Era uma tradição inventada: você deveria fazer do mesmo modo que se fazia há 100 anos, o que transformava a capoeira em um espetáculo que vendia. As pessoas não se preocupavam em entender o processo por trás de cada um dos movimentos, simplesmente repetiam sem entender a relação da capoeira com a vida.
Fomos percebendo que o lugar da repetição se tornava perigoso porque era uma tradição que nos mantinha num lugar colonizado e estagnado. Precisávamos quebrar com aquele processo. Não podíamos seguir com aquela tradição que não nos colocava junto ao sistema de forma horizontal, que nos mantinha em um lugar inferior. Comecei, então, a desconstruir aquela ideia de tradição para encontrar um lugar que pudesse nos impulsionar.
Entendi que era preciso construir uma escola. Uma escola para desenvolver e discutir esses pensamentos, para estudar a técnica e entender a luta de verdade. Os escravizados tiveram que fugir com o que trouxeram de outro tempo. Trata-se de uma técnica muito antiga, por meio da qual você encontraria o seu corpo e a sua história. Era preciso diferenciar os processos que impulsionam este movimento e os ensinamentos que o estagnam. Em 1983 fundamos o primeiro grupo de capoeira Angola de Belo Horizonte, o Coletivo Iúna de Capoeira Angola, com a finalidade de promover e valorizar a capoeira Angola como bem cultural.
A capoeira fala de movimento, luta e transformação, não de estagnação e repetição do mesmo. O respeito à tradição só é válido quando ensina sobre o movimento e ajuda a impulsionar a vida atual. A tradição que engessa está vinculada à colonização e à finalidade de transformar tudo em produto. Para ser empacotado e vendido. Ela não ajuda a ressignificar, ela aprisiona. Já o saber ancestral, por sua vez, traz o movimento que ativa o corpo. A ancestralidade está sempre em movimento, não tem fim, não tem como vendê-la. A capoeira que buscamos é infinita, pois ensina sobre libertação e vida. Ela ressignifica o comportamento e o olhar diante do mundo.
É preciso acessar a ancestralidade que liberta. Com Mestre Pastinha, entendemos que a capoeira nos ensina sobre uma técnica muito antiga, transmitida pelos africanos. É por meio da técnica que o corpo desconstrói a história contada nas escolas. Por meio da técnica, o corpo acessa um saber ancestral. Com a capoeira entendemos que a inteligência está no corpo como um todo, não apenas na cabeça. E desenvolvemos essa inteligência com a prática da técnica. Estudando, observando e praticando. Quando falamos do corpo, precisamos falar da técnica que desenvolve o corpo trabalhando os músculos e deixando-o mais móvel, flexível, consistente e paciente.
Ao praticar a técnica, entendemos como tudo funciona. Quando colocamos a mão na negativa, no rolê, na queda de rim, tudo faz sentido no próprio jogo e na vida. Compreendemos o resto das coisas, além dali. Entendemos o porquê do movimento e como ele leva, em seguida, a outro movimento. Entendemos que cada movimento prepara cada parte do corpo e, aos poucos, esse preparo vai dando consistência para o amadurecimento na luta. Percebemos a importância do conhecimento sobre seu próprio corpo para lutar e para viver.
Você observa o seu corpo e observa o corpo do outro. Percebe o jogo de forças, a sequência de movimentos, as formas e a proteção de determinadas partes do corpo. Aprende a saber o que fazer no momento certo, a dar respostas à mecânica do ataque e da defesa. O processo de luta se torna fluido. Percebemos que somos parte de um movimento maior. A técnica vai sendo compreendida com a insistência e a persistência no fazer e no observar movimentos muito antigos, que não foram inventados no Brasil. A técnica da ponta do pé que dá o impulso para a bananeira e para o rabo de arraia veio de outro lugar, veio do africano. Discutir a técnica é libertador. Quanto mais perto da técnica, mais perto da luta. A técnica não é só movimento corporal. Ela traz a história milenar, a história de luta que o negro carregou. Uma história conectada à filosofia, à ciência, à antropologia. Nosso corpo é ciência pura.
Com a técnica, nos conhecemos e nos entendemos melhor. Aprendemos a confiar em nós mesmos. Quanto mais sabemos de nós, mais podemos nos fortalecer, porque passamos a ter consciência de nossos potenciais, nossas forças e fraquezas. E isso vai contra o sistema, pois o sistema não quer pessoas fortes. Nesse processo, o outro é o meu espelho: ele me ajuda a me conhecer, pois não somos nada sozinhos. Enquanto na lógica do mercado precisamos nos fortalecer individualmente para dominar os outros, os concorrentes, na capoeira não: você é integrado.
A capoeira é uma luta para desconstruir a lógica do colonizador. Para ele, não era interessante afirmar a inteligência do negro, apenas o seu esforço braçal. Os conhecimentos dos negros nos foram negados, diziam que não valiam nada. Mas as pessoas que traziam os negros sabiam do valor desses conhecimentos. Esse negro sabia da técnica e da ciência de mexer com ouro, esse negro sabia da técnica e da ciência de como plantar e cultivar. Eles trouxeram conhecimentos importantes de agronomia e engenharia. A capoeira, de alguma forma, também foi negada como conhecimento.
Toda a inteligência diferente da inteligência do colonizador não importou: a sociedade foi construída sobre o pensamento da conquista e a sua atmosfera acabou entrando pelos nossos poros. Mas a técnica nos ajuda a sair dessa lógica e a nos conectar com esse conhecimento ancestral. O corpo percebe uma outra forma de se relacionar com o pensamento da conquista. Na capoeira, você substitui o conquistar pelo integrar, percebendo outra perspectiva com o outro e com o coletivo.
É preciso alimentar os processos de liberdade. A capoeira existiu exatamente para conquistar a liberdade – que nos é negada até hoje. A conquista da liberdade continua em processo. E o território tem grande importância. Território para poder pensar e se organizar. Enquanto a capoeira não for discutida com profundidade em termos de liberdade, ficará presa nos dogmas da religião e do mercado e na lógica da competição. A liberdade é uma conquista, uma prática diária de luta. Temos que lutar todos os dias e manter a chama da liberdade viva. Só vamos nos descolonizar por meio do conhecimento.
Transmitir é tão importante quanto aprender. Acumular, porém, é perigoso. É preciso participar do fluxo e compreender a vida como um processo que não acaba aqui. Entender a transmissão faz parte da necessidade do movimento, da sua força e do seu papel como parte. A capoeira está no mundo todo, mas na lógica do capital. A lógica do mercado é a lógica da competição, dentro e fora da capoeira. O mercado usa a categoria, o podium de chegada, a hierarquia. Por exemplo, o batizado. Você tem as cordas e as cores. Você tem um lugar para chegar. Você vai ter que ser forte e gastar muito dinheiro para chegar na corda vermelha! O mercado desfigurou essa luta. A capoeira Angola é hoje para a classe média. Para quem pode pagar os batizados, as comidas, os eventos. Branquearam a capoeira. Mas a capoeira não tem peço. Quando colocou preço, limitou. Quando você rompe com o mercado, você facilita a vida de todo mundo, de quem aprende e de quem ensina. Aceita que o processo é lento.
O sistema, contudo, quer máquina. Máquina de produção para poder dominar. Muitas escolas de capoeira viraram indústrias. Mas temos que ter calma e cuidado para não nos perdermos. O processo não é constante, contínuo ou linear. Um dia você estará mais desconectado e disperso e vai tomar uma rasteira, tudo bem! Isso é para você acordar, para te preparar para um embate maior. Você tem que levantar e continuar o processo. A aprendizagem é eterna e não pode ser limitada.
A técnica é ilimitada, a técnica não é espetáculo. A técnica organiza o processo do seu corpo e os movimentos, fazendo você compreender que dentro dessa multiplicação não há afobação, não há agressividade, ela acontece com o outro. A técnica pode suavizar a agressividade. Se a técnica não é levada em conta, você entra no exibicionismo e no espetáculo, que são limitados. É uma luta pela liberdade e não para destruir o outro. Não é a lógica da competição, é a lógica da interação com o outro. Não é a lógica do processo colonizador que opera destruindo o outro. O processo de aprendizagem é coletivo. Falamos de luta de fortalecimento de um povo.
A luta também é consigo mesmo, uma vez que abre você para outras possibilidades e que mexe com outras inteligências. Você luta com as suas próprias deficiências, numa luta interna de crescimento. Quando você começa a perceber as suas deficiências e eficiências, você começa a se entender melhor. É o outro quem te mostra onde você está falhando. Essa é a lógica do africano, mas ela nos foi negada e excluída do nosso convívio.
É preciso buscar a relação com o chão, com o andar agachado. A observação com a terra. Voltar à ancestralidade é convocar outro jeito de pensar, não europeu. E não vejo outro modo que não seja através do corpo, praticando. Na hora que você sente que um movimento entra no outro, que se encaixa no outro gerando um fluxo que te impulsiona, você entende, com o corpo, o que queriam dizer com a técnica. Um modo de fazer potencializa o movimento que te leva a entender mais sobre a vida. A explicação da nossa história está nesses lugares.
“Cada um é cada um”, dizia Pastinha. Cada um no seu ritmo: se estou jogando capoeira com outra pessoa com um ritmo muito diferente do meu, tenho que deixar a pessoa jogar no ritmo dela, mesmo que mais acelerado ou mais lento. Você não precisa se adaptar ao ritmo do outro para poder jogar com ele. Você tem que jogar no seu próprio ritmo – no jogo e na vida. Na luta, você aprende a respeitar as diferenças. Eu preciso do outro, mas não para ser igual a ele e sim para achar meu próprio ritmo para poder jogar com ele. Atacando e defendendo, eu faço fluir o movimento. Eu respeito a diferença do outro, respondendo a ele. Respeitar a diferença é deixar que as diferenças existam.
Pensar o coletivo como tudo igual é um grande equívoco que engessa o processo libertador. Para expandir, precisamos de diversidade. Conviver com a diferença. O ataque e a defesa constituem o diálogo dessas diferenças. É preciso ter conversa, é preciso ter diálogo no jogo: ataque e defesa. E assim um contribui com o outro. Hierarquia é a lógica do colonizador. Assim, o lugar e o papel dos mestres requerem muita responsabilidade.
A capoeira desenvolve a concentração e a atenção ao outro, destrezas pouco incentivadas no nosso mundo ansioso e digital. Aí está uma outra tecnologia, uma tecnologia humana. A técnica é importante porque não está sozinha, traz uma memória de luta contra a ideologia escravagista. Acessar os movimentos dos escravizados expulsa pelos poros o sistema escravocrata que nega tudo aquilo que você é e pode ser e fazer. A técnica deixa você cada vez mais atento. Trabalha a relação com os seus medos e as suas dores, para além da lógica da doença e da fraqueza, te deixando menos vulnerável ao sistema.
A técnica faz compreender as amarras que colocaram em você. O mercado quer pessoas estagnadas, doentes, capazes apenas de reproduzir o que já está. Quando você faz uma bananeira, entretanto, é um movimento que te liberta. Primeiro porque a bananeira inverte tudo. Você vê o mundo de ponta cabeça. Depois, porque você faz o que não fazia. O seu corpo faz mais do que você imaginava. Você trabalha com as impossibilidades que você mesmo se colocou, porque o sistema te induziu a pensar assim. E esse é um exercício de liberdade. A capoeira nos mantém em movimento, nos dá satisfação de viver. Um corpo em movimento que se fortalece gera vida, gera mais movimento. À medida que você vai compreendendo, o movimento que a sua energia multiplica vai te abrindo mais e mais portas. Assim é o processo da liberdade. Saber multiplicar a força. Multiplicação e potência. Quando você chega perto da essência da vida, entende que a vida é movimento de expansão.
Quando tocamos a história ancestral, encontramos o quilombo. O quilombo é acolhedor, na contramão da sociedade de hoje. O quilombo acolhe homem, mulher, criança. E se fortalece com os conhecimentos de cada um. Nós perdemos esse modelo de convívio, trata-se de um conhecimento que não foi levado em conta. Apagaram o quilombo. Nós precisamos nos aquilombar de novo. Mas para fazer isso, é preciso criar processos acolhedores. Essa sabedoria que o sistema pisou é o que vai nos dar as respostas. Para construirmos outra lógica, a lógica do aquilombamento, temos que estar muito conscientes e fortes. Temos que acreditar em nós mesmos, cada vez mais. E o corpo é o farol.
Mestre Primo (Edson Moreira da Silva)
Doutor do Notório Saber dos Saberes Tradicionais pela UFMG, junto ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação (2022), começou na capoeiragem de rua dos anos 1970, enquanto militava no Movimento Negro, e depois seguiu a linhagem do Mestre Pastinha. Fundou o Coletivo Iúna de Capoeira Angola, em Belo Horizonte.
Paula Gontijo Martins
Doutora em Administração pela UFMG, é capoeirista e professora da Universidade Federal de Alfenas.
Helder Cavalcante
Artista visual dedicado à arte urbana desde 2012, estudou licenciatura em Artes Plásticas na Escola Guignard, Belo Horizonte, e transita entre o graffiti e o muralismo.