O imaginário abolicionista penal: uma conversa
Texto de Jackie Wang
Xilogravuras de Revista Comando
No livro Capitalismo carcerário, traduzido por Bruno Xavier e publicado no Brasil pela editora Igrá Kniga, a abolicionista penal, poeta e pesquisadora Jackie Wang propõe uma atualização da discussão sobre dimensões raciais, econômicas, políticas, jurídicas e tecnológicas do problema do encarceramento em massa nos EUA. O abolicionismo penal seria, para a autora – a partir da assunção de que a “raça e capitalismo” compõem dois lados da mesma moeda – o motor para as transformações de todas as relações sociais existentes.
Neste ensaio, reprodução de um dos capítulos do livro, Wang intercala reflexões, poesias e relatos de prisioneiros que conseguiram, de alguma forma, vislumbrar a liberdade mesmo dentro da prisão. Ao se deparar com as impossibilidades do mundo e a concretude da prisão enquanto forma social, o imaginário se torna o espaço de refúgio onde se constrói, de fato, um mundo novo.
O falecido Mark Fisher disse uma vez que é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo. O mesmo poderia ser dito das prisões: é mais fácil imaginar o fim do mundo do que um mundo sem prisões. E, no entanto, a prisão moderna, tal como existe nos Estados Unidos hoje, é uma invenção bastante recente. Embora os debates penológicos sobre sistemas concorrentes de punição e reabilitação tenham ocorrido no norte no início do século XIX, ao final da Guerra Civil, as instalações penitenciárias ainda eram incomuns em alguns estados fronteiriços. A Flórida – que agora tem um dos maiores sistemas penitenciários dos Estados Unidos – não tinha, ao final da Guerra de Secessão, nenhuma instalação penitenciária e teve de criar seu sistema penal do zero.
Apesar dessa conjuntura histórica recente, as prisões são hoje completamente naturalizadas. Imaginar e trabalhar por um mundo sem prisões – que é o projeto da abolição penal – exigiria não apenas que repensássemos as bases do papel do estado na sociedade, mas também que trabalhássemos pela transformação total de todas as relações sociais. Um projeto tão imponente e ambicioso como esse é fácil de ser rechaçado sob a acusação de irreal, utópico, impraticável, ingênuo – um sonho irrealizável. Mas e se – ao invés de reagirmos a essas acusações com contra-argumentos que demonstram, persuasivamente, que a postura abolicionista é a única postura sensata – usarmos estrategicamente essas mesmas acusações como um ponto de partida para mostrar como a própria prisão é um problema para o pensamento que só pode ser solucionado com um modo de pensar que não se curve ao realismo do presente? O reencantamento do mundo pode ser um instrumento para quebrar o realismo das prisões?
O que segue é uma série de perguntas – conversas com revolucionários, vivos e mortos, sobre a morte, os sonhos, a luta e a experiência fenomenológica da liberdade.
Há momentos em que quero entrar. Você me acompanhará até lá, ao lugar onde as paredes que respiram silenciosamente exalam uma canção de liberdade?
*
Dentro de uma cela escura, a revolucionária Rosa Luxemburgo se refugia em sua mente. Fora, a Primeira Guerra Mundial está a todo vapor. “Estamos em uma tumba”. Fora, as pessoas criam novas memórias. Dentro, ela revive as antigas. Enquanto todos dormem, ela fermenta um segredo – viagens ao lugar onde se escuta o mistério. Sob o olhar vigilante do guarda noturno, ela enxerga para além das paredes um campo florido que um dia conheceu, ou pelo qual passeou em sonho. De onde vem essa pequena canção? Se ao menos…
Se ao menos soubéssemos ouvir corretamente
e empunhar nossa chama
contra a mentira que é uma prisão.
Uma dúzia de rosas contra o estado policial
Algumas horas depois de o corpo de [Mike] Brown ser finalmente removido, os moradores ergueram um memorial improvisado com recordações e ursinhos de pelúcia no local onde a polícia o havia deixado. Quando a polícia chegou com os cães, um dos guardas deixou que um deles urinasse no memorial. Mais tarde, quando a mãe de Brown, Lesley McSpadden, colocou pétalas de rosas no formato de suas iniciais, uma viatura policial passou zunindo, esmagando o memorial e espalhando as flores. Na noite seguinte, McSpadden e outros amigos e familiares voltaram ao local do memorial e depositaram uma dúzia de rosas. Outra vez, uma viatura da polícia apareceu e destruiu as flores. Mais tarde, naquela mesma noite, a revolta começou.
– Keeanga-Yamahtta Taylor, From #BlackLivesMatter to Black Liberation
Penso em como as pessoas se reuniram depois que Mike Brown foi morto – em como elas fizeram um memorial improvisado sobre o local manchado de sangue na rua onde ele foi assassinado pelo estado policial. O que eu vejo nesse encontro? A vontade das pessoas se opondo ao desejo da polícia de destruir – de esmagar todas as expressões públicas de luto. A demonstração de força da polícia é desnecessária, compensatória. Eles querem que acreditemos
que seus carros sempre passarão por cima das pétalas de rosas. Eles estão convencidos de que seu uniforme, e o poder que lhe dá sustentação, os tornam intocáveis – diferentemente das pétalas de rosas dispostas nas iniciais MB. Eles tentaram apagar o nome “Mike Brown”, mas ele ficará para sempre gravado na mente das pessoas em Ferguson. Destruam os memoriais, destruam as flores – e o povo ainda assim se erguerá.
Naquela noite, uma revolta floresceu do chão em que as flores do memorial haviam sido esmagadas.
*
Certa vez, li um artigo sobre os sonhos de pessoas moribundas. Havia um ex-policial que não parava de ter pesadelos com as pessoas que havia violentado. Ele disse a uma enfermeira do asilo que “havia feito coisas ruins” no trabalho. Atormentado por seus sonhos, ele é “esfaqueado, baleado ou não consegue respirar”.
O último “não consigo respirar” de Eric Garner dá voltas no tempo e assombra os policiais que sufocam o mundo. O policial morreu cheio de arrependimento.
A consciência do policial pode estar certa de sua correção,
mas seu inconsciente sabe que fez coisas terríveis.
A destruição das flores do memorial é um ato de repressão.
Mas tudo o que se tenta apagar e se recusa a integrar
retorna com vigor ainda maior.
Se algum dia cruzasse com os policiais, eu lhes diria:
Antes de morrer, vocês encontrarão
as vidas que tiraram e violentaram.
Vocês, dirigindo por aí com sua
fantasia de invencibilidade feita de aço.
Vocês, que precisam profanar memoriais
para provar a si mesmos que são fortes –
para esconder essa fraqueza da imaginação:
uma viatura policial espalhando pétalas de rosas.
Seja lá o que vocês tentaram esmagar –
foi uma maneira de apagar a consciência
da sua própria morte?
E, ainda assim, toda vez que vocês tentaram destruir o memorial,
o povo voltou, com objetos que traziam de volta
a memória de Mike Brown.
Vocês tentaram forçar o povo de Ferguson a esquecer.
O povo voltou
com vontade de levar
a memória para as ruas.
*
Ontem vi um tweet que dizia: Lembre-se: perdemos em Ferguson. Perdemos em Standing Rock.
Vez após outra, o momento extático da revolta foi recebido com repressão ainda maior do que se podia prever.
A fissura não se tornou um lugar habitável. Não conseguimos nos agarrar às novas
formas sociais que inventamos no processo da revolta. Os líderes do establishment foram
enviados para neutralizar os manifestantes. Disseram-nos para voltar para casa.
Fracassamos em fazer da revolução o nosso lar permanente.
Mas a centelha se mantém acesa, subterrânea, esperando as condições adequadas.
O fantasma de Attica
O fantasma de Wounded Knee
O fantasma de Ferguson
O fantasma de Harpers Ferry
O fantasma do Haiti
A prisão é a nossa sombra
Nem prisioneiro, nem homem livre. Prisão é densidade. Ninguém passou uma só noite nela sem passar a noite toda massageando os músculos da liberdade, doloridos por vagar tão frequentemente nas calçadas, expostos, nus e famintos. Aqui está você, mergulhado nela, livre e desprendido do fardo da prova. Como é fácil, simples e rápido responder à agilidade de uma miragem. Ela está dentro de você, ao alcance da mão com que você bate nas paredes da cela. Está em você, no pássaro, no cair da chuva, no soprar dos ventos, no sorriso luminoso para uma rocha esquecida, no orgulho de um pedinte que repreende seus benfeitores quando são mesquinhos, em um diálogo desigual com o seu carcereiro quando você diz a ele:
Você – e não eu – é o perdedor. Você, que vive de privar os outros da luz, se afoga nas trevas de sua própria sombra. Você nunca estará livre de mim, a menos que minha liberdade fosse demasiadamente generosa. Ela então lhe ensinaria a paz e o levaria para casa. Você – e não eu – tem medo do que a cela está fazendo comigo. Você, que guarda meu sono, meu sonho e um delírio repleto de signos. Eu tenho a visão e você tem a torre, a pesada chave das correntes e uma arma apontada para um fantasma. Seu toque sedoso e seu perfume me dão sono. Você tem que ficar acordado, me observando, com receio de que o sono não tire a arma de sua mão antes que seus olhos possam vê-la. Sonhar é a minha profissão. A sua é um inútil bisbilhotar de uma conversa hostil entre a minha liberdade e eu.
– Mahmoud Darwish, In the Presence of Absence
Ainda que o guarda se deleite
sua psique está perturbada
por um amontoado de fantasmas
que ladram e gemem
sob a luz da lua.
O poeta-prisioneiro assombra o guarda, que se torna prisioneiro de sua paranoia. A profissão do poeta é sonhar. A profissão do carcereiro é conter. O poeta é quem faz a luz. O guarda é quem a retira. Ele, que vive de privar os outros da luz, se afoga nas trevas de sua própria sombra. Os que construíram o pesadelo também se afogarão nele?
O prisioneiro conhece o verdadeiro significado da liberdade, enquanto o guarda sabe apenas como policiá-la.
Do que desiste o carcereiro quando se torna um instrumento do estado?
O carcereiro se lembra do que significa amar, sofrer, massagear os músculos da liberdade ou imitar o exemplo do pássaro?
Eles não podem aniquilar o que levamos em nossos corações e mentes: a visão de um outro lugar ou a memória de um pássaro. Quantos poetas e revolucionários descobriram a liberdade dentro de uma cela?
Flores sepultadas
Ontem fiquei longo tempo deitada desperta – no momento nunca consigo dormir antes da uma hora, mas às dez já tenho de ir para a cama, porque a luz é apagada, então fico sonhando no escuro com várias coisas. Assim, ontem eu pensei: como é estranho que eu viva constantemente em um estado de alegre embriaguez – sem nenhum motivo especial. Aqui estou, por exemplo, numa cela escura, sobre um colchão duro feito pedra, na casa, ao redor de mim, reina o costumeiro silêncio de cemitério, a gente se sente como se estivesse num túmulo; através da janela a luz do poste que fica na frente da prisão e permanece acesa a noite inteira lança seus reflexos no teto. De tempos em tempos se ouve o ruído surdo de um trem que passa ou, bem perto da janela, a tossezinha da sentinela que dá uns passos lentos com suas botas pesadas para desentorpecer as pernas dormentes. Sob os passos dele o rangido da areia é tão desesperado que todo o vazio e a falta de perspectiva da vida ressoam na noite úmida e escura. Aqui estou eu, deitada, sozinha, envolta em todos estes panos negros da escuridão, do tédio, da falta de liberdade, do inverno – e meu coração bate com uma incompreensível, desconhecida alegria íntima, como se eu caminhasse à clara luz do sol por um prado florido. E no escuro sorrio à vida, como se soubesse de algum segredo mágico que castigasse tudo que há de mal e triste e o transformasse em pura claridade e felicidade. E procuro um motivo para essa alegria, não encontro nada e sorrio novamente – de mim mesma. Eu creio que o segredo não é senão a própria vida; se olharmos bem, a profunda escuridão da noite é tão bela e macia como o veludo; e o ranger de areia úmida sob os passos lentos e pesados da sentinela canta também uma pequena e bela canção da vida – basta que a saibamos ouvir. Em momentos como esse penso em você e gostaria tanto de lhe transmitir essa fórmula mágica de captar sempre e em qualquer situação o que há de belo e alegre na vida, para que você também viva em êxtase e caminhe como que sobre um prado colorido. Não pretendo de modo algum contentá-la com ascetismo, com uma alegria ilusória. Ofereço-lhe todas as alegrias verdadeiras dos sentidos que se possam desejar. Gostaria apenas de lhe dar também minha inesgotável serenidade íntima, para poder me tranquilizar a seu respeito, para que você pudesse caminhar pela vida envolta num manto bordado de estrelas que a protegesse de tudo quanto há de mesquinho, trivial e assustador.
– Rosa Luxemburgo, carta a Sophie Liebknecht (Breslau, antes de 24 de dezembro de 1917)
Na escuridão da noite você viajou a um prado colorido e com sua poderosa imaginação teceu esse mesmo prado num manto de estrelas transmitido à sua camarada Sophie – para que ela o vestisse como um escudo contra todas as coisas terríveis. O que brotou em sua mente naquela noite enquanto você ouvia, silenciosamente, a areia ranger sob as botas da sentinela? Você estava aguçando sua capacidade de percepção para que pudesse se sintonizar em outra frequência. Você foi sensibilizada por sua cela, pelo tédio que a oprimia, até que a pressão da escuridão deu lugar à compreensão dos mistérios mais profundos do que significa estar viva – da conexão entre o desejo e a política.
Eu penso em seu destino, no destino de George Jackson, no destino de Fred Hampton – o estado deve saber quando o universo dá à luz um verdadeiro revolucionário. Ele deve reconhecer neles uma chama a ser apagada para que sua faísca não encontre e incendeie a divina faísca em todos nós, que se espalharia até a derrubada do mundo tal como o conhecemos.
Sozinha em sua cela, você estava à flor da pele. Nada lhe escapava. A alegria interior que você sentia em contraste com o cenário sombrio da prisão de Breslau lhe deixou estonteada. Imagino como você passou o tempo lá: estudando economia política e botânica, escrevendo cartas para suas e seus camaradas, montando seus herbários, preparando-se para a revolução, perdendo-se nas flores da sua imaginação.
O segredo era você. Você era o próprio princípio da vida. Você era a árvore que eles tiveram de cortar.
à indescritível maravilha
à liberdade que floresce da confusão
– Édouard Glissant
As estrelas vistas da prisão
Em setembro de 1971, os prisioneiros de Attica se rebelaram, tomaram a prisão e talharam um pequeno espaço de liberdade: uma zona de libertação temporária através da qual podiam ver as estrelas.
Apesar do mau pressentimento, houve momentos de leveza e, para alguns, até mesmo uma sensação de alegria inesperada, pois os homens que não sentiam o ar fresco da noite há anos se deleitavam com essa estranha liberdade. Lá fora, no escuro, ouvia-se a música – “bateria, guitarra, vibrafone, flauta, sax [que] os irmãos estavam tocando”. Esse foi o momento mais leve que muitos dos homens tiveram desde que entraram na prisão de segurança máxima. Aquela noite foi, de fato, um momento profundamente emocionante para todos eles. Richard Clark observou, com espanto, o momento em que os homens se abraçaram, e viu um deles cair em prantos porque fazia muito tempo que não tinha “permissão para se aproximar de alguém”. Carlos Roche viu as lágrimas de euforia escorrerem pelo rosto enrugado de seu amigo Owl, um homem idoso que estava encarcerado há décadas. “Sabe”, disse Owl maravilhado, “faz vinte e dois anos que não vejo as estrelas”. Como Clark mais tarde descreveu essa primeira noite da rebelião, embora houvesse muito receio sobre o que pudesse acontecer logo em seguida, os homens no Bloco D também se sentiram maravilhados, pois “não importava o que acontecesse depois, eles não poderiam tirar esta noite da gente”.
– Heather Ann Thompson, Blood in the Water
Algo floresceu nas fendas da prisão. Um campo de flores silvestres se impôs no céu noturno. O sangue estava a caminho. Alegria e pavor se misturavam, infundindo no ar uma poderosa fragrância de êxtase e incerteza.
Que sensação gloriosa foi descoberta naquela noite, e logo depois perdida, quando o governador Nelson Rockefeller ordenou à polícia que colocasse fim ao levante?
O sangue estava a caminho. O novo mundo nunca chegou. Quão terrível deve ter sido para W. E. B. Du Bois perceber que, ao crepúsculo da alvorada, seguiu-se a escuridão, e não o brilho de um novo dia – o esforço de seu povo tornado ocaso. O sonho da libertação colapsou sobre uma pilha de escombros manchada de sangue.
O sangue estava a caminho. A batucada não duraria. Os prisioneiros seriam punidos por ousar olhar as estrelas.
Será que aqueles que construíram este Inferno algum dia se perguntarão – Para que serviu tudo isso? A subordinação de toda uma vida a esses sistemas que nos enjaulam. Porque encobrir o céu?
*
O deserto do Atacama no Chile é tão seco que os cadáveres ficam preservados para a posteridade e os vestígios das antigas comunidades permanecem intactos, como que imortalizados no âmbar. Devido à sua grande altitude e à ausência de umidade, o céu sobreo deserto do Atacama é totalmente limpo e permite uma visão desimpedida das estrelas. Ao longo dos anos, cientistas e astrônomos convergiram para essa região para construir poderosos telescópios de observação do cosmos.
Anos depois de Attica, em outro continente, presos políticos isolados no deserto do Atacama pelo ditador Augusto Pinochet, patrocinado pelos Estados Unidos, observavam as mesmas estrelas desde os confins de um campo de prisioneiros.
Patricio Guzmán [diretor de documentário. Diálogo presente no filme Nostalgia da Luz (2010)]:
O que você sentiu ao observar
as estrelas de dentro da prisão?
Luís Henríquez [sobrevivente do campo de concentração de Chacabuco]:
Todos nós tínhamos um sentimento…
…de grande liberdade.
Observando o céu e as estrelas,
maravilhando-nos com as constelações,
…nos sentíamos completamente livres.
Os militares baniram
as aulas de astronomia.
Eles estavam convencidos de que
os prisioneiros poderiam escapar…
…guiados pelas constelações.
Patricio Guzmán:
A dignidade de Luís reside em sua memória.
Ele não conseguiu escapar,
mas, ao se comunicar
com as estrelas,
conseguiu preservar
sua liberdade interior.
Eu retorno às estrelas –
ao porquê de as pessoas se sentirem livres quando
olham para as estrelas.
Será porque, quando nos comunicamos com as
estrelas, nos tornamos
parte do Todo?
O todo da Vida –
nos sentimos como matéria e energia recicladas
congeladas em uma forma temporária
uma forma que não se sustenta
que um dia desmoronará.
O que eles sentiam quando olhavam para o
céu noturno?
A imensidão produzia uma sensação de liberdade?
Será que eles se lembravam – há um mundo além das
paredes desta prisão.
Terão sido transportados à infância, ao
mistério,
à primeira vez que contemplaram seu
lugar no Todo?
Em sua autobiografia Dusk of Dawn, Du Bois escreveu sobre a raça como uma prisão – que só poderia ser abolida por meio de uma revolução material e espiritual. Antecipando o arco do meu livro, ele escreveu que o problema imediato de seu povo estava em “garantir a existência, trabalho e renda, comida e casa, independência espiritual e controle democrático do processo industrial”, mas que não se podia “concentrar todos os esforços no bem-estar econômico” – que seu povo “tinha de viver, comer e batalhar, mas também manter um contato inabalável com as estrelas”.
A morte que não é morte, mas o nascimento de tudo possível
O que é prisão? É imobilidade. “Homem livre, tu sempre amarás o mar!” (Baudelaire). É cada vez mais óbvio que a mobilidade é um dos signos do nosso tempo. Restringir um homem a sobreviver por onze anos nos mesmos quatro ou cinco metros quadrados – que no fim das contas se tornam vários milhares de metros dentro das mesmas quatro paredes abertas pela imaginação – pode justificar a vontade de um jovem em partir… para onde, por exemplo? Talvez para a China, e talvez a pé. Jackson foi esse homem e essa imaginação, e o espaço que ele percorreu foi bastante real, um espaço de onde ele trouxe observações e conclusões que golpearam a América branca (por “América” quero dizer também a Europa e o mundo que desmantela todo o resto, que o reduz à condição de uma força de trabalho precarizada – as colônias de ontem, as neocolônias de hoje). Jackson disse isso. Disse milhares de vezes e para todo o mundo. Ele ainda tinha verdades insuportáveis a dizer para nossas consciências. Para melhor silenciá-lo, a polícia da Califórnia… Mas o que estou dizendo? O livro de Jackson vai muito além do alcance dessa polícia.
– Jean Genet, sobre George Jackson
Só posso ser executado uma vez.
– George Jackson, Blood in My Eye
A linguagem não tem corpo.
A mensagem é um vírus.
A mensagem não pode ser assassinada.
Nova versão de uma declaração de Huey P. Newton, servo do povo, do Partido dos
Panteras Negras, no Memorial Revolucionário para George Jackson:
Um exemplo revolucionário não pode ser morto
O soldado e seu espírito são coisa viva
Seu espírito fala, o corpo de George se move
Embora caído
Veja
Suas ideias vivem
Em corpos jovens
Nossas crianças dizem
É verdade
Haverá revolução
E seu legado será nosso
Nós acreditamos na imortalidade de George
Geração após geração
Nós conhecemos o povo
Nós acreditamos no povo
Na imortalidade vencemos
Seguimos
Não importa quão quieto
Quão mal feito
O amor não se importa com as falhas
Nenhuma dor o faz desistir
E nenhuma dor nos faz desistir
E por que ele viveu sua vida
Por seu povo
A violência se expande e se contrai
Toda matéria viva custa a alguém o curso da morte
Se ela pudesse dar a si mesma a aparência dos algozes
— Nós não
Nós não possuímos o tipo de violência que a polícia possui
Oferecemos a ela a luta por tudo o que é possível
A audácia de aceitar o direito de fazer tudo
De preservar George
Eu vejo George crescendo em nosso sofrimento
Em trinta segundos haverá dor
A ordem da prisão que mata nossas histórias não fará nosso
sofrimento morrer
Nós dizemos que haverá dor
Mas em todos nós cresce uma força
Por nós
Uma incrível vontade que vive na dor que conhecemos
Eu vejo dois tipos de morte
Uma morte não é morte
A outra é morte
George morreu uma não morte
Pois em todos nós há um George
Em nosso sofrimento há um George
Nos vejo morrendo a não morte
O dia em que George caiu não é o dia da sua morte
O futuro saberá a maneira como iremos morrer
Morte revolucionária
A maneira como sua mente determinou o nome das pessoas
Para mudá-las completamente ou tornar-se uma pluma
Nomeamos as pessoas O POVO
Apoiamos o nome
Em nome do povo, TODO O PODER
AO POVO TODO O PODER
Imaginações no cativeiro
Em primeiro lugar, eu diria que prisão é uma denominação precisa para nossa cultura contemporânea e que ela, enquanto cultura, pressupõe um certo conjunto de problemas e reforça uma reação dominante em nossa imaginação. Sylvia Wynter fala sobre reservas – que também é uma boa denominação para definir nossa cultura contemporânea –, querendo dizer que os povos indígenas estão confinados às reservas do estado da mesma forma que nossa imaginação também está confinada. A de todos nós. E eu também diria que, a partir do momento que as prisões se tornaram uma característica dominante dos Estados Unidos, nossa imaginação (de todos, não apenas daqueles de nós desproporcionalmente aprisionados) também foi aprisionada. A forma como imaginamos o trabalho, nossos relacionamentos, o futuro, a família, tudo, está tudo trancado.
– Alexis Pauline Gumbs
Para onde quer que eu olhe, vejo sonâmbulos enfeitiçados pela prisão.
Qual contrafeitiço poderá quebrar o domínio que a prisão exerce sobre nossa imaginação?
Mas o feitiço nunca é total. A intensificação do desejo pela vida mina a capacidade da prisão de estruturar nossa vida mental.
Imaginação é excesso, é aquilo que a prisão nunca pôde conter, aquilo que sempre lhe escapará.
Quais caminhos noturnos temos de percorrer para entrar nessa frequência oculta –
aquela vibração especial que Sun Ra acreditava que nos libertaria?
A dialética do sonhar
A imaginação é constitutiva […] Não é apenas sobrenatural, desconectada do movimento do mundo, a despeito das coisas. Ela é constitutiva no sentido de que se torna tão intensa e enraizada que se torna real por meio de sua intensificação e articulação. Isso coloca a teoria no campo da profecia, mas não da profecia do que vai acontecer. Em vez disso, ela é o que impulsiona a imaginação, o encorajamento desse poder de reconhecer que a vida pode ser, e de certa forma já é, diferente.
– Michael Hardt
Sonhos e realidade são polos opostos. A ação é sua síntese.
– Assata Shakur
Antes de Assata Shakur ser liberada da prisão, sua avó e sua família foram visitá-la, carregando um sonho: “Você vai voltar para casa em breve”, disse sua avó. “Não sei quando será, mas você vai voltar para casa. Você vai sair daqui. E não vai demorar tanto assim.” Ela prosseguiu: “Sonhei que estávamos em nossa velha casa na Jamaica… eu estava vestindo você… colocando suas roupas em você.” A avó de Assata era conhecida por seus sonhos proféticos – eles aconteciam quando eram necessários, mas tornar reais aquelas visões era responsabilidade de seus destinatários, não apenas acreditando na veracidade das profecias, mas agindo de modo que elas se tornassem concretas.
Quando Assata voltou para sua cela na prisão, ela só conseguia dançar e cantar. Ela escreveu: “Nenhum pensamento científico e racional poderia diminuir a emoção que eu sentia. Uma excitação formigante e vertiginosa tomou conta de mim. Eu me embriaguei com o otimismo arrogante e descuidado de minha família. Literalmente, dancei em minha cela, cantando ‘Feet, don’t fail me now’. Eu cantei a parte dos ‘feet’ [pés] bem baixinho, então acho que os guardas devem ter pensado que eu estava enlouquecendo, sapateando na minha cela e cantando ‘pés’, ‘pés’”.
Quando agimos de acordo com o sonho profético, o sonho passa a constituir diretamente a realidade.
A política do sonhar
Estamos construindo uma realidade que nunca vimos antes. Pedimos às pessoas que desenvolvam suas habilidades visionárias e sonhadoras, algo que não é facilmente aceito em nossa sociedade.
– Mia Mingus
Acho que há um perigo inerente em fundir reformas militantes e estratégias de direitos humanos com a lógica que embasa o radicalismo antiprisional, que concebe a erradicação definitiva da prisão enquanto um lugar de violência estatal e repressão social. O que é necessário, ao menos em parte, é um novo vernáculo que possibilite esse tipo de sonho político. Quais são esses novos ensinamentos, estratégias de organização e linguagem política de que a abolição penal necessita?
– Dylan Rodriguez
Às vezes não sei o que dizer nem como concluir.
Há algum tempo venho pensando em como levar a você a mensagem da abolição das prisões e da polícia, mas sei que, como poeta, não é meu trabalho conquistá-lx com um argumento persuasivo, mas transmitir-lhe uma experiência vibracional capaz de despertar o seu desejo por um outro mundo.
Há alguns anos, assisti à fala de Sonia Sanchez, ativista e poetisa do Black Arts Movement. Fiquei comovida com a maneira como ela parava sempre que sentia vertigem e começava a cantar espontaneamente como uma forma de encontrar de volta seu ritmo depois de quase desmaiar.
Em um haicai, Sonia escreve:
sem a sua
respiração residencial
eu perco meu compasso.
Nossos corpos não são circuitos fechados. Seguramos e amparamos uns aos outros no compasso, marchando, cantando, abraçando, respirando. Sincronizamos nossos ponteiros para que encontremos um ritmo através do qual a ânsia por viver possa se expressar coletivamente. E assim colocamos o mundo em movimento. Dessa forma, os poetas se tornam os guardiões do tempo da revolução.
Plantando o sonho
O que devemos construir sobre as cinzas de um pesadelo?
– Robin D. G. Kelley
Não vou propor muito mais do que a concepção e realização de um espaço que deve ser o produto de uma imaginação coletiva moldada e remoldada pelo próprio processo de transformar os destroços e a memória nas sementes de uma nova sociedade.
– Robin D. G. Kelley
Eu vejo
Eu vejo nossa sombra entre as árvores
Assistindo à roda girar
Eu vejo nossa sombra na parede como uma só
Eu vejo sua mão inquieta na teia da aranha
Sou a caverna de gelo e há água,
azul e branco profundos, uma luz no fundo
Eu sou igual ao meu amor por você
Solte seu cabelo, salgueiro
ao luar: o rio
nos embala em um sonho. Pesadelos
lançam galhos em nossos olhos. Eu anseio
pelo mundo que está diante de você,
o sinal que você coloca no quadro
do amanhã. Seus dedos tremulam
para sentir a grama
do vale,
onde um pé segue o outro
em direção ao riacho em chamas.
Não sabemos que nome dar
à pedra que pulsa
empoleirada no topo da montanha.
Daqui, eu vejo por você
Veja o que eu perdi
quando você estava perdido
e eu só podia ouvir
o chamado das pedras
Um corpo, de volta
flutua rio abaixo
ornado de velas
Eu te envio o segredo
enquanto você dorme
As noites que você carregou no comprimento de uma mecha de
cabelo –
O brilho implacável dos dentes dele –
Eu golpeio seu rosto para destravar sua mandíbula
e soltar a rosa que você leva dentro da boca
Sua língua está em carne viva
e sua boca
se enche de sangue
Meu bem
Meu bem,
Nos perdoe por ter caído tão longe
de onde você plantou a semente:
No fundo do mar, esperando
o corpo navegar pelo riacho
de volta para onde os escombros
deram à luz o primeiro
sonho
O ovo se quebra, a escuridão
vagueia em direção ao mar
descalça em seu anoitecer
desliza
E através dessa tristeza se apresenta
o caminho para o mar, uma trilha
gravada por um bando de tartarugas sonâmbulas
que se curvaram, uma a uma, em sua dor
até que uma única ficou
para carregar o sopro do tempo
de volta
à semente.
Jackie Wang
Jackie Wang é uma estudante do estado onírico, pesquisadora em estudos negros,
abolicionista penal, poeta e performer. É doutora em Estudos Africanos e Afro-
americanos pela universidade de Harvard e é professora assistente na Universidade do
Sul da Carolina.